O livro bíblico de Daniel é um dos textos mais importantes do antigo testamento. Suas páginas estão repletas de profecias e histórias que falam sobre o terrível cativeiro do povo de Israel em Babilônia. Durante muito tempo, acadêmicos e arqueólogos diziam que Babilônia era uma lenda criada pela imaginação dos escritores da Bíblia, e que essa cidade nunca tinha existido. No entanto, essa visão cética foi colocada por terra quando, no fim do século 19, Robert Koldewey, arqueólogo e arquiteto alemão, descobriu as ruínas da antiga capital imperial de Nabucodonosor.
É interessante dizer que antes de essa descoberta acontecer, Heródoto, famoso historiador grego da antiguidade, já havia relatado e documentado sua visita à cidade em um passado longínquo. Em sua passagem pela metrópole, Heródoto descreveu as dimensões e características da cidade com detalhes.[1] Mesmo com esses textos extrabíblicos, muitos historiadores ainda insistiam em negar a existência de Babilônia. Uma das lições dessa descoberta arqueológica é que a ausência de evidência não é, necessariamente, evidência de ausência. Nem sempre a falta de comprovações empíricas sobre determinados fatos históricos significa que aqueles objetos não existiram.
Foi justamente na virada do século 20, mais especificamente a partir de 1899, que o tiro saiu pela culatra. Em uma incessante escavação nas regiões de Bagdá, atual Iraque, Koldewey se deparou com um tesouro milenar que estava coberto havia séculos. A partir desse momento, a arquitetura de Babilônia estava revelada e aberta para pesquisa e estudo – pesquisa essa que foi feita por muitos céticos que antes se referiam à cidade como mitológica.
A descoberta não tinha sido feita antes porque muitas pessoas procuravam escavar à beira do Eufrates, já que os relatos falavam que a cidade fazia divisa com o rio. O problema é que ao longo dos anos o Eufrates foi desviado diversas vezes; sendo assim, uma pesquisa próxima ao rio já não era uma opção interessante. Ao andar pela região, Koldewey percebeu que os beduínos locais sempre visitavam a área montanhosa de Hillah para pegar tijolos e usa-los como matéria-prima de construção.[2] Durante muito tempo, esses habitantes locais utilizaram os tijolos da antiga Babilônia (figura 1) para construir residências e outras estruturas vernaculares. Isso já aconteceu em outras ocasiões na história da arquitetura. Muitos habitantes que viveram em locais em que o Império Romano foi pujante usavam o mármore das construções imperiais para praticar sua arquitetura local – o Coliseu, por exemplo, foi utilizado como “jazida” pelos romanos que viviam em suas proximidades.
Figura 1: escavação em Babilônia, Iraque. Fonte: Wikimedia Commons (domínio público)
Durante as escavações, muitos artefatos importantes foram encontradas, tais como manuscritos cuneiformes, objetos religiosos e edificações que testemunhavam de uma civilização rica e próspera. O Portal de Ishtar (figura 2), entrada principal da cidade e que hoje fica no Pergamum Museum de Berlin, é uma das partes mais bem preservadas do complexo. No portal é possível observar tijolos de lápis-lazúli, material raro encontrado apenas na Mesopotâmia e em algumas partes do Chile.[3] A fachada do portal é composta por desenhos de leões alados, dragões e bois em alto-relevo. Todas essas características são uma demonstração clara da glória da antiga Babilônia.
Figura 2: Portal de Ishtar, Pergamum Museum, Berlin. Fonte: Wikimedia Commons (domínio público)
O portal também possui uma entrada com um grande arco semicircular. Essa é uma das evidências mais antigas dos arcos na história da arquitetura. Os romanos fizeram uso abundante dos arcos em seus aquedutos,[4] mas graças à incrível descoberta do Portal de Ishtar é possível concluir que essa técnica foi, possivelmente, uma invenção dos povos que habitaram a região do crescente fértil, principalmente os mesopotâmicos.
O interessante é que o livro de Daniel possui diversas passagens que trazem, de maneira simbólica e profética, esses mesmos animais encontrados no Portal de Ishtar. Na profecia, o leão com duas asas representa o próprio reino de Babilônia, cujo rei mais conhecido foi Nabucodonosor. O leão é sempre visto como o rei dos animais e a águia, a rainha das aves. Esse animal é um leão que tem duas asas de águia (figura 3), simbolizando a rapidez avassaladora que o reino de Babilônia teria diante de seus inimigos. Mas esse poder não duraria para sempre, segundo a profecia: suas asas seriam arrancadas, ou seja, seu poder lhe seria retirado. A história mostra que essa glória foi tirada por Ciro, o persa, no ano 539 a.C.
Figura 3: leão Alado no Caminho Processional, Pergamum Museum, Berlin. Fonte: Unsplash
Durante o governo de Sadam Hussein, várias edificações foram reconstruídas na busca por fortalecer o nacionalismo do regime ditatorial.[5] O ditador se considerava herdeiro de Nabucodonosor e, para tornar isso ainda mais claro, passou por cima de diversos princípios e práticas de restauro e conservação. Hussein recebeu várias críticas de entidades internacionais por sua maneira de lidar com o patrimônio local.
Com essa descoberta, todos os livros de história da arquitetura publicados nos anos que sucederam a escavação tiveram que trazer Babilônia como um fato histórico. Hoje muitas escavações ainda continuam sendo feitas na região. O objetivo é procurar por fatos que não só demonstrem os costumes e as tradições dos mesopotâmicos, mas que também comprovem ainda mais a veracidade histórica da Bíblia Sagrada.
(Bruno Perenha é arquiteto [Unicesumar, Maringá] e especialista em História da Arquitetura [Birkbeck, University of London]; conheça mais sobre o trabalho dele no Instagram: @brunoperenha e no YouTube: https://www.youtube.com/channel/UC4jx8wH1THB-0Usc7ryzUHQ)
Referências:
[1] STRASSLER, Robert B. The
Landmark Herodotus. London: Quercus Publishing Plc, 2008.
[2] LYON, David Gordon. In: Vo. 11 (3). Recent Excavations
at Babylon. The Harvard Theological Review: 1918. Pag. 307-321.
[3] FELSTINER, John & Neruda, Pablo. In: Vol. 32 (No. 4). Lapis
Lazuli in Chile. The American Poetry Review. Philadelphia:
Old City Publishing, Inc, 2003. Pag. 6.
[4] GLANCEY, Jonathan. A História da Arquitetura. São Paulo:
Edições Loyola, 2001. Pag. 30-32.
[5] MACFARQUHAR, Neil. Hussein's Babylon: A Beloved Atrocity. The
New York Times, Aug. 19, 2003. Section A, Pag 11. Available in:
<https://www.nytimes.com/2003/08/19/world/hussein-s-babylon-a-beloved-atrocity.html>.
Access:
Aug. 20, 2021.