Conta-se que “no
início de setembro de 1869, Leon Tolstoi escreveu uma carta à esposa Sonya, que
começava assim: ‘Uma coisa extraordinária me aconteceu em Arzamas. Eram duas e
meia da manhã [...]. De repente, fui tomado de um desespero, um medo, um terror
tal que nunca tinha conhecido antes. Depois lhe contarei os detalhes.’” O
filósofo Kerry Walters, comentando esse estranho episódio, relata: “Quando
passou sua noite terrível em Arzamas, Tolstoi tinha quarenta e poucos anos,
excelente forma física e era marido e pai feliz. Era rico e aclamado em toda a
Europa, como um dos maiores escritores de seu tempo. Além disso, acabara de dar
os últimos retoques em sua obra-prima, Guerra e Paz. Estava no auge
da vida. Tolstoi decidiu dar-se umas férias, viajando centenas de quilômetros
até uma propriedade que estava interessado em comprar. A caminho, no meio da
estepe russa, parou para passar a noite em uma tosca estalagem no vilarejo
isolado de Arzamas. Jantou e se retirou para o quarto, completamente em paz
consigo mesmo e com o mundo. Mas, nas horas escuras antes do amanhecer, Tolstoi
acordou em pânico, com a certeza de que havia uma presença sinistra no quarto
com ele. Tentando se acalmar, murmurou: ‘Isto é ridículo [...]. Do que estou
com medo?’ Então ouviu uma resposta: ‘De mim’, respondeu a Morte. ‘Estou
aqui.’”
O
próprio Tolstoi narrou posteriormente que “um tremor frio percorreu-me a
espinha. Sim, a Morte. Ela virá, já está aqui, embora nada tenha a ver comigo
agora [...]. Todo o meu ser padecia com a necessidade de viver, o direito de
viver e, no mesmo instante, senti a morte em ação. E foi horrível ser partido
por dentro. Tentei afastar meu terror. Achei um toco de vela em um cadelabro de
bronze e o acendi. A chama avermelhada, a vela mais curta que o castiçal, tudo
me dizia a mesma coisa: não há nada na vida, não existe nada a não ser a morte
e a morte não deveria existir!” Sobre a experiência esquisita e apavorante do
escritor russo, Kerry Walters conclui: “Tolstoi iniciou a viagem de volta para
casa completamente mudado. Essa horrível noite de pânico da morte no fim do
verão de 1869 marcou-o para o resto da vida. O conto de Tolstoi ‘A morte de
Ivan Ilych’, um dos retratos ficcionais mais absorventes e autênticos do
processo de morrer, surgiu dessa experiência”.
Certa
vez me perguntaram se eu tinha medo de morrer. Respondi que não gostaria de
morrer; por isso, há dentro de mim o receio da morte. Tal como Tolstoi, eu só
poderia encará-la com amedrontamento. No entanto, em maior ou menor grau,
embora o medo da morte seja um sentimento universalmente experimentado,
existiria a possibilidade de a “indesejada das gentes” ser enfrentada com certa
coragem e até mesmo com esperança? Ou seria muita pretensão só cabível na
ficção poética de Manuel Bandeira?
“Quando
a Indesejada das gentes chegar / (Não sei se dura ou caroável), / Talvez
eu tenha medo. Talvez sorria, ou diga: / — Alô, iniludível! / O
meu dia foi bom, pode a noite descer. / (A noite com seus
sortilégios.) / Encontrará lavrado o campo, a casa limpa, / A
mesa posta, / Com cada coisa em seu lugar.”
Quem
não se lembra daquele ente amado pelo qual são derramadas lágrimas de saudade?
Eu mesmo já perdi para a morte – recentemente até – algumas pessoas preciosas.
A consciência da perda (saber que meus queridos passaram para a inexistência
antes de mim) aumentou ainda mais minhas reflexões acerca do processo de
morrer, o qual já começa com o nascimento. Pois, diferentemente dos animais, o
homem morre e sabe que morre. Esse conhecimento instiga seu temor e curiosidade
a ponto de questionar: “O que acontecerá comigo quando eu me for? Desaparecerei
para sempre ou haverá alguma forma de sobrevivência do meu eu?”
Constitui
a vida uma trajetória para o nada, a completa dissolução a ponto de virarmos
“poeira das estrelas”? Ou morrer significa a “passagem” para um suposto mundo
pós-morte, de acordo com algumas crenças religiosas? Morrendo, entramos de fato
na extinção total ou passamos para outro estado de “vida”? São ideias
antagônicas apresentadas à humanidade, as quais nos desafiam a investigar a
natureza da morte e a buscar um meio de escapar dela.
