terça-feira, agosto 20, 2019

Eu: primata bípede ou ícone de Deus?


Toda pessoa já fez ou fará esta pergunta existencial: “Quem sou eu?” Com a mão no queixo ou coçando a cabeça, somos impulsionados por um imperativo que instiga o pensamento à procura da verdade sobre a natureza humana com suas dimensões biológica, psíquica e espiritual. Mediante a ciência, a filosofia, a religião e outros caminhos epistemológicos – ou até mesmo pela via do senso comum –, o Homo sapiens vasculha suas origens remotas, lançando mão do conhecimento que lhe é possível ter. Ele não se conforma em ignorar o berço ancestral do seu nascimento. “Quem sou eu?” constitui uma indagação das mais desafiadoras e enigmáticas que só pode ser respondida, em sentido último, por meio de metanarrativas apoiadas em algum tipo de metafísica/revelação. Porém, essa pergunta nos coloca diante de outra questão dicotômica ainda mais interessante: “Sou um ser com ascendência animal – entrelaçado em relações filogenéticas evolutivas e pertencente à família hominidae – ou alguém sem o mínimo parentesco com as criaturas irracionais, um filho de Deus?” Sejam quais forem as evidências para sustentar uma tese ou outra, o misterioso aparecimento da humanidade na Terra passa por duas narrativas conflitantes, as quais, por meio dos dados disponíveis, constroem, cada uma, a sua ciência histórica.

Na versão contada pelo conhecido paleoantropólogo Richard E. Leakey, a pergunta “Quem sou eu?” é respondida assim: “A partir de linhas de indícios diferentes – alguns genéticos, alguns fósseis –, sabemos [sic] que a primeira espécie humana evoluiu há cerca de sete milhões de anos. Na época em que o Homo erectus surgiu em cena, há quase dois milhões de anos, a pré-história humana já estava em marcha. Não sabemos ainda como muitas espécies humanas viveram e morreram antes do aparecimento do Homo erectus; houve pelo menos seis, e talvez o dobro desse número. Entretanto, sabemos de fato [sic] que todas as espécies humanas que viveram antes do Homo erectus eram, embora bípedes, marcadamente simiescas em muitos aspectos. Elas tinham cérebros relativamente pequenos, suas maxilas eram prognatas (isto é, projetavam-se para a frente), e a forma de seus corpos era mais simiesca do que humana em aspectos particulares, tais como o peito em forma afunilada, pescoço pequeno e nenhuma cintura.”[1]

Detalhes à parte, na mesma esteira vai o historiador israelense Yuval Noah Harari: “Gostemos ou não, somos membros de uma família grande e particularmente ruidosa chamada grandes primatas. Nossos parentes vivos mais próximos incluem os chimpanzés, os gorilas e os orangotangos. Os chimpanzés são os mais próximos. [...] Os humanos surgiram na África Oriental há cerca de 2,5 milhões de anos, a partir de um gênero anterior de primatas chamados Australopithecus, que significa ‘macaco do Sul’. Por volta de dois milhões de anos atrás, alguns desses homens e mulheres arcaicos deixaram sua terra natal para se aventurar e se assentar em vastas áreas da África do Norte, da Europa e da Ásia.”[2]

Sabe-se, cientificamente, que o nascimento da humanidade ocorreu segundo a maneira contada pelos autores acima, ou tudo não passa de artifício hipotético fundamentado em certa visão de mundo e nas interpretações equivocadas dos resquícios paleoantropológicos encontrados em algumas regiões da Terra? Gostemos ou não, essa forma de encarar a origem do homem possui inúmeros problemas que esbarram na ciência empírica e laboratorial, percebidos por mentes críticas bem informadas, entre as quais encontram-se até mesmo estudiosos crentes no “fato” da evolução. David Pilbeam, paleontólogo norte-americano, por exemplo, honestamente reconheceu: “Praticamente todas as nossas teorias sobre as origens humanas desenvolveram-se relativamente à margem do registro fóssil. Nossas teorias frequentemente têm dito mais sobre suposições sobre o que de fato ocorreu.”[3]

A controvérsia prossegue. Ainda assim, o poder explanatório da teoria da evolução persuadiu – além de grandes cientistas – muitos religiosos, teólogos e igrejas cristãs a se renderem ao discurso que usa áreas da ciência para apoiar especulações baseadas em extrapolações de dados; pois, em tal perspectiva, se estes não forem interpretados “à luz da evolução”, nada fará sentido em biologia, em antropologia ou em qualquer saber que tenha o homem por objeto de estudo. Contudo, embora o pensamento evolucionista domine a comunidade científica, soam representativas vozes discordantes que, com argumentos plausíveis, apresentam o contraponto capaz de fazer frente à quase universal doutrina do transformismo macroevolucionário.

