segunda-feira, janeiro 10, 2011

Superinteressante nº 1: as sementes do que viria

Vasculhando algumas caixas com coisas velhas, minha mãe encontrou minha coleção com os primeiros exemplares da revista Superinteressante que eu religiosamente comprava na banca de jornais, todos os meses, devorava de capa a capa e depois guardava cuidadosamente em sacos plásticos. Ela aproveitou minha visita de férias e me entregou a pilha de revistas. E lá estava a relíquia: e edição de estreia lançada em 1988 com o trem-bala vermelho na capa, levitando sobre trilhos de supercondutores. Quando a vi, foi como voltar no tempo. Lembrei-me da empolgação com que a comprei, já que sempre gostei de temas científicos e a promessa da revista pioneira era exatamente esta: descortinar o mundo da ciência para leitores ávidos como eu, no alto dos meus idos 16 anos. Abri cuidadosamente a revista na página 5 e li o editorial de Victor Civita, com a promessa de que nas páginas de Superinteressante não haveria “lugar para meias-verdades, o saber por ouvir dizer, a hipótese sem evidência que a legitime”. Mas, logo abaixo, o mesmo Civita sentenciava: “Nós não descendemos do macaco, embora tenhamos com ele um ancestral comum.” Que ancestral? Onde e quando foi descoberto? Cadê seus fósseis? A primeira meia-verdade sem evidência teve que esperar apenas quatro linhas para aparecer! Mas, na época, eu era darwinista e jovem demais para perceber esse tipo de incoerência e nem poderia imaginar que estavam sendo lançadas as sementes do que seria a linha editorial da maior revista popular de divulgação científica do nosso país.

Continuei folheando o exemplar com matérias sobre astronomia (essas eram as que eu mais apreciava), tecnologia, história, biologia... Até que me detive na página 61, com o título: “Pode a ciência crer em Deus?” Aí tive que reler. O artigo é do físico e escritor Paul Davies, que solta logo esta pérola: “Assim, não sobra do homem muito mais do que a teoria de que é um mero acidente, sem alma, sem objetivo e sem finalidade alguma em um universo sem sentido, que surgiu sem nenhuma planificação prévia.” Evidências, por favor? Nada.

Depois de se demorar na teoria do Big Bang, singularidade, tempo e espaço, Davies afirma ainda que quando for possível explicar devidamente tudo isso, “não será mais necessário colocar nas mãos planificadoras de Deus a responsabilidade por tais peculiaridades [estruturação] do Universo; tudo acontece numa ordem sucessiva adequada, de acordo com as leis da Física Quântica. E há algo mais significativo: essas leis permitem explicar por que podem surgir do nada, com toda naturalidade, a energia e a matéria”. Assim, para o autor, “o conceito de Deus está outra vez excluído das preocupações da ciência, pois as leis da Física são suficientes para explicar todo o Universo, inclusive sua aparição”. E as evidências, senhor Civita? Nada.

Na época, eu também não sabia que, de fato, as evidências a favor de um “Planificador” (ainda não se usava o termo Designer) são muito mais coerentes do que as evidências contra Ele. Eu não sabia que essa discussão toda é mais filosófica do que necessariamente científica e que muitos cientistas só não admitem Deus porque não querem ou não podem, uma vez que adotam o naturalismo filosófico como pressuposto. Ou seja: não é que Deus não exista; Ele não pode existir, pois a priori é excluído como possibilidade. Muitos adolescentes da minha geração cresceram pensando assim sem ao menos questionar se essa cosmovisão minimalista é a correta.

Mas nem tudo é cegueira no artigo de Davies. Depois de apresentar sua tese em favor do acaso, ele questiona (e isso é ponto para a Superinteressante em seus primeiros anos de existência, pois ela perguntava mais): “Um ponto ainda permanece obscuro: se hoje temos leis que podem explicar praticamente tudo, como explicar a existência dessas próprias leis?” Opa! Davies está chegando lá! “Variações insignificantes [nas constantes da natureza] seriam suficientes para modificar drasticamente esse mundo, ou mesmo destruí-lo. Dito de outro modo, se esses fatores houvessem sido desde o princípio menores ou maiores, pouco que fosse, do que são hoje, não teria sido possível surgir a vida e, sobretudo, nenhuma vida inteligente.”

Ele realmente está arranhando a verdade! Mas, infelizmente, acaba recuando:

“Em toda parte, encontramos, à nossa volta, provas de que a Natureza [sim, com letra maiúscula, como se ela fosse Deus] fez tudo de forma correta. O resultado é, portanto, que as leis fundamentais, se se expressam matematicamente, não apenas apresentam grande elegância, simplicidade e lógica interna, mas também permitem a existência de sistemas, por exemplo planetários, com espaços adequados que são, simultaneamente, estáveis e complexos, a fim de proporcionar a base para a vida racional.”

Pois então, senhor Civita, afirmar que elegância, simplicidade e lógica apontam para o acaso cego e/ou para a “inteligência da Natureza” não é meia-verdade sem evidência? Isso é seguir as evidências levem aonde levar ou significa parar no meio do caminho em busca da verdade? Estavam aí as sementes do que viria a ser a Superinteressante e o lembrete do por que eu acabaria por cancelar definitivamente minha assinatura, anos depois.

Para ser justo e honrar a memória das primeiras edições da revista, transcrevo, finalmente, o último parágrafo da matéria de Davies, com a impressão de que, se tivesse sido escrito hoje, os editores o cortariam:

“Parece que fazemos parte de um grande plano, e aqui chegamos a uma conclusão. Quem aceitar que a nova Física fornece provas da existência de um plano do Universo enfrentará, em seguida, a questão: Quem é o planificador? Mas a esta altura precisamos abandonar o campo da ciência, que se ocupa apenas do mundo natural, para passar ao campo da Teologia. A nova Física, sem dúvida, dá nova direção ao nosso pensamento, mostra-nos um Universo que é muito mais do que uma casualidade colossal e sem sentido. Eu, de minha parte, creio que por trás de nossa existência há um sentido mais amplo.” [!]

Naquela época, a saudosa Super pelo menos mencionava as perguntas (sem enfrentá-las). Hoje, lamentavelmente, nem as faz.

Michelson Borges