A
Teologia da Libertação acabou? Sim e não. Sim, porque ela não é mais a Teologia
“oficial” da América Latina. Grande parte de seus expoentes está em idade
avançada ou fora do debate teórico e prático (pastoral) do magistério da
Igreja. Além disso, ela sofreu duras críticas do oficialato do Vaticano desde
os anos 1980. Sua origem se deu em meio ao nascimento dos movimentos políticos,
na cidade e no campo, nos anos 1960 na América Latina, e varreu grande parte do
continente, principalmente do Brasil até o México. Muitos padres e freiras se
envolveram em lutas contra regimes totalitários nesses países, como no Brasil,
na Nicarágua e em El Salvador. O papel da Teologia da Libertação ao lado da
luta pela liberdade política no continente é inegável. Mas, se essa origem e
realidade política foram de grande valor histórico, foram também sua maldição.
Não,
a Teologia da Libertação não acabou, porque continua impregnada na formação e
nas aspirações de grande parte do clero e daqueles que aderem à Igreja nos
países em desenvolvimento, justamente aqueles em que o catolicismo ainda tem
alguma vitalidade. A razão de a Teologia da Libertação permanecer viva de
alguma forma é simples, e o próprio cardeal Joseph Ratzinger (futuro papa Bento
XVI) reconhecia essa razão em seus textos dos anos 1980: a Teologia da
Libertação parte de um dos centros da experiência bíblica, o profetismo
hebraico. Ele tem um forte apelo ético, social e político, eixo central da
Teologia. Deus não é apenas místico, é também revolucionário. Ou revolucionário
místico. Essa seria a melhor forma de descrever o modo como a Teologia da
Libertação compreende seu Deus.
O cristianismo descende do profetismo hebraico. Tal vertente se caracteriza
pelo afastamento do judaísmo antigo de sua primeira fase organizada, conhecida
como “judaísmo do templo”, marcado por uma forte associação da casta política à
casta sacerdotal. Dito de outra forma, a elite política e a elite religiosa
eram a mesma ou muito próximas.
Tal fato sempre é corriqueiro na história das religiões. No caso do
cristianismo, ele sempre teve uma dupla face: um amor pela instituição do poder
(foi o herdeiro do espólio do Império Romano) e um mal-estar com esse mesmo
poder. O advento da Teologia da Libertação repete, assim, uma velha vocação do
cristianismo: sentir-se mal com os poderes do mundo.
No mundo do hebraísmo antigo, os profetas iniciam então uma dupla “campanha”:
contra o abuso das elites e contra o relaxamento da observação dos mandamentos
de Deus por parte tanto da elite quanto do “povo”. Os profetas da ira do Deus
de Israel acusaram a elite israelita de ser gananciosa, hipócrita e egoísta. Os
termos não variariam muito se falássemos de nossa própria elite.
Variando de intensidade e modos de expressão, os profetas trazem a marca do
descontentamento de Deus com Israel e avisam ao povo que Deus não quer
sacrifícios, mas sim que cuidem dos doentes, dos órfãos, das viúvas e dos
pobres. Dito de forma sintética: Deus quer um “projeto social” para Seu povo.
Ele não toleraria acúmulos absurdos de riqueza e mentiras. Ele olha o coração
do homem e vê ali o mal, pouco importa se ele cumpre sua cota de animais mortos
em sacrifícios.
Esse fenômeno ficou conhecido, por intermédio do grande sociólogo alemão Max Weber,
como “desencantamento do mundo” ou, mais especificamente, desmagificação.
Acostumados com uma religião praticada pelos sacrifícios de animais e rituais “mágicos”,
os antigos conheceram na figura do profetismo hebraico o nascimento de uma
religião ética e política. Deus Se preocupa mais com nossos atos e menos, ou
não apenas, com nossos ritos.
É, justamente, nesse viés que surgem as profecias acerca da vinda do Messias,
responsável pela realização plena deste mundo ético desejado por Deus. Jesus é
visto como esse Messias pelos judeus que fundarão a seita do Galileu.
Por isso tudo, a Teologia da Libertação é reconhecida pelo teólogo Ratzinger
como justa e correta em sua raiz cristã, na medida em que parte de um anseio
que marca o cristianismo em sua matriz: uma crítica ao esvaziamento ético do
judaísmo oficial e uma defesa da atenção com os mais “fracos”. Nisso, a
Teologia da Libertação é absolutamente correta, em seu pressuposto de “opção
pelos desfavorecidos” e de recusa à ordem injusta do mundo.
Há, todavia, um erro sério nela, e esse erro é responsável pelas várias
críticas que ela recebeu ao longo dos últimos, grosso modo, 35 anos: sua
associação com a hermenêutica marxista e sua contaminação com a política
partidária. O pecado da Teologia da Libertação foi se apaixonar pelas práticas
políticas da esquerda latino-americana.
