terça-feira, junho 04, 2019

Como olhamos para a natureza?


A natureza chama a atenção de todos: do cientista que procura investigá-la para descobrir suas intrincadas e inteligíveis leis à criança que faz curiosas e interessantes perguntas acerca de seus múltiplos aspectos. Os olhos humanos são cativados por ela, pois fascina, instiga, deslumbra e também amedronta as pessoas. Mesmo as criaturas irracionais têm um olhar instintivo voltado à natureza, sendo envolvidos e governados por seus princípios universais. Costuma-se afirmar que a natureza é um compêndio, “livro” sobre o qual homens e mulheres de ciência se debruçam a fim de estudar sua linguagem – codificada matematicamente –, com o objetivo de transformá-la em conhecimento. Esse tipo de trabalho requer um mergulho cognitivo muito profundo no mundo natural, por meio do método que permitiu o nascimento e desenvolvimento da ciência moderna. Segundo Galileu Galilei, “o Universo não poderá ser lido até que tenhamos aprendido e nos familiarizado com os caracteres com os quais foi escrito. E ele foi escrito em linguagem matemática, e as letras são triângulos, círculos e outras figuras matemáticas, e sem tais recursos é humanamente impossível compreender uma única palavra”.

Inclinam-se também para a natura poetas, literatos, músicos e outros artistas, extraindo dela inspiração para suas criações. Não só esses: filósofos a observam mediante a razão, muitas vezes especulativa. Fazendo uso do pensamento reflexivo, elaboram questionamentos sobre a realidade e essência dos seres e das coisas, engajando-se na procura pela verdade. E os teólogos? Eles a veem uma obra de Deus, fonte de espiritualidade e via argumentativa a favor da existência do Criador. Assim, a physis desperta no ser humano várias reações que vão desde o anseio investigativo por desvelar sua origem e estrutura até a simples ação de escrever este texto acerca dela, como o faço. De fato, qualquer observador perspicaz vê na natureza um signo grandioso repleto de informações e mensagens indicadoras de certo mistério supranatural nela presente. Todavia, apesar desse fascínio atrativo, que quadro geral da natureza nossa visão tem formado? Seria uma imagem nítida ou embaçada e distorcida por algum modelo explicativo limitador?

Quando Charles Darwin realizou sua famosa viagem de cinco anos a bordo do H.M.S. Beagle, esse naturalista inglês observou muitas cenas e paisagens naturais que lhe imprimiram significativos sentimentos e pensamentos, ajudando-o a estabelecer a teoria geral da evolução das espécies: cosmovisão aplicada ao estudo da natureza, dominante no meio científico e paradigma central não só da Biologia, mas também de muitas outras disciplinas. Diz-se que “ele visitou as ilhas de Cabo Verde, vários pontos do Brasil e da Argentina, incluindo Rio de Janeiro e Buenos Aires, e as ilhas Malvinas, a Patagônia, a Terra do Fogo, o estreito de Magalhães, a área central do Chile, Chiloé e as ilhas Chonos, a região de Valdívia, muito propensa a terremotos, no Chile, o norte do Chile e do Peru, o arquipélago das Galápagos, o Taiti, a Nova Zelândia, a Austrália, as formações de corais da ilha de Keeling e as ilhas Maurício. De tempos em tempos, durante a viagem [...], Darwin pôde passar um total de três anos e um mês em terra, viajando muito, coletando exemplares de botânica, de vida orgânica, animais, fósseis, metais e minerais de todo tipo, registrando suas observações sobre fauna, flora e habitantes humanos. Ele caçou uma enorme variedade de pássaros e animais, perseguiu avestruzes, estudou os efeitos de um terremoto de grande escala, observou uma forte erupção vulcânica e visitou grandes extensões de florestas tropicais, altas montanhas, serras, pampas e outras savanas, rios, lagos e diversas regiões repletas de arbustos e matagais, bem como vilarejos de nativos, assentamento de colonos, minas e cidades”. Que expedição! Essa jornada darwiniana resultou na obra-prima A Origem das Espécies por Meio da Seleção Natural ou a Preservação das Raças Favorecidas na Luta Pela Vida, título tão extenso quanto a odisseia do Beagle.

Segundo o historiador e jornalista Paul Johnson, “Darwin nunca buscou compreender o Universo como um todo, mas apenas seu conteúdo orgânico. [...] Não era apenas um homem cerebral e intuitivo, mas também altamente emocional. Ele sofreu muitos choques durante a viagem que alteraram permanentemente a forma como enxergava as coisas. [...] Darwin já notara que a natureza tendia a operar, e tudo acontecia tão gradualmente que o progresso natural pôde ser descrito como uma infinita sucessão de pequenos eventos, não de vibrantes atos de criação”. Conforme ele próprio concluiu em A Origem das Espécies, “há uma grandeza nessa noção de vida, com seus vários poderes [...]; e que, enquanto o planeta girava de acordo com a lei fixa da gravidade, a partir de um início tão simples, um número infinito de formas, as mais belas e maravilhosas, evoluiu e continua a evoluir”.