Comecemos
pela proposta niilista. Livros como Nos Cumes do Desespero (1932), Breviário
de Decomposição (1949), A Tentação de Existir (1956)
e Do Inconveniente de Ter Nascido (1973), todos do filósofo
romeno Emil Cioran, exalam um pathos nauseante como se
quisessem mostrar que a vida é mero acidente, sendo a morte a regra inexorável
da existência, que sempre existiu e sempre existirá. Tudo morre e morrerá. Diz
Cioran: “É porque ela não repousa sobre nada, porque carece até mesmo da sombra
de um argumento que perseveramos na vida. A morte é demasiado exata; todas as
razões encontram-se de seu lado. Misteriosa para nossos instintos, delineia-se,
ante nossa reflexão, límpida, sem prestígios e sem os falsos atrativos do
desconhecido.” Por outro lado, “com efeito, se o homem vem do nada para, no
fim, retornar ao nada, por que, então, não ficou no nada de vez? Seria a
parábola da vida um desvio breve, inútil e absurdo? É o que exprime a inscrição
de um epitáfio romano antigo: In nihil ab nihilo quam citius recidimus (‘Quão
rapidamente caímos do nada para o nada’)”. Para os mortalistas modernos, “os
homens não passam de futuros mortos”, ou no verso pessimista de Fernando
Pessoa, “cadáveres adiados que procriam”.
Na
obra O Livro do Sentido: Crise e busca de sentido hoje (volume
I), o teólogo católico Clodovis Boff enuncia as raízes ontológicas da vontade
de viver. Em outra perspectiva, a da esperança firmada no Transcendente, ele
expõe convicção contrária ao pensamento de Emil Cioran: “Se o sentimento de
finitude e, portanto, de insegurança e angústia é elementar, especialmente em
relação à morte, não constitui, contudo, o stimmung primeiro e
mais profundo, como querem as atuais filosofias pessimistas. [...] A disposição
mais originária do ser humano é a da criaturalidade, esse sentimento positivo e
maravilhoso de viver, que é o sorver a vida em sua própria fonte criadora. Ora,
é aí que se encontra a origem última da ‘vontade de viver’, e de viver cada vez
mais. Portanto, a disposição existencial de estar voltado para a vida é mais
radical do que a de estar voltado para a morte. O apetite de viver é mais
arcaico e mais poderoso do que o de morrer. A pulsão de morte tem raízes
psicológicas e mesmo existenciais, mas só a pulsão de vida tem raízes
verdadeiramente ontológicas. [...] O Homo religiosus, por sentir a
existência como um dom do alto, vive a experiência de finitude não só de modo
conformado, mas na gratidão, na confiança e na coragem. Como finito, o homem
sente-se ‘dado’, e dado por Alguém. [...] Exclama então: ‘Como é maravilhoso
existir, quando se poderia não ter vindo à existência. E se existo, não
precisando existir, é porque existo de graça e por graça. Gozo de uma vida que
me é dada, sem tê-la em absoluto merecido.’ [...] Portanto, a experiência
exultante da criaturalidade, a experiência de ser criado, propicia afirmar-se
diante de um mundo precário e perigoso a partir da vinculação ontológica com a
fonte de tudo.”
Por
mais desalentador que seja, eu tenho de concordar com o pensamento niilista num
único aspecto: ao morrer, o homem adentra o reino do esquecimento e da
inexistência completa. Morte é morte mesmo, em que tudo se desfaz e nada
sobrevive. Contudo, discordo do espírito absoluto do niilismo, porque acredito
no triunfo da vida mediante a esperança escatológica. O que isso significa?
Partindo do pressuposto bíblico, assim como a vida surgiu por intervenção
sobrenatural, quando, no princípio, a Terra “sem forma e vazia” (em estado
caótico e morta, por assim dizer) foi organizada e embelezada por Deus,
semelhantemente esse mesmo Ser intervirá na situação trágica atual do planeta
para trazer de volta aquela condição de existência original da qual a morte não
fazia parte. Essa fé no ato divino de recriação, que o ateu niilista considera
utopia e consolo enganoso, para o crente é sólida certeza baseada na promessa
da ressurreição e restauração total de todas as coisas, consoante a revelação
cristã (1 Coríntios 15).
Voltemo-nos
agora para outra compreensão radical acerca da morte, defendida pelas correntes
religiosas que tomam os termos “espírito” e “alma” como entidades conscientes
que sobrevivem ao desfazimento do corpo. Alicerçado sobre a crença equivocada
de que o homem é inerentemente imortal, o espiritualismo, em todas as suas
vertentes, apregoa o seguinte: “Morrer não é morrer”, mas entrar num plano
alternativo de “existência”. À primeira vista, tal fé parece manter
certo ponto de contato com a máxima do químico francês Lavoisier: “Na natureza
nada se cria, nada se perde, tudo se transforma.” Logo, a morte
seria apenas um tipo de transição, e o corpo físico mero invólucro da alma que
nunca perece. Essa ideia persuasiva, que vem desde a antiguidade, herdada da
mentalidade grega e incorporada a crenças cristãs contemporâneas, tornou-se a
“esperança” de grande parte da humanidade não conformada com o aniquilamento do
ser. Entretanto, a concepção espiritualista é totalmente estranha e antagônica
ao pensamento judaico-cristão pautado nas Escrituras, uma vez que na
antropologia bíblica o homem, ser vivente, não tem uma
alma, ele é uma alma que morre. Portanto, a dicotomia
separatista espírito/corpo encontra no testemunho bíblico seu
mais forte oponente. Nesse aspecto, o espiritualismo constitui um engano
religioso de primeira linha, sustentado na grande mentira dita à mulher no
Éden: “Certamente não morrereis” (Gênesis 3:4).
