O portal G1 publicou uma matéria curta,
porém interessante, sobre desabafos feitos por James Peebles. Esses comentários
feitos pelo Nobel de Física de 2019 vêm como um bálsamo para quem conhece de
perto o modelo do Big Bang, que consiste em um sistema de equações que descreve
o desenvolvimento do espaço-tempo desde pouco depois de sua criação. Essas
equações são uma consequência de leis físicas conhecidas. O título da matéria é sensacionalista e enganoso, mas os
comentários do cientista são lúcidos e ao ponto. Peebles não combate a “Teoria
do Big Bang”, mas esse nome popular por passar uma ideia completamente falsa do
modelo ao qual deveria se referir.
Quase tudo o que as pessoas costumam
dizer sobre Big Bang baseia-se em boatos que passam bem longe de refletir o que
o modelo realmente diz. O próprio nome popular do modelo ajuda a aumentar a
confusão ao transmitir a ideia de que se trata de uma explosão de material que
alguma vez esteve concentrado em um ponto do espaço. Além disso, muitos vão
além nesse telefone sem fio e imaginam que, de acordo com a “teoria” do Big
Bang, essa grande explosão teria criado estrelas, galáxias, planetas e até
seres vivos. Nada mais longe da verdade. Apenas alimento para argumentos do
espantalho, uma das falácias mais comuns em comentários sobre ciência.
Peebles comenta que lutou contra essa
“nomenklatura” mas acabou desistindo. Todos continuam chamando o modelo de
“Teoria do Big Bang” e não parece ser possível reverter essa tendência.
Aproveitamos essa oportunidade para,
mais uma vez, desmentir conceitos enganosos nessa área. É útil fazer diferença
entre modelo e teoria, entre o que o modelo diz e o que ele não diz, bem como
alguns prerrequisitos gerais, como a diferença entre uma teoria científica e
uma não científica, e ainda o conceito de Matemática usado no processo. Faremos
apenas um resumo relâmpago dessas coisas.
Matemática
Impossível definir por ser muito
fundamental, mas, de um ponto de vista de consistência lógica, ela
necessariamente transcende o mundo natural, inclusive o tempo. Todas as leis da
realidade estão contidas na Matemática. Nós inventamos linguagens para lidar
com pequenas porções da Matemática, porém, mesmo fazendo isso, percebemos que
apenas estamos observamos partes minúsculas de algo infinito.
Ciência
O conceito de ciência proposto na
“revolução” científica tem muito pouco a ver com a noção que predomina
atualmente. Há uma tendência de chamar de ciência tudo o que se faz na pesquisa
em universidades, bem como o conjunto de pessoas que trabalha em qualquer área
da pesquisa, assim como as áreas em si. Apesar da irracionalidade de um
conceito inconsistente assim, esse tipo de noção subsiste por várias razões,
tais como:
- Seu papel em elevar o status de alguém ou de uma ideia.
- Controle político, isto é, a
autoridade que confere a um grupo de pessoas para afirmar o que é verdade
ou não com base em uma lista mais ou menos arbitrária, ao invés de regras
fundamentais.
- Vícios de linguagem.
- Facilidade de promover
qualquer especulação ao status
de “teoria científica”.
- Facilidade de negar o status de “teoria científica” a
qualquer ideia que não seja aceita em determinado meio social.
O conceito original corresponde mais ou
menos ao que hoje chamamos de “hard
science” (ciência dura). Trata-se de um conjunto infinito de métodos
matemáticos (alguns dos quais a humanidade já conhece) que podem ser aplicados
de maneira fundamental, sistemática e coerente a qualquer área da pesquisa. Não
que cada método se aplique a tudo, mas existem muitos métodos aplicáveis a cada
área do conhecimento.
Estruturas matemáticas
São regiões do conhecimento delimitadas
por axiomas bem definidos. Nesse contexto, axiomas são itens de uma definição,
nunca verdades autoevidentes, óbvias, fundamentais ou universais.
Um bom exemplo são os axiomas de
Euclides na Geometria. Eles delimitam uma parte da Geometria que chamamos de
Geometria Euclidiana Bidimensional.
Como os axiomas que definem algo são
válidos para o que definem, podemos provar com segurança suas consequências
naquele contexto. As afirmações que podem ser provadas como consequência de
axiomas chamam-se teoremas.
Podemos combinar diferentes axiomas para
definir diferentes estruturas matemáticas. Podemos adicionar axiomas a
estruturas existentes para definir estruturas mais específicas, aproveitando
todos os teoremas da estrutura original, o que representa grande economia de
esforço para os pesquisadores.
Se os axiomas escolhidos forem
incompatíveis entre si, a estrutura matemática resultante corresponde ao
conjunto vazio, isto é, nada se encaixa em sua definição.