A meu ver, os olhos de Darwin, ainda que perspicazes e analíticos, não enxergaram as nuances mais profundas da natureza. Com olhar epistemológico anuviado, ele se deixou conduzir por certa interpretação duvidosa e parcial a respeito da origem e desenvolvimento das formas de vida na Terra, não percebendo na história da natureza as intervenções do Deus do Gênesis. Na postura de naturalista sistemático, envolveu-se tanto com os assim chamados “processos evolutivos” que perdera de vista os evidentes vestígios do Criador registrados em todo o planeta. Assim, por lhe faltar uma visão paradigmática de longo alcance, Darwin cometeu tremendos equívocos interpretativos resultantes de inferências erroneamente tiradas de fatos observados na natureza. Como alguém ponderou, ele “acertou no varejo e errou por atacado”.  

No raciocínio de Alister McGrath, “o mundo natural é conceitualmente maleável. Ele pode ser interpretado, sem nenhuma perda de integridade intelectual, de várias maneiras distintas. Alguns ‘leem’ ou ‘interpretam’ a natureza de forma ateísta. Outros a ‘leem’ de um modo deísta, vendo-a apontar para uma divindade criadora, que não está mais envolvida nos assuntos da natureza. [...] Outros adotam uma visão mais especificamente cristã, acreditando em um Deus que tanto cria quanto sustenta a natureza. Outros adotam uma visão mais espiritualizada, mencionando de forma mais vaga alguma ‘força de vida’. [...] Uma vez que a natureza pode ser interpretada de muitas maneiras, qual é a melhor interpretação? Uma vez que o Universo pode ser explicado de diferentes maneiras, qual dessas explicações é a melhor? Quão bem alguma dada estrutura extrai sentido do que é de fato observado? [...] O processo de observação, quer científico quer religioso, envolve tentar casar o que é observado com o que é acreditado e, depois, fazer quaisquer ajustes necessários”.

Do ponto de vista cristão, bíblico e criacionista, somos convidados à contemplação e ao estudo da natureza usando lentes que ultrapassem o horizonte materialista e darwinista, ampliando-o para uma teologia natural cujo empreendimento “é de discernimento, de ver a natureza de certa maneira, de enxergá-la por meio de um conjunto específico e particular de lentes teóricas”. Nesse sentido, o cristianismo, caracterizado por “sua elegância intrassistêmica e por sua fecundidade extrassistêmica”, funciona como um potente catalisador, conferindo estímulo e sentido à humanidade sempre em busca incessante por suas origens. Ou, na expressão de C. S. Lewis, o cristianismo é um sol iluminador “porque através dele eu vejo tudo ao meu redor”. Para quem adota tal perspectiva, aparecem perguntas desafiadoras e honestas: “Será que a fé cristã pode oferecer um relato mais rico e profundo do mundo natural do que suas adversárias pagãs ou ateias, já que os cristãos veem o mundo natural por um prisma teológico? O que dizer sobre a ambiguidade moral e estética da natureza? Ela não é caracterizada igualmente pela feiura e pela beleza? Pela violência, destruição e dor, bem como pela bondade? Como essa diversidade moral e estética da natureza pode ser disposta de forma teórica?”

Precisamos aprender a enxergar a natureza como um todo, visão que só a fé cristã é capaz de conferir. Nesse aspecto, resumidamente, Alister McGrath recomenda as lentes expansivas do cristianismo direcionadas ao mundo natural: “A fé cristã oferece uma forma alternativa de ver a natureza, que às vezes pode questionar as versões exageradas do método científico; contudo, ela acolhe a busca humana pela verdade e se vê como parte dela, seja científica, seja religiosa. [...] Ela espera encontrar, e de fato encontra, uma ressonância explicativa relevante com o que é conhecido da natureza por meio de outras fontes, ao mesmo tempo que insiste em seu direito de retratar e descrever a natureza em sua forma especial – como criação de Deus. [...] O cristianismo oferece um sol intelectual que ilumina um mundo que, do contrário, seria obscuro e enigmático: fornece uma ‘adequação empírica’ profundamente satisfatória entre a teoria e a observação, sugerindo que o mapa da realidade é fiel e passível de confiança.”

Verdadeiramente, “a coisa mais extraordinária que uma alma humana faz neste mundo é ver algo e relatar o que viu de forma clara”. Imbuídos do discernimento e dos insights da teologia natural e da revelação cristã, nossas perguntas acerca da natureza – muitas ainda não respondidas – servem de estímulo científico, filosófico e religioso, bem como de incentivo à pesquisa, lançando-nos numa viagem mais interessante e empolgante do que a circunavegação evolucionista feita por Charles Darwin. Para quem adota tal visão omnidirecional, a natureza revelar-se-á o “teatro da glória de Deus”.

Frank de Souza Mangabeira