Confrontados
com o ensinamento bíblico, tanto o niilismo, que nos empurra para o nada
absoluto, quanto o dogma espiritualista, que não reconhece a natureza
essencialmente mortal do ser humano, apresentam-se como propostas poderosas e
cativantes, mas são profundas distorções da verdade no plano filosófico e
religioso. O primeiro, com seu olhar extremamente pessimista, contempla a
precariedade humana e as tragédias do mundo e deduz que a vida, imersa no
escuro, será desfeita no nada total; já o segundo – sendo uma forma elaborada
de negação da morte – assume feição enganosa ao aproveitar-se do nosso desejo
de imortalidade e da intuição elementar e legítima de que não fomos criados
para cair definitivamente no esquecimento, já que “Deus pôs no coração do homem
o anseio pela eternidade” (Eclesiastes 3:11). Nesse caso, o espiritualismo
coloca uma máscara na face da morte, escondendo a fealdade dela por meio da
contrafação. A “solução” advinda desse sistema religioso, embora atraente para
muitos, é fábula na forma de doutrina que, no fim, acabará decepcionando quem
nela acredita.
Retomando
a experiência de Tolstoi, reflete Kerry Walters: “Muitos de nós tivemos nossa
própria noite escura de Arzamas, na qual fomos atingidos no estômago pela
percepção de que um dia a morte vai nos aniquilar completamente, que o mundo
vai continuar e nós não vamos. Nesses momentos de desorientação, não adianta
apelar ao antigo argumento de Epicuro, de que ‘onde a morte está eu não estou e
onde eu estou a morte não está: então, por que temer a morte?’” Penso eu que só
temos condição de não temê-la, escapando de sua soberania, por meio da fé bíblica
– “uma afirmação triunfante da vida” –, na qual vislumbramos tanto a explicação
do enigma quanto a saída final desse cativeiro. Dessa forma, só existe uma
proposta – nem fatalista nem ilusória – capaz de nos trazer a solução desejada:
o drama histórico da crucifixão de Cristo, cujo significado assume proporções
que transcendem as fronteiras do nosso mundo para repercutir por todo o
Universo.
Na
experiência do “bom ladrão”, naquela tarde de sexta-feira crucial, a morte
defrontou-se com a esperança última, perdendo a supremacia ontológica. Em seu
momento decisivo, nem o niilismo nem o enganoso consolo espiritualista de vida
pós-morte ofuscaram a confiança do homem moribundo na Pessoa divina de Jesus.
Seu olhar encontrara a Verdade, o Doador da vida que também estava morrendo
pelos pecados dos seres humanos, segundo as Escrituras. Por meio da fé, o pobre
mortal teve a garantia de voltar a viver não naquele mesmo dia, mas na grande e
futura “manhã da ressurreição”. Apostando numa existência eterna, o ladrão
arrependido se lança nos braços de Deus com a súplica final: “Jesus, lembra-Te
de mim, quando entrares no Teu reino.” A resposta veio imediata: “Em verdade te
digo hoje: estarás comigo no paraíso” (Lucas 23:42, 43).
Diante
da “ameaça do não ser”, serão lembrados por Deus os mortais deste planeta? Se a
morte não deveria existir, mas entrou intrusamente em nosso mundo, governando
com mão de ferro a vida, então a esperança da raça humana é estar guardada na
lembrança de Deus. Seja qual for o momento – quando tudo vai bem ou quando
somos assombrados pelo espectro da morte –, cada pessoa precisa suplicar a
Jesus por existência eterna. Ele, que desceu à sepultura, mas, saindo dela,
afirmou triunfantemente “Eu sou a ressurreição e a vida” (João 11:25), não deixará
de ouvir o pedido daqueles cuja escolha em segui-Lo pode se dar mesmo nos
momentos derradeiros de vida.
Todos
os que desceram à sepultura, “dormindo em Jesus”, levaram consigo a promessa
divina de que serão vitoriosos sobre a morte para usufruir vida sem fim ao lado
do Criador. Eles partiram apossando-se das palavras ditas por Cristo ao
suplicante na cruz: “Estarás comigo no paraíso.” Vivendo ou morrendo, que a
oração do “bom ladrão” seja também a nossa: “Senhor, lembra-Te de mim!”
Frank
de Souza Mangabeira