A posição de Ratzinger define a atitude institucional da Igreja diante da
Teologia da Libertação, na medida em que ele era representante da guarda da
doutrina reta para a Igreja. Ele afirma que a confusão que a Teologia da
Libertação fez ao assumir o materialismo histórico de Marx como ferramenta de
interpretação da história da salvação implicaria uma evidente eliminação do
componente confessional em favor da prática político-partidária. O resultado é
que os teólogos “progressistas” acabaram por assumir o proletariado como o novo
“povo de Deus”, em detrimento da totalidade da humanidade.
O marxismo necessariamente leria a história da salvação como luta de classes,
enquanto o cristianismo deveria ler essa história da salvação como um caminho
de inserção do amor de Deus no mundo. A salvação no cristianismo é uma história
da “caridade” (amor de Deus), e não uma história do “justo ódio”, defendido
pelos revolucionários marxistas.
Para
a Igreja, a história da salvação passa, no plano humano, aquele que está a
nosso alcance, pela transformação espiritual do homem, e não pela aceitação das
demandas de uma prática política, muitas vezes violenta. Resumindo, a Teologia
da Libertação acabaria por escolher Barrabás, o herói político judeu, em lugar
de Jesus, o homem-Deus que era contra toda forma de partidarismo militante
violento.
O
correto carisma profético cristão se perde numa plataforma política que não
precisa da Teologia para realizar sua revolução, e os padres se transformariam
em pregadores da revolução. O próximo passo seria uma Igreja de padres ateus.
O
“reinocentrismo” (termo usado para criticar os excessos políticos da Teologia
da Libertação) é precisamente este passo em falso: em nome da justiça social, o
clero latino-americano estaria disposto a negociar o caráter confessional da
Igreja. A práxis política a levaria a negociar tudo pelo reino de Deus justo no
mundo, mesmo que sem Deus.
Outro pecado da Teologia latino-americana de esquerda, diretamente ligado ao
anterior, é sua tendência a atenuar a identidade católica em favor de um “respeito”
maior por outras identidades, como as “espiritualidades” indígena ou africana.
A causa evidente desse “relativismo do diálogo” é a identificação de grupos,
como índios ou negros, como vítimas históricas da catequese católica colonial,
em associação com os interesses das coroas portuguesa e brasVieira. Esses
grupos são, portanto, objeto de atenção prioritária por parte daqueles que
escolhem os desfavorecidos como o novo “povo de Deus”. O “reinocentrismo”
político convive bem com esse relativismo e, por isso, se associa ao viés
político dominante em sua história.
Talvez
o efeito mais nefasto da Teologia da Libertação aos olhos da Igreja seja o
esvaziamento “moderno” (porque em sintonia com os estudos históricos do
protestantismo liberal alemão do século XIX) que ela correria o risco de fazer
da divindade de Cristo, tornando-o apenas mais um “libertador”, aos moldes de
um Che Guevara, palatável a gregos e troianos e, portanto, mais à mão em meio à
diversidade cultural do continente. Ainda que nunca tenha sido um postulado da
Teologia da Libertação, essa proposta de desdivinização de Cristo, a acentuação
de Sua “humanidade”, a fim de torná-Lo menos “autoritário”, poderia estar no
horizonte dos desdobramentos indesejáveis dessa revolução de Jesus.
Por último, mas não menos importante, vale a pena citar a tendência da Teologia
latino-americana de esquerda a se aproximar de espiritualidades “nova era”,
somando ao Deus bíblico atributos de um culto da natureza e sua “deusa”,
tornando o cristianismo mais ecologicamente correto e, ao mesmo tempo, mais
próximo de modos pagãos de crença. Um exemplo desse viés é a “feminilização de
Deus” (reduzindo Seu caráter “patriarcal”), fazendo dEle um trunfo na mão das
feministas católicas. Um risco concreto e temido pelo magistério da Igreja é
que movimentos feministas como “católicas pelo direito de decidir” acabem por
se aproximar da defesa do aborto na América Latina.
Se
a Teologia da Libertação está acuada em sua natureza de flerte com a política
de esquerda e seus “amores pela modernidade”, ao mesmo tempo ela carrega em si
a marca de uma justa opção bíblica por um cristianismo ético, social e
político. Esse clamor continua operando na escolha de muitos jovens por uma
vida religiosa na América Latina e na África, porque, nesses países, a agonia
social é evidente. Se ela está “proibida”, permanece viva como visão correta do
papel do cristianismo e continua encantando inúmeras vocações. Ao contrário da
Igreja dos países ricos, no Terceiro Mundo a Igreja ainda detém certa imagem de
não ser apenas um reduto de políticos, escândalos financeiros e abusos sexuais.
A Teologia da Libertação, mesmo combalida, convive bem com a imagem de uma
Igreja moderna, aberta às demandas de um mundo em agonia e em transformação
crescente.
É difícil dizer que a Teologia da Libertação tenha acabado definitivamente,
porque ela está impregnada de uma das faces mais essenciais do cristianismo: a
ideia de um Deus ético, crítico dos abusos do poder e sensível à infelicidade
dos aflitos do mundo.
(Luiz Felipe Pondé,
Época, 18/3/2013)