A outra narrativa, também alicerçada nos fatos da ciência e ancorada na concepção teísta de mundo, conta-nos algo exclusivo e extraordinário, mas digno de apreciação: “E disse Deus: Façamos o homem à Nossa imagem, conforme a Nossa semelhança [...]. E criou Deus o homem à Sua imagem; à imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou” (Gn 1:26, 27). Nessa versão, os primeiros humanos, representados pelo casal Adão e Eva, tiveram origem diferenciada e especial, à parte dos demais seres vivos. Tal pressuposição advinda da Bíblia, circunscrita à estrutura conceitual criacionista, é vista por muitos como um conto mágico e indigno de consideração científica. Todavia, apesar do preconceito, das distorções e da incompreensão acerca desse modelo, não se pode deixar de se encantar e de se atrair pela beleza e lógica da exposição teísta: “Depois que a Terra com sua abundante vida animal e vegetal fora suscitada à existência, o homem, a obra coroadora do Criador, e aquele para quem a linda Terra fora preparada, foi trazido em cena. A ele foi dado domínio sobre tudo que seus olhos poderiam contemplar; pois ‘disse Deus: Façamos o homem a Nossa imagem, conforme a Nossa semelhança’ [...]. Aqui está claramente estabelecida a origem da raça humana; e o relato divino refere tão compreensivelmente que não há lugar para conclusões errôneas. Deus criou o homem à Sua própria imagem. Não há aqui mistério. Não há lugar para a suposição de que o homem evoluiu, por meio de morosos graus de desenvolvimento, das formas inferiores da vida animal ou vegetal. Tal ensino rebaixa a grande obra do Criador ao nível das concepções estreitas e terrenas do homem. [...] A genealogia de nossa raça, conforme é dada pela inspiração, remonta sua origem não a uma linhagem de micróbios, moluscos e quadrúpedes a se desenvolverem, mas ao grande Criador. Posto que formado do pó, Adão era filho ‘de Deus’ (Lucas 3:38).”[4] Guiados pela inspiração bíblica, reflitamos um pouco sobre esse relato incomum mas passível de credibilidade.

Trazendo a humanidade à existência, ao invés de usar a palavra (num ato de solitária ordem: “Haja!”, “ajuntem-se!”, “produza!”, “povoem-se!”), as pessoas da Divindade dialogam entre Si e compartilham a alegria de formar um ser peculiar. Em ação sublime e irrepetível, repleta de carinho, cuidado, perícia, propósito e amor, surgem homem e mulher envolvidos em glória e perfeição. Não criaturas bestiais, descendentes de uma linhagem de seres inferiores, e sim o ápice do fiat divino. Portanto, “embora partilhe com animais determinados aspectos físicos, o que é razoável visto dever, como eles, viver no mesmo mundo, respirando o mesmo ar e participando dos mesmos ciclos vitais, o homem emerge da natureza qual autêntica obra-prima da Criação. Do ponto de vista da classificação científica, todos os seres vivos, incluindo o homem, são colocados em um dos dois grupos. Ou são plantas ou são animais [...]. Por mais que o homem se pareça com os animais, estritamente do ponto de vista dos anatomistas e fisiologistas, mesmo assim as diferenças não são imaginárias [...]. Um macaco pode olhar um céu estrelado, mas unicamente o homem pode ponderar a sua significação [...]. É esta considerável diferença entre a mente humana e a mente dos animais que eleva o homem acima de qualquer classificação com os brutos [...]. Quando consideramos a anatomia e os processos biológicos do homem, em verdade, ‘a vantagem do homem sobre os animais não é nenhuma’ [...]. Os animais se sobrepõem ao homem em todos os sentidos que ele possui, e mesmo assim o homem estabeleceu seu domínio sobre a terra através do maravilhoso mecanismo da sua incomparável mente”.[5]

Formado do pó da terra e com o fôlego de vida a animá-lo, o homem reúne em si, numa inter-relação harmoniosa e indivisível, as dimensões física, mental e espiritual. Sua origem superior aponta para um destino excelente: o de usufruir a presença de Deus, experimentando-O no corpo por meio dos sentidos, alargando seu horizonte mental e adorando-O em espírito. Sendo “tridimensional”, o homem equilibra-se sobre a forte base de sua natureza marcada pelo divino.

