quarta-feira, julho 07, 2021

A história, seus dramas e Deus

 

O mundo passa por uma nova configuração histórica, em razão de grandes mudanças no cenário global. Ocorrências drásticas e repentinas, a exemplo da pandemia do novo coronavírus, afetam tudo e todos – o meio ambiente, a economia, a política, as leis, a religião, o pensamento e o psiquismo das pessoas. A forma de ver a realidade mudou mais uma vez, e nós, feito crianças amedrontadas, só conseguimos vislumbrar no horizonte dos eventos uma crise humanitária. Diante disso, quem seria capaz de apresentar uma análise segura para além da crise mundial, que apontasse para o sentido e a esperança? Quem poderia explicar a história e apresentar um “plano de salvação”?

 As crises vêm e vão, demolindo o otimismo humano como se derruba um castelo de cartas. Quando elas surgem inesperadamente, aparecem também os “profetas apocalípticos” – seculares e religiosos –, os quais, na figura de analistas do momento, submetem os acontecimentos dramáticos às suas narrativas de cunho sociológico, político, filosófico, científico, metafísico ou meramente opinativo. Os prognósticos elaborados por tais analistas chocam-se entre si, mas cruzam-se também, sendo o elemento comum a todos eles certa percepção escatológica que leva muitos a “desmaiarem de terror pela expectativa das coisas vindouras”.

 O sentimento escatológico parece despertar-nos para a realidade de uma meta-história a esclarecer a história e seus dramas. É neste ponto que a proposta teísta e criacionista de explicitação para os acontecimentos do mundo ganha destaque e defronta-se com as investigações meramente seculares e horizontais dos fatos, sobrepondo-se a estas no quesito interpretação. Nesse aspecto o teísmo bíblico, carregado de simbolismos proféticos estudados à luz do princípio historicista de interpretação, é abarcante pois interliga passado, presente e futuro, introduzindo um fator transcendente que responde (em meio ao caos, à desorientação e à aparente falta de significado) ao porquê da história. Os livros de Daniel e Apocalipse são o exemplo máximo dessa forma de ver os fatos históricos.

Todavia, com a pregação da “morte de Deus”, reconfigurada pelo establishment filosófico da pós-modernidade, a alternativa teísta continua descartada pelos investigadores humanistas da história, e a única conclusão a que se chega é: Não precisamos de Deus para qualquer explicação ou solução dos nossos dramas. Mais: se a possibilidade de Sua existência continua viável, Ele nada tem a ver conosco, pois Sua interferência nos negócios humanos é tanto fictícia quanto indesejada. Senão, vejamos a posição neoiluminista: “Ao procurar uma coerência para a história e as condições que ela implica, o filósofo não precisará do respaldo de Deus. [...] Deus tanto é mais importante quanto mais longe se encontrar. Estranho à história, sua interferência significaria a anulação da autonomia. Da mesma forma que o Universo se abre ao exame da razão, porque ele já é razão, também a história do ser humano se abre a uma explicação racional, porque é animada de uma aspiração racional, a saber, a afirmação do homem enquanto senhor de si e administrador do mundo. [...] As verdades da razão opõem-se, por conseguinte, às verdades da teologia. [...] Os objetos de fé serão relegados ao foro íntimo, à privacidade do crente e não possuirão nenhum estatuto intelectual capaz de elevá-los à certeza metafísica. [...] A nova posição frente à história mostra que a mesma deixou de se referir a um todo monoliticamente concebido e passa a ser objeto de uma elaboração reflexiva em torno da diversidade profana e real. [...] A razão apresenta-se como um instrumento capaz de voltar os interesses do historiador-filósofo para os elementos imanentes à própria história, reconhecendo-a num cenário terreno e natural, impedindo, em consequência, o recurso ao maravilhoso como fator explicativo para os fatos.”¹

