quarta-feira, abril 30, 2008

Paradoxo ateístico

“Uma coisa é desejar ter a verdade do nosso lado, outra é desejar sinceramente estar do lado da verdade.” – Richard Whately

O último censo populacional do IBGE mostrou um paradoxo brasileiro: ao mesmo tempo em que o número de evangélicos cresceu, outro grupo apresentou percentuais elevados em relação a anos anteriores – o dos que se declaram sem religião. Mas o que chama mesmo a atenção é o surgimento de uma nova figura no panorama religioso do país: o ateu militante. À semelhança dos religiosos, eles organizam encontros, participam de grupos de discussão na Internet e até fundaram uma ONG, a Sociedade Terra Redonda. O objetivo não é outro senão conclamar as pessoas sem fé religiosa a assumir o próprio ateísmo.

De certa forma, é até compreensível esse empenho ateístico. Durante muitos séculos, descrer em Deus era algo visto com muito preconceito e até perseguição (os inquisidores medievais que o digam). E não custa nada lembrar que em algumas nações (e por parte de algumas pessoas) ainda persiste a intolerância religiosa. A resistência às religiões de cunho sentimentalista e fortemente baseadas em sinais miraculosos também pode ser um motivo para tantos estarem migrando para o extremo oposto.

O psicólogo norte-americano Michael Shermer, diretor da Sociedade dos Céticos e autor do livro Fronteiras da Ciência: Onde o que Faz e o que Não Faz Sentido Se Encontram, aponta ainda outro problema: o aumento do irracionalismo. Pesquisas mostram que cada vez mais se acredita em astrologia, experiências extra-sensoriais, bruxas, alienígenas e discos voadores. Para ele, “o irracionalismo tem aumentado principalmente por culpa da comunicação de massa e da Internet. As pessoas que vivem da exploração dessas crenças são hábeis na utilização desses recursos. As religiões tradicionais vêm perdendo muito espaço nos últimos anos, o que tem deixado um campo aberto para crenças alternativas como paranormalidade e cultos da Nova Era”. O problema é que os ditos céticos acabam colocando no mesmo saco todo tipo de crença, como fez exatamente o engenheiro Daniel Sottomaior, em resposta ao meu artigo “Cristo ainda é manchete”, publicado neste Observatório.

A julgar pelos mais de 800 colaboradores cadastrados na Sociedade Terra Redonda (da qual Sottomaior é membro), cujo site tem mais de 70 mil visitas por mês, a maioria dos ateus brasileiros é jovem e vem da área de Ciências Exatas. “Somos racionalistas, e uma de nossas funções é denunciar falsos milagres”, diz o programador de computadores Leo Vines, de 24 anos. Vines, que é o presidente da Sociedade, afirma ainda que “quem examina a questão da existência de Deus à luz de um método científico chega inevitavelmente à conclusão de que Ele não existe, já que não há nenhuma evidência concreta disso”. Mas será essa uma conclusão correta?

** CIENTISTAS QUE CRÊEM

Em 1916, cientistas americanos participaram de uma pesquisa sobre suas crenças religiosas. A mesma pesquisa foi repetida em 1996. Surpreendentemente houve pouca mudança nesses 80 anos. Em ambos os casos, cerca de 40% dos cientistas disseram acreditar em um Deus pessoal, 45% disseram não acreditar e 15% não responderam. Se o método científico apontado por Vines, pelo qual se orientam os cientistas, demonstrasse realmente a inexistência de Deus, não haveria sequer um cientista crédulo.

O escritor italiano Umberto Eco, reconhecidamente agnóstico, escreve no livro Em que Crêem os que Não Crêem? (Editora Record) que, se a vida de Jesus Cristo for apenas um conto imaginado pela humanidade, o simples fato de o homem ter criado toda uma ideologia sobre o amor baseada numa figura fictícia já seria um mistério insondável. Admissão sincera, que deveria ser levada em conta pelos que se negam a ver a lógica, a coerência e a beleza da religião bíblica.

