Lendo Platão, eu me recordo de que “a natureza humana é
como um jarro rachado. Mal o enchemos, ele começa a se esvaziar”.
Consequentemente, surge a carência, a mãe dos desejos dos mortais. Em cada vida
existe uma falta significativa. Essa ausência fundamental constitui o dínamo de
todas as buscas, a força que nos impele para a frente e nos leva à realização
de atos nobres ou até absurdos e reprováveis. Perseguimos aquilo de que
sentimos necessidade, não é mesmo? A humanidade, de todos os séculos, há de
concordar comigo. Penso eu.
Do que o ser humano realmente precisa? As respostas multiplicam-se, conforme a carência nutrida. Para uns são as necessidades básicas – alimento, roupa, abrigo, etc. Ansiar tais coisas e exigi-las é legítimo. O clamor de milhões ecoa dia a dia pelo globo, como canção pungente – um réquiem prenunciador de morte –, rogando aos abastados o direito natural de possuir o fundamental para se viver. Privada dos bens de sobrevivência, a multidão padece à míngua, cercada, entretanto, de abundância. Na expressão apocalíptica, soa o apelo desses necessitados: “Quem tem ouvidos, ouça...” E quem tem coração ajude.
Outros não saberiam sobreviver sem coisas supérfluas, colocadas pela propaganda midiática como itens dos quais não se pode prescindir: celular, joias, carro novo, roupas “de marca”, e por aí vai. A lista prossegue ad infinitum... Muitos matam e morrem em razão de artigos perecíveis que “a traça rói e os ladrões roubam e minam”, consoante as palavras de Jesus Cristo. Ele também asseverou: “A vida de um homem não consiste na abundância de bens que possui.” A geração atual seria capaz de crucificá-Lo de novo, já que Sua incômoda afirmação choca-se frontalmente contra a era narcísica de consumismo voraz na qual nos encontramos.
De maneira perceptível, o
consumidor pós-moderno, em seu estado crítico de carência, devora não só
produtos, mas também informação, ideologias, tecnologia, ciência, filosofia e
múltiplas espiritualidades. Ainda assim, permanece faminto, insatisfeito, um eterno
glutão empanturrado de vazio. A realidade evidencia que o homem contemporâneo, imerso em seu conturbado
processo histórico, assemelha-se ao mítico rei grego Erisícton. Somos
acometidos de uma fome insaciável tanto pela matéria física quanto pelo
material simbólico. Essa ânsia ameaçadoramente destrutiva, se não for
controlada, tem o potencial de aniquilar o próprio eu.
Voltemos aos necessitados. Existem aqueles agrupados numa categoria sui generis, os quais não vivem sem o brilho do status. E o status assume variadas e disfarçadas feições: o mais inteligente, o mais poderoso, o mais influente, o mais conquistador, o mais bonito, o mais... Não devemos nos esquecer também dos indivíduos sob constante excitação e adrenalina. Prazeres, festas, luzes, sons e badalação, eis o alvo e referência desse grupo. Eu poderia inventariar outras classes de seres carentes; contudo, vou parar por aqui com mais uma afirmativa categórica de Jesus: “Filho, uma coisa te falta.” A carapuça que Sua declaração traz ajusta-se na cabeça de todos nós.
Entre inúmeras coisas importantes, pressinto a falta de uma que é suprema. Você, leitor, seria capaz de identificá-la em mim, em ti, em nós? Ai! A visão humana é tão míope, finita, embaçada, sempre desviando o olhar para outros elementos mais aparentes, mais atraentes, mais “necessários”. Eu vou lhe dizer em que consiste a falta essencial. Podemos classificá-la como um princípio latente, inconsciente, subjacente à estrutura do Homo sapiens (sapiens?). Não estranhe o eco (-ente) nos três adjetivos: enfatiza a insistência humana em querer ter sua carência basilar satisfeita.
A quintessência presente nas grandes almas não é algo além do alcance da frágil natureza humana. Está disponível a qualquer desejante em potencial, bastando apenas que se tenha boa vontade e decisão em adotá-la como princípio norteador da vida. Encontra-se por trás do silêncio; no inaudito diz tudo, mas também se revela nas palavras simples ou eloquentes. Esconde-se em ações pequenas e GRANDES e oculta-se à sombra de declarações corriqueiras e aparentemente envelhecidas pela banalidade dos superficiais. “Posso fazer algo por você? Eis aqui minha mão estendida”; “Choro com o seu sofrimento”; “Eu o entendo e o acolho, embora tenhamos diferenças”. Tais frases, entremeadas com a semântica da vida, afugentam o egoísmo natural que dá voltas em torno do próprio umbigo. Não se desgastam com o passar dos dias, não desaparecem diante das provas do quotidiano nem evaporam sob o calor massacrante da rotina; elas se renovam em cada enunciação e ação.
Apresento-lhe a falta essencial, a palavra-chave
realçada e repetida, implícita ou explicitamente, neste texto: o amor, energia
poderosa capaz de transformar o mais rígido e empedernido ser. Ele ultrapassa o
sentimentalismo barato, indo além do discurso morto dos conceitos abstratos a
fim de salvar a experiência humana do niilismo com seu abismo existencial. Em
nossa contingência abissal, o amor é a corda lançada no poço sem fundo para de
lá resgatar quem está caindo. Ou no pensamento que só a pessoa encharcada de poesia
poderia expressar: “Tudo que sabemos do amor é que o amor é tudo que existe. É
o tudo e o nada, o momento que passa e o infinito que fica, a transfiguração
dos mundos.”
Na percepção de quem ama, a Terra vem saindo de sua “órbita” porque a força da gravidade do amor enfraqueceu-se, deixando de exercer controle sobre nós. Estranhamente, no planeta da abundância falta o tudo. Apesar de tal constatação desanimadora, em sinal de esperança e resgate da vida, o amor, sempre aqui conosco, paira sobre cada ser necessitado, oferecendo plenitude, querendo resgatar o sentido trans-histórico ofuscado e deixado para trás. Sendo o poder mantenedor do equilíbrio universal, como palavra na boca dos humanos, o amor, todavia, constitui um grande problema de interpretação. Talvez por isso ele se apresente simples e complexo, perfeito e imperfeito, ambivalente. Uma coisa é certa, porém: sem amor perde-se o espírito comunicativo e desponta a carência do bom, do belo, do que dizer.
Quando o epílogo de tudo um dia chegar, o amor
permanecerá como o “amém do Universo”, a palavra final, pois estamos informados
mediante as reveladoras declarações inspiradas de que, ao término do grande
conflito da vida, com a extinção do pecado – o opositor do amor –, o Universo
inteiro será purificado. Nesse cenário de nova realidade, “uma única palpitação
de harmonioso júbilo vibra por toda a vasta criação. DAquele que tudo criou
emanam vida, luz e alegria por todos os domínios do espaço infinito. Desde o
minúsculo átomo até ao maior dos mundos, todas as coisas, animadas e
inanimadas, em sua serena beleza e perfeito gozo, declaram que Deus é amor”.
O amor – a alma do mundo – configura-se no caminho
mais excelente e seguro a percorrer, sendo a prova da ligação do homem com o
Transcendente. Somos capazes de viver sem muitas coisas, exceto sem o amor. Não
se pode existir sem o desiderato da vida. Tem carência dele, caro leitor? O
mundo inteiro tem.
Frank de Souza
Mangabeira