 Noutra perspectiva, o pensamento clássico teísta contesta a filosofia apresentada acima. Ele reconhece no Criador o Agente que acompanha não só a história individual do ser humano, mas também a história universal, intervindo nelas em momentos cruciais. Dessa forma, pode-se discernir a evidente e notável atuação divina nos momentos mais significativos da história: “Nos anais da história humana o crescimento das nações, o levantamento e queda de impérios, aparecem como dependendo da vontade e façanhas do homem. O desenvolver dos acontecimentos em grande parte parece determinar-se por seu poder, ambição ou capricho. Na Palavra de Deus, porém, afasta-se a cortina, e contemplamos ao fundo, em cima, e em toda a marcha e contramarcha dos interesses, poderio e paixões humanas, a força de um Ser todo misericordioso, a executar, silenciosamente, pacientemente, os conselhos de Sua própria vontade. [...] A história que o grande Eu Sou assinalou em Sua Palavra, unindo-se cada elo aos demais na cadeia profética, desde a eternidade no passado até à eternidade no futuro, diz-nos onde nos achamos hoje, no prosseguimento dos séculos, e o que se poderá esperar no tempo vindouro. Tudo o que a profecia predisse como devendo acontecer, até à presente época, tem-se traçado nas páginas da História, e podemos estar certos de que tudo que ainda deve vir se cumprirá em sua ordem.”²

Para aqueles que estão convictos de que Deus não existe, ou que existe mas não age na imanência (deísmo), o título desse texto deveria ser mais curto; apenas A história e seus dramas, ecoando assim o pensamento do bioquímico francês Jacques Monod: “É preciso  que o Homem enfim desperte de seu sonho milenar para descobrir sua solidão total, sua estranheza radical. Agora, sabe que, como um cigano, está à margem do universo onde deve viver. Universo surdo à sua música, indiferente às suas esperanças, como a seus sofrimentos ou a seus crimes. […] Onde o recurso?”³ Talvez o “sonho milenar” ao qual Monod se referiu seja o mesmo que Sigmund Freud definiu como “ilusão consoladora”: acreditar na proposta cristã de que um Ser divino não abandonou a Terra à suposta indiferença do universo. Se a visão teísta pode ser considerada misteriosa e enigmática, ou mesmo aparentemente ilusória, o enigma da história, conforme o físico e sacerdote episcopal William G. Polard declarou, “reside no fato de que todo evento é ao mesmo tempo resultado da operação de leis naturais, universais, e o objeto do exercício da vontade divina. Ao desdobrar-se a História, o mundo avança de acordo com as exigências internas de sua estrutura e as leis universais às quais está sujeito. Porém, entre acasos e acidentes dessas alternativas, a História traça seu curso espantoso sempre respondendo à vontade do Criador. O cristão vê as contingências e acidentes da História como a trama e a urdidura do plano que Deus, em Sua providência, está tecendo”.4

“Onde o recurso?”, perguntou Monod. Para as crises manifestadas em pandemias, guerras, fome, injustiça, opressão e tragédias de todo tipo, Deus continua sendo a salvação da história. E se esta retém seu caráter trágico, é “porque a alienação que separa o homem de Deus não pode ser corrigida unilateralmente. A reconciliação não pode ser efetivada a não ser pela resposta livre do homem ao apelo do amor divino. Embora trágica, a história, mesmo a história profana, participa de um desígnio redentor, tanto por revelar o amor de Deus, como pelo fato de promover uma liberdade crescente. [...] A história não é nem sem significado, nem inconsequente”5. Além do mais, ela traz consigo profundas implicações espirituais.

 A pessoa de fé que busca sentido e propósito pressente que a história não terminará de maneira trágica. Porém, enquanto o fim glorioso não chega para a meta-história assumir o seu lugar, o sofrimento do tempo presente perdura; contudo, ao invés da indiferença do universo, existe a consoladora certeza dada pelo próprio Criador: “Eis que Eu estou convosco todos os dias, até a consumação dos séculos” (Mateus 28:20). 

Frank de Souza Mangabeira

 Referências:

1. MENEZES, Edmilson; OLIVEIRA, Everaldo (Org.). Modernidade filosófica: um projeto, múltiplos caminhos. São Cristóvão. Editora UFS, 2011.

2. White, Ellen G. Educação. Casa Publicadora Brasileira, Santo André, São Paulo, 1977.

3. Monod, Jacques. O acaso e a necessidade. Editora Vozes Ltda: Petrópolis, Rio de Janeiro, 1972.

4. Pollard, William G. Chance and Providence: God’s action in a world governed by cientific law. Charles Scribner’s Sons: New York, 1958.

5. Schwants, Siegfried J. O significado bíblico da história. Instituto Adventista de Ensino: São Paulo, 1984.