É nos alvéolos que toda a mágica acontece. Lá ocorre a hematose, onde o gás oxigênio difunde-se para os capilares sanguíneos, penetra nas hemácias e se combina com a hemoglobina. A partir daí será distribuído pelos tecidos, alimentando as células do organismo. Enquanto isso, o gás carbônico é expulso pelos pulmões através da expiração.
Em média, um ser humano efetua 23 mil ciclos respiratórios por dia.[1] Entretanto, para que isso ocorra perfeitamente, muita coisa precisa operar nos devidos conformes. Os alvéolos apresentam certa tendência ao colabamento, isto é, o ato de comprimir sua estrutura tubular, fazendo com que suas paredes se toquem e se liguem umas às outras; isso resultaria no colapso alveolar que causaria dificuldade respiratória e hipóxia (baixa concentração de oxigênio no sangue), sendo fatal.[2] O grande fator responsável pela tendência ao colabamento dos alvéolos é um fenômeno conhecido por tensão superficial, que acontece devido à grande quantidade de moléculas de água revestindo a parede interna das estruturas pulmonares. Todavia, a tensão superficial no interior dos alvéolos seria bem maior do que já é se não fosse a presença, nos líquidos que os revestem, de uma substância lipoproteica chamada surfactante pulmonar, cuja função primária é minimizar essa tensão na interface alveolar, otimizando a mecânica da respiração e evitando o colapso alveolar, especialmente no fim da expiração. Isso facilita o funcionamento do sistema respiratório, aumentando a complacência dos pulmões e consequentemente diminuindo o esforço para se respirar, além de favorecer a entrada e circulação do oxigênio no sangue. Um verdadeiro milagre!
Na ausência desse eficiente mecanismo, a vida de muitos seres vivos estaria comprometida, pois toda vez que um mamífero fosse respirar, seus alvéolos literalmente grudariam como grudam superfícies molhadas de papel, e ele morreria asfixiado. Quando há uma quantidade inadequada de surfactante nos alvéolos, ocorre a síndrome do desconforto respiratório, principalmente associada a recém-nascidos muito prematuros que não têm produção suficiente da substância para garantir uma respiração eficiente, o que causa uma enorme dificuldade para respirar.[2]
O surfactante é produzido ao longo do amadurecimento dos pulmões do embrião, após cerca de 28 semanas. Por isso, um nascimento prematuro pode causar a síndrome e mesmo a fatalidade.[3] Floros e colegas[4] demonstraram que a síndrome leva a atelectasia alveolar, edema e lesão celular; subsequentemente, proteínas que inibem a função do surfactante extravasam para dentro dos alvéolos aumentando o conteúdo de líquido no local. Esses mecanismos associados à imaturidade pulmonar do recém-nascido prematuro são incapazes de remover esse líquido adequadamente, e a baixa área de superfície para troca gasosa pode gerar importante dificuldade respiratória nos pacientes neonatais.
Algo semelhante pode acontecer em vítimas do tabagismo, pois ratos cronicamente expostos à fumaça de cigarro apresentaram decréscimos significativos na quantidade de surfactante pulmonar.[5]
Também anormalidades nos níveis de surfactante podem provocar doenças respiratórias, como a pneumonia causada por Pneumocystis carinii.[6]
O mais curioso é que os surfactantes pulmonares precisam estar finamente ajustados para cumprirem seu funcionamento plenamente, foi o que relatou Jon Goerke, professor do Departamento de Fisiologia da Universidade da Califórnia.[2] Isso exemplifica a importância dos surfactantes em manter os pulmões sempre ativos e capazes de realizar as trocas gasosas adequadamente. Sem esse mecanismo, eu não estaria aqui para lhe contar esta bela história, nem você para ler. Agora, portanto, respire fundo e tente responder este novo (antigo) dilema: Quem veio primeiro, o surfactante ou os alvéolos pulmonares?
(W. Augusto Gomes é biólogo e diretor de ensino e pesquisa do Núcleo Curitibano da SCB)
Referências:
[1] Hall, J. E. & Guyton, A. C. (2000) Textbook of Medical Physiology 10th Edition. W. B. Saunders Company.
[2] Goerke, J. (1998). Pulmonary surfactant: functions and molecular composition. Biochimica et Biophysica Acta (BBA)-Molecular Basis of Disease, 1408(2-3), 79-89.
[3] Friedrich, L. et al (2005). Prognóstico pulmonar em prematuros. J Pediatr (Rio J.), 81(1 Suppl), S79-88.
[4] Floros, J. et al (1995). Dinucleotide repeats in the human surfactant protein-B gene and respiratory-distress syndrome. Biochemical Journal, 305(Pt 2), 583.
[5] Subramaniam, S. et al (1996). Alteration of pulmonary surfactant proteins in rats chronically exposed to cigarette smoke. Toxicology and applied pharmacology, 140(2), 274-280.
[6] Hoffman, A. G. (1992). Reduction of pulmonary surfactant in patients with human immunodeficiency virus infection and Pneumocystis carinii pneumonia. Chest, 102, 1730-1736.