** RELIGIÃO RACIONAL

“Se você abandona a capacidade crítica de pensar cientificamente, pode acreditar em absolutamente tudo”, diz o psicólogo Michael Shermer. De fato, existe esse perigo, como também há o perigo de descrer de tudo. Talvez por isso o apóstolo Paulo, em Romanos 12:1, classifique o verdadeiro culto como “racional”, nada tendo a ver com a emotividade vazia de muitos cultos sensacionalistas modernos. O Criador é o Deus que convida: “Venham cá, vamos discutir este assunto” (Isaías 1:18, BLH). Deus não é irrazoável. Embora nossa aceitação de Sua existência e das verdades reveladas por Ele se baseiem na fé, há evidências suficientes para o observador atento e livre de preconceitos. Afinal, mesmo quando utilizamos a “capacidade crítica de pensar cientificamente”, chegamos à conclusão de que o Universo é obra de um Planejador inteligente, pois o efeito pressupõe uma causa. O acaso e a não-intencionalidade jamais responderam à pergunta fundamental “de onde viemos?”.

Sottomaior afirma que “a religião é intrinsecamente oposta à contestação”. Mas o apóstolo Paulo dá a entender que não há nada de errado com o emprego da razão na busca de respostas, quando diz que se deve examinar tudo e reter o que é bom (1a Tessalonicenses 5:21). O problema consiste em querer utilizar a razão humana para mensurar o que está além dela. Aliás, diga-se de passagem, a própria razão está além da razão. E julgar a razão pela própria razão é como definir uma palavra usando a própria palavra como sua definição, assim como na tautologia “a casa é vermelha porque é vermelha”. Como se sabe, tautologias nada provam.

Utilizar a ciência, uma ferramenta humana, para determinar a existência ou não de Deus é como tentar medir as distâncias cósmicas com uma fita métrica. Ou, para usar um exemplo mais conhecido, é tentar colocar o oceano em um buraquinho na areia. Eis aqui o paradoxo ateísta.

** CIÊNCIA E RELIGIÃO

Embora em meu artigo anterior eu nada tenha dito a respeito do adventismo e do criacionismo, Sottomaior aproveita a oportunidade para atacar outro ponto de vista com o qual discorda. No entanto, cada vez mais cientistas ao redor do mundo estão concluindo que a idéia de um planejamento inteligente para o Universo é lógica, ainda que nem todos se declarem criacionistas.

No livro Por Que Creio Naquele que Fez o Mundo (Editora Objetiva), o presidente da Federação Mundial de Cientistas, o católico Antonino Zichichi, faz afirmações bastante corajosas e pouco convencionais no mundo científico. Segundo ele, há flagrantes mistificações no edifício cultural moderno e que passam, muitas vezes, despercebidas do público em geral. Eis alguns exemplos: Faz-se com que todos creiam que ciência e fé são inimigas. Que ciência e técnica são a mesma coisa. Que o cientificismo nasceu no coração da ciência. Que a lógica matemática descobriu tudo e que, se a matemática não descobre o “Teorema de Deus”, é porque Deus não existe. Que a ciência descobriu tudo e que, se não descobre Deus, é porque Deus não existe. Que não existem problemas de nenhum tipo na evolução biológica, mas certezas científicas. Que somos filhos do caos, sendo ele a última fronteira da ciência.

Para Zichichi, a verdade é bem diferente. E a maneira de se provar a incoerência das mistificações acima consiste em compreender exatamente o que é ciência.

Foi Galileu Galilei quem lançou as bases da ciência experimental. A grandeza desse físico e astrônomo italiano, para quem “o Universo é um texto escrito em caracteres matemáticos”, não reside tanto em suas extraordinárias descobertas astronômicas, mas na busca de verificar se o resultado de experiências era ou não contrário à validade de determinadas leis. Para Galileu, as teorias deveriam ser testadas e repetidas a fim de serem consideradas verdadeiras. Graças a ele, pôde-se fazer separação entre o imanente e o transcendente. Como dizia um dos pais da física moderna, Niels Bohr, resumindo o pensamento galileano, não existem teorias bonitas e teorias feias. Existem apenas teorias verdadeiras e teorias falsas.

Por isso, Zichichi afirma: “Nem a matemática nem a ciência podem descobrir Deus pelo simples fato de que estas duas conquistas do intelecto humano agem no imanente e jamais poderiam chegar ao Transcendente” (Op. cit., pág. 16).