O “pó da terra” é o elemento que nos mantém ligados ao restante da criação, a lembrança de que somos seres físicos, dependentes, finitos; o “fôlego de vida” simboliza o elo afetivo-espiritual entre criatura e Criador, apontando-nos a eternidade como alvo. Pessoa alguma alcança plenitude de vida exagerando a importância da matéria, dos sentidos, da imanência - elementos promotores do hedonismo e existencialismo humanista. Do contrário, esquecer e desprezar os deveres relacionados ao mundo material e social para se dedicar a uma existência de ascetismo, desconsiderando o mundo sensível, constitui convite à alienação que empurra o indivíduo para um abismo de abstração e incompletude, derivado de vaga e fluida metafísica. Na criação, matéria e fôlego combinaram-se fazendo do homem ser vivente pleno.       

Colocados num patamar de superioridade, homem e mulher erguem-se como rei e rainha do planeta. Coube-lhes a responsabilidade de serem tutores da Terra, administrando os variados ambientes do mundo - céus atmosféricos, águas e terra. Nesse domínio veio embutido o dom da ciência, podendo haver interferência e controle em cada espaço do planeta. De algum modo, fazendo uso do conhecimento e habilidades concedidos pelo Criador, o homem seria capaz de viajar às profundidades aquáticas, elevar-se a grandes altitudes e percorrer a largura e o comprimento do mundo. Eis o poder com o qual a raça foi dotada no princípio, porquanto a Terra deveria ser conhecida da forma mais abarcante possível. Afinal, era a sua morada cósmica, devendo cada compartimento da “casa” tornar-se familiar ao morador. Encerra-se a obra divina no sexto dia, sob feliz avaliação: “Viu Deus tudo quanto fizera, e eis que era muito bom” (Gn 1:31).

O Criador abençoou os primeiros humanos com um lar-jardim, locus de deleite e paz inserido na Terra paradisíaca. Nessa bênção estavam inclusas: as relações sociais representadas nos vários laços que passariam a existir (“sede fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra”); a administração benigna do planeta envolvendo o cuidado das criaturas e do ambiente, a dádiva do prazer ao experimentarem os suprimentos de Deus e o descanso do sétimo dia. Além disso, uma ordem foi imposta a fim de se lembrarem dos limites de sua natureza e de que não eram seres infinitos nem deuses. “Não comerás do fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal” jamais significou uma restrição esdrúxula e arbitrária, mas sábio comando que, se obedecido, garantiria vida e felicidade eternas e revelaria a confiança do homem nas palavras de Deus. Para tristeza do Universo, infelizmente experimentamos o “sabor da morte” ao devorarmos o mal como a uma iguaria. Todavia, para alegria dos caídos deste mundo e dos não caídos seres que observaram o “espetáculo da desgraça humana”, uma porta de escape foi aberta ao inaugurar-se o plano de redenção. 

Em Observações filosóficas, Ludwig Wittgenstein interpela o leitor com a seguinte proposta: “Diga-me como você procura e lhe direi o que você procura”. Mais adiante, o filósofo expande o raciocínio: “O modo como você procura expressa de alguma forma o que você espera [encontrar]”. Por fim, ele arremata: “Uma pergunta denota um método de procura”. Na busca pelas origens humanas, temos muitas perguntas a fazer. A partir delas, construímos nosso método de investigação, talvez marcado por jogos de linguagem. O que esperamos encontrar acerca de nós mesmos? Aristóteles afirmou que “o homem é por natureza um animal político; Schopenhauer, por sua vez, declarou que “é um animal metafísico”. Já o primatólogo Frans de Waal conclui especulativamente: “Se em nossa essência somos grandes primatas, como eu suponho, ou se pelo menos descendemos da mesma linhagem dos outros grandes primatas, como todo biólogo (sic) supõe, nascemos com uma gama de tendências que vão das mais vis às mais nobres. [...] Podemos ser primatas perversos, mas isso é explicável e benéfico para o mundo”6. O fenômeno humano continua um controverso mistério. Quem sou eu? Pelo modo criacionista de enxergar a humanidade, não sou nem animal primata, nem anjo, nem demônio; tampouco divindade. Embora caído, continuo um ser edênico: ícone de Deus.

Frank de Souza Mangabeira

Referências:
1. Leakey, Richard. (1997). A origem da espécie humana; trad. Alexandre Tort. Rio de Janeiro: Editora Rocco Ltda.
2. Harari, Yuval Noah. (2017). Sapiens: uma breve história da humanidade; trad. Janaína Marcoantonio. Porto Alegre: L & PM.
3. Ap. Flori, Jean; Rasolofomasoandro, Henri. Em Busca das Origens: evolução ou criação? Madri: Editorial Safeliz, 2002, p. 281.
4. White, Ellen G. (2003). Patriarcas e ProfetasCasa Publicadora Brasileira: Tatuí, São Paulo.
5. Marsh, Frank Lewis. Estudos sobre criacionismo. Casa Publicadora Brasileira: Santo André, São Paulo.
6. Waal, Frans de. (2007). Eu, primata: por que somos como somos. Companhia das Letras.