É importante não confundir a natureza
da Matemática com o processo humano dinâmico de brincar de montar estruturas
matemáticas pela combinação de axiomas. Esse processo é apenas uma estratégia
para explorar o infinito território matemático.
Teorias e modelos científicos
São a associação entre uma estrutura
matemática e um objeto de estudo. Não precisam referir-se a algo do mundo
físico.
Como é possível fazer essa associação?
Ao escolher um assunto a ser estudado, precisamos defini-lo. Isso é feito por
uma série de cláusulas, isto é, itens de uma definição. Cada cláusula
corresponde a um axioma. O conjunto de axiomas corresponde a uma estrutura
matemática.
Colocando-se dessa forma, parece fácil
e até inevitável construir teorias científicas. Mas, para ser científica, uma
teoria deve fazer essa associação explicitamente, de maneira a permitir
conferir sua consistência (se não há axiomas conflitantes), sua precisão, sua
exatidão, aproveitamento de teoremas da estrutura matemática e assim por
diante.
Um grande bônus gerado pelo uso de
teorias e modelos científicos consiste em que, uma vez feita a associação entre
uma estrutura matemática e um objeto de estudo, teoremas da estrutura
matemática frequentemente nos revelam aspectos não imaginados do objeto de
estudo, muitas vezes contrários a crenças e expectativas dos pesquisadores. Essas
são as descobertas teóricas.
Muitas descobertas teóricas têm
ocorrido quando se aplica essa metodologia científica. Exemplos: spin,
antimatéria, regras de seleção de orbitais eletrônicos, “princípio” da
incerteza, “princípio” da exclusão, buracos negros, ondas gravitacionais,
entrelaçamento quântico, tunelamento quântico, curvatura do espaço-tempo,
quarks, dilatação do tempo, contração do espaço, big bang e muitas outras
coisas. O interessante é que essas descobertas teóricas vão sendo confirmadas
uma a uma com o tempo, mesmo em seus detalhes finos.
No caso do spin e das regras de
seleção, por exemplo, já havia evidência experimental, mas nenhuma explicação
para sua existência até a descoberta da associação de uma estrutura matemática
com o mundo quântico que revelou que essas coisas decorrem de teoremas
relativamente simples. Em muitos outros casos, ninguém suspeitava de certo
fenômeno, até alguém se deparar com um teorema e perceber seu significado
físico.
Essa é a forma mais profunda de
conhecimento intelectual que existe.
Teoria científica jamais deve ser
confundida com uma especulação ou conjectura.
Teoria científica
Consiste em um conjunto de leis,
geralmente expressas como equações diferenciais. Essas leis servem de axiomas
para a associação entre uma área de estudo e uma estrutura matemática.
Exemplos:
- Teoria da Mecânica de Newton
(três equações diferenciais)
- Teoria Eletromagnética de Maxwell
(quatro equações diferenciais)
- Teoria Especial da Relatividade
(três leis de Newton e mais duas)
- Teoria Geral da Relatividade
(cinco leis da Relatividade Especial e mais uma equação diferencial
tensorial)
Modelo científico
Trata-se da aplicação de uma teoria
científica a um caso particular. Por
exemplo, podemos utilizar a Teoria Eletromagnética de Maxwell para modelar e
construir um circuito eletrônico.
Big Bang
Nome enganoso inventado por Fred Hoyle
para ridicularizar a ideia de que o Universo foi criado.
Podemos aplicar a Relatividade Geral ao
Universo como um todo, o que resulta em um sistema de equações diferenciais
que, combinadas com equações da Termodinâmica, dizem que o tempo teve um início
e que o espaço vem se expandindo desde então. Esse sistema de equações é que
recebeu o nome enganoso de “Teoria do Big Bang”.
Big Bang é um modelo científico que
descreve a expansão do espaço ao longo do tempo. Esse
modelo não fala em explosão, nem em origem da matéria, nem em origem e evolução
de estrelas, nem galáxias e muito menos vida. Por
outro lado, esse modelo fornece informações valiosas que precisam ser levadas
em conta por outros modelos, como o de nucleossíntese.
Embora não seja o caso de Peebles,
existem muitas pessoas que argumentam contra a “Teoria do Big Bang”. Quando
observamos esses protestos, entretanto, vemos que o que essas pessoas combatem
é um espantalho, uma versão completamente falsa do que seria o Big Bang.
Se você deseja argumentar contra o Big
Bang, evite passar vergonha expondo sua ignorância sobre o assunto. Procure
antes se informar sobre o modelo com quem sabe deduzir, usar e interpretar suas
equações diferenciais, ao invés de repetir boatos que circulam entre leigos.
Eduardo
Lütz