Quando traduzia as Escrituras Sagradas do hebraico para o latim clássico (versão que ficou conhecida como Vulgata), Jerônimo (347-420) verteu a palavra raqia para firmamentum ou para o grego steréoma, que significa “construção sólida”. Estava lançada a semente da confusão, já que algumas traduções posteriores em espanhol e português tiveram como base a Vulgata e perpetuaram a palavra e o conceito de “firmamento”. Os terraplanistas atuais se prendem a essa tradução de raqia e parecem ignorar o sentido original do vocábulo.
No ótimo livro The Genesis Creation Account (Andrews University Press), organizado por Gerald A. Klingbeil, há um capítulo intitulado “The myth of the solid heavenly dome: another look at the hebrew רקיע (raqîa‘)” (“O mito do domo celestial sólido: outra visão sobre o hebraico רקיע [raqîa‘]”), escrito pelos renomados teólogos adventistas Randall W. Younker e Richard M. Davidson. Os autores analisam as concepções de Terra e céu babilônica, grega, judia, do cristianismo primitivo e medieval, renascentista e dos séculos 18 e 19, para concluir que foi somente em tempos mais recentes que alguns críticos da Bíblia tentaram construir uma narrativa segundo a qual os antigos autores bíblicos teriam sido terraplanistas e defensores de um domo sólido sobre a superfície do planeta, adotando, obviamente, a tradução “firmamento” em lugar de “expansão”.
Conclusão geral dos autores: “A ideia de que os antigos hebreus acreditavam que o céu consistia em uma abóboda sólida apoiada em uma Terra plana parece ter surgido no início do século 19, quando foi apresentada como parte de uma concepção de Terra plana por Irving e Letronne. Os estudiosos que apoiam essa reconstrução argumentaram que a Terra plana e a abóbada celestial sólida foram mantidas ao longo dos períodos cristãos antigo e medieval, e que eram ideias originárias da antiguidade, especialmente entre os antigos mesopotâmios e hebreus.
“No entanto, pesquisas recentes mostraram que a ideia de uma Terra plana não era defendida nem pela igreja cristã antiga nem por estudiosos medievais. De fato, a evidência é esmagadora de que eles acreditavam em uma Terra esférica, cercada por esferas concêntricas (às vezes duras, às vezes moles) que carregavam as estrelas em suas órbitas ao redor da terra. Além disso, pesquisas de documentos astronômicos antigos da Babilônia mostram que eles não tinham o conceito de um domo celestial. [...]
“Uma revisão dos argumentos linguísticos para mostrar que os hebreus acreditavam na ideia de uma Terra plana e de um domo celestial mostra que eles não têm base. Derivam de passagens claramente figurativas por natureza. [...] A forma substantiva da palavra traduzida como ‘firmamento’ [raqia] nunca está associada a substâncias duras em nenhuma de suas ocorrências no hebraico bíblico. [...] O substantivo pode ser traduzido como ‘expansão’ em todos os seus usos, e se refere ao céu em Gênesis 1.
“As águas acima e as janelas, portas ou comportas dos céus são referências figurativas para as nuvens, que produziram chuva durante e após o dilúvio de Noé. No segundo dia da criação, Deus realizou ações criativas materiais e funcionais. Ele fez o céu e também lhe atribuiu a função de separar as águas atmosféricas superiores contidas nas nuvens das águas acima da superfície da Terra” (p. 55, 56).
A Lição da Escola Sabatina (guia mundial trimestral de estudos bíblicos dos adventistas do sétimo dia) do dia 24 de maio de 2020 tratou brevemente do tema “Terra plana”. A Casa Publicadora Brasileira, que publica esse guia em língua portuguesa, convidou o pastor e doutor em Teologia Isaac Malheiros para escrever um comentário adicional à lição. Pela precisão e objetividade do material, resolvi reproduzi-lo aqui. [MB]
“Como a lição desta semana mostra, a Bíblia não ensina que a Terra é plana. No entanto, de fato, há textos que podem dar a impressão de que a Terra tenha formatos diferentes. Ou seja, a Bíblia não parece conter uma ‘doutrina’ sobre o formato exato da Terra. Mas é preciso destacar que quase todo texto bíblico que se refere a algum formato da Terra está em livros sapienciais, poéticos e proféticos – literaturas com muita figura de linguagem e expressões idiomáticas. Além disso, o objetivo da maioria desses textos (se não de todos eles) não é necessariamente ensinar sobre o formato da Terra.
“Precisamos reconhecer que, além da linguagem poética e metafórica, a Bíblia usa muitas vezes uma linguagem ‘fenomenológica’, ‘observacional’ ou ‘de percepção’. Todos nós usamos esse tipo de linguagem até hoje, quando falamos em ‘pôr do sol’ (literalmente, o Sol não se põe), nos ‘quatro cantos’ da Terra (literalmente, o planeta não tem quatro cantos). Porém, isso não implica uma cosmologia geocêntrica ou uma Terra plana.