Uma teoria como a da evolução das espécies, com tantos “elos perdidos”, desenvolvimentos milagrosos (olho, cérebro, DNA, etc.), extinções inexplicáveis e fenômenos irreprodutíveis não é ciência galileana. “Eis porque”, diz Zichichi, “a teoria que deseja colocar o homem na mesma árvore genealógica dos símios está abaixo do nível mais baixo de credibilidade científica. ... Se o homem do nosso tempo tivesse uma cultura verdadeiramente moderna, deveria saber que a teoria evolucionista não faz parte da ciência galileana. Faltam-lhe os dois pilares que permitiriam a grande virada de 1600: a reprodução e o rigor. Em suma, discutir a existência de Deus, com base no que os evolucionistas descobriram até hoje, não tem nada a ver com a ciência. Com o obscurantismo moderno, sim” (Idem, págs. 81 e 82).

** PESQUISAS E PREMISSAS

Por mais que alguns queiram ignorar a realidade, especialmente no que diz respeito ao modelo da evolução, posto que não é fato científico confirmado (embora possua aspectos periféricos com os quais os criacionistas concordam), as premissas e a filosofia de vida dos pesquisadores influem diretamente em suas pesquisas. Bom exemplo é o do geólogo e pensador evolucionista da Universidade de Harvard, Stephen Jay Gould (falecido em 2002). Ele era marxista e é o autor da teoria do equilíbrio pontuado (saltacionismo), que é quase uma transposição literal da idéia da revolução para o mundo natural. Por isso mesmo, embora Gould faça bastante sucesso como escritor, grande parte da comunidade científica rejeita suas idéias “evolucionistas marxistas”.

E a conclusão de José Luiz Goldfarb, presidente da Sociedade Brasileira de História da Ciência, é a de que “nenhum cientista entra no laboratório sem uma visão de mundo mais complexa. O fato de a ciência funcionar em bases experimentais não significa que o cientista não tenha crenças ou pressupostos sobre a realidade” (Época, 27/12/99).

Michael Behe, autor do controvertido A Caixa Preta de Darwin (Jorge Zahar), vai na mesma direção, e diz que, “apesar da imagem popular, os cientistas são pessoas normais, com seus próprios preconceitos. Se alguém pretende desafiar uma crença profundamente defendida, pode esperar resistência”.

Em Grandes Debates da Ciência (Editora Unesp), Hal Hellman afirma que, “ao contrário dos erros tecnológicos, erros em ciência raramente são notícia. Em conseqüência, o público poucas vezes toma conhecimento dos caminhos equivocados pelos quais os cientistas muitas vezes enveredam. Mesmo no caso em que se divulga uma idéia científica incorreta, ninguém sabe que ela é incorreta; e quando se chega à idéia correta, ela é apresentada como uma nova descoberta, e a velha idéia é simplesmente esquecida. Mesmo em revistas científicas, relatos de resultados negativos raramente chegam a ser impressos, a despeito do fato de que possam ser muito úteis para os que trabalham na área” (pág. 14).

Hellman lembra ainda que “freqüentemente... o processo de descoberta científica está carregado de emoção. Quando apresenta uma nova idéia, é provável que um cientista esteja pisando nas teorias de outros. Os que sustentam uma idéia mais antiga podem não a abandonar de bom grado. ... É comum que alguma questão sutil, ou não tão sutil, ligada a crenças e valores, esteja subjacente ao debate. ... Os cientistas são suscetíveis de emoções humanas, ... são influenciados pelo orgulho, cobiça, beligerância, ciúme e ambição, assim como por sentimentos religiosos e nacionais; ... eles estão sujeitos às mesmas frustrações, cegueiras e emoções triviais que o resto de nós; ... eles são, na verdade, completamente humanos” (Idem, págs. 14, 16 e 18). Ateus ou não; cientistas ou não; todos agem e tiram conclusões não apenas com base na objetividade racional.

O professor Del Ratzsch, especializado em filosofia da ciência, em seu livro The Battle of Beginnings (sem tradução para o português), também faz algumas reflexões sobre o assunto. Às páginas 122 e 123, ele afirma que “as teorias – principalmente teorias explanatórias – não podem ser geradas por meios puramente lógicos ou puramente mecânicos a partir de dados empíricos. Elas são resultado de criatividade e invenção. ... As teorias não podem ser provadas de maneira conclusiva nem deixar de ser comprovadas exclusivamente com base em dados empíricos. Na verdade, os cientistas freqüentemente continuam a defender firmemente certas teorias mesmo diante de clara evidência contrária. ... A estrutura e natureza de teorias específicas, os conceitos que elas empregam, sua avaliação e o critério que determina sua aceitabilidade ou inaceitabilidade e sua aceitação ou rejeição estão todos ligados não só aos dados mas também aos princípios modeladores que alguém aceita. E esses princípios modeladores também não surgem só de dados empíricos”.

Não é difícil perceber que na ciência, como em qualquer outra área do saber, há mais do observador envolvido na pesquisa do que simplesmente faculdades sensoriais funcionando mecanicamente. Em muitos casos de percepção, o pesquisador inconscientemente “preenche” vários aspectos da própria experiência, geralmente sem perceber, e o formato que esse preenchimento assume é moldado em parte por suas expectativas, seu compromisso intelectual, sua predisposição teórica e até mesmo suas crenças (ou a falta delas).

Uma vez que as teorias são inevitavelmente indeterminadas por dados empíricos, se formos selecionar algumas teorias propostas e reivindicar que elas sejam verdadeiras, então a seleção não pode ser feita com base puramente empírica. Pelo menos algumas considerações não empíricas deverão desempenhar certo papel nessa seleção.

Na verdade, o que se nota é um exagero na objetividade e infalibilidade da ciência. Por mais importante que ela seja, não está imune à subjetividade, uma vez que é uma ferramenta humana.

Um bom exemplo é dado por Thomas Kuhn, em seu livro A Estrutura das Revoluções Científicas. Ele pergunta, à página 76: Um átomo de hélio é ou não uma molécula? Para o químico, é uma molécula porque se comporta como tal do ponto de vista da teoria cinética dos gases. Para o físico, o hélio não é uma molécula porque não apresenta espectro molecular. Portanto, os paradigmas e a formação das pessoas interferem, sim, em seus julgamentos sobre a realidade. E o que ocorre no campo religioso por certo também acontece no que diz respeito à ciência e à chamada racionalidade.

Isso explica por que, entre os cientistas, há crentes e ateus (como entre a população em geral). Se a existência de Deus (ou Sua inexistência) fosse algo demonstrável nos domínios da ciência experimental, só haveria um grupo de cientistas: crédulos (ou incrédulos).

Para Zichichi, Deus transcende a lógica matemática e a ciência. Por isso, “é inconcebível que possa ser descoberto pela lógica matemática ou pela ciência. A lógica matemática pode descobrir tudo aquilo que faz parte da matemática. E a ciência, tudo que faz parte da ciência. ... O ateu, na verdade, diz: ‘Por amor à lógica, não posso aceitar a existência de Deus.’ Mas o rigor lógico não consegue demonstrar que Deus não existe” (Op. cit, págs. 159 e 162). Quando a “ciência” opta por excluir o conceito de um Criador, deixa claro, com isso, que não é uma busca aberta da verdade, como tantas vezes quer parecer ser.

Na verdade, tudo ficaria mais claro (e lógico) se as pessoas admitissem, como fez Galileu, que tanto a natureza quanto as Escrituras Sagradas são obra do mesmo Autor e, embora utilizem linguagem diferente, não estão em contradição para o observador atento. As “contradições” bíblicas apontadas por Sottomaior em seu artigo são apenas aparentes, para o pesquisador isento. Comparando texto com texto, dentro de seus respectivos contextos, pode-se perceber a harmonia do cânon bíblico, a que me referi no artigo “Cristo ainda é manchete”.

“Não sabemos o que e quanto desconhecemos”, escreveu o zoólogo Dr. Ariel Roth, no livro Origens (Casa Publicadora Brasileira). “A verdade precisa ser buscada, e devia fazer sentido em todos os campos. Devido a ser tão ampla, a verdade abrange toda a realidade; e nossos esforços para encontrá-la deveriam também ser amplos” (pág. 51).

Michelson Borges