“Referindo-se à chuva, Gênesis 7:11 afirma que ‘as comportas dos céus se abriram’, e Deus promete abrir ‘as janelas do céu’ para abençoar os fiéis (Ml 3:10, ACF). Mas isso não significa que haja literalmente comportas ou janelas no céu. Ao ler que Deus levaria Israel para uma ‘terra que mana leite e mel’ (Lv 20:24), não imagine literalmente rios de leite e de mel em Canaã. Tudo isso é um modo de falar, uma figura de linguagem ou expressão idiomática.
“O poeta Fernando Pessoa afirmou, lamentando: ‘Ó mar salgado, quanto do teu sal / São lágrimas de Portugal!’ Ao ler isso, você jamais levaria água do mar ao laboratório para confirmar se, de fato, ela é composta por lágrimas portuguesas!
“Portanto, a Terra é um geoide, com formato arredondado, superfície irregular, um leve achatamento nos polos, e a Bíblia não contradiz isso. No entanto, em nosso estudo da Palavra, esse não é um tema que deveria nos ocupar mais do que o necessário.
“Certamente você já ouviu que ‘o cristianismo ensinava que a Terra era plana!’ Ou: ‘Cristóvão Colombo desmentiu a igreja e sua teoria de uma Terra plana ao navegar para a América em 1492’. Essas afirmações são um equívoco já fartamente comprovado e refutado.
“A origem desse mito está na ‘tese Draper-White’ (também conhecida como ‘Tese do Conflito’): a ideia de que há um conflito histórico inevitável entre ciência e religião, em que a ciência é o bem, a iluminação; e a religião é sempre o mal, a ignorância, oposta aos avanços científicos. Esses mitos surgiram no século 19 com a publicação das obras de John William Draper e Andrew Dickson White, que criaram essa narrativa com o objetivo de difamar a religião. Trata-se de uma campanha difamatória, uma propaganda antiteísta e antirreligiosa.
“Nunca houve um período em que o cristianismo ensinasse que a Terra fosse plana. Esse nunca foi um conteúdo do ensino cristão. Resumidamente: os poucos cristãos que falaram que a Terra era plana eram figuras irrelevantes ou de menor importância (como Lactâncio, Cosme Indicopleustes e Severiano de Gabala), e não vozes representativas da posição cristã. Na verdade, pouca gente dava atenção para a teoria da Terra plana na época de Colombo. Isso não era ensino cristão, e os poucos defensores da ideia eram ignorados ou ridicularizados.
“Jeffrey Burton Russell, um especialista em história medieval, escreveu sobre o assunto no livro Inventing the Flat Earth [Inventando a Terra Plana], e é injustificável a insistência em jogar o mito da Terra plana na conta do cristianismo. No livro Galileu na Prisão”, Ronald Numbers (um agnóstico), especialista em história da ciência, também aborda esse e outros mitos. Incrivelmente, universitários e pesquisadores brasileiros continuam fazendo eco a tais acusações sem nenhum fundamento, nenhuma evidência.
“O premiado físico Marcelo Gleiser, por exemplo, lamentavelmente faz eco ao mito da Terra plana: ‘A situação se tornou tão terrível que, por aproximadamente setecentos anos, de 300 d.C. (santo Lactâncio) até o ano 1000 (papa Silvestre II), se acreditava novamente que a Terra era plana!’ (A Dança do Universo, p. 84). O fato é que, nesse período, praticamente todos os grandes eruditos cristãos acreditavam que a Terra fosse esférica. Macróbio (séc. 5), Basílio de Cesaréia (séc. 4), Agostinho de Hipona (séc. 4 e 5), João Damasceno (séc. 7 e 8), o bispo Virgílio de Salzburg (séc. 8), John Scotus (séc. 9), Tomás de Aquino (séc. 13), Dante Alighieri (séc. 13 e 14), Francis Bacon (séc. 16), todos defendiam uma Terra esférica.
“O Venerável Beda, na obra De Temporum Ratione (séc. 7 e 8) já ensinava que a Terra é uma esfera. No século 5, autoridades civis e religiosas usavam o globus cruciger, que é uma cruz sobre um globo, simbolizando o domínio de Cristo (a cruz) sobre o mundo (o orbe). Isidoro de Sevilha (séc. 7) fez uma estimativa da circunferência terrestre; além disso, mais de mil mapas da Terra produzidos do século 8 ao século 15 consideram uma Terra esférica. Marcelo Gleiser citou indevidamente o papa Silvestre II, pois esse papa foi um grande estudioso de astronomia que acreditava numa Terra esférica, que também gostava de pintar mapas da Terra sobre esferas de madeira, e fabricar esferas armilares,”
Se quiser obter mais informações que refutam a ideia da Terra plana, assista aos vídeos abaixo.