Neste texto, vou comentar brevemente o
artigo “As relações estreitas entre criacionismo, escravidão e racismo”, da
historiadora Luciana Brito. Ela é professora da Universidade Federal do
Recôncavo e também integra uma organização de mulheres chamada Rede de Mulheres
Negras da Bahia. Luciana começa falando sobre o mito da criação na cultura do
candomblé. Fala do papel de Yemanjá (deusa das águas), Obalatá (céu) e Oduduá
(terra). E então afirma: “Esse é um mito, um dos vários que explicam a ‘criação’
e servem unicamente para explicar a origem do mundo sob uma determinada
perspectiva religiosa. Mas e o criacionismo? Por que essa mitologia cristã que
explica a criação do mundo tem, cada vez mais, se deslocado do lugar de
metáfora para ser uma ideologia norteadora de governos conservadores,
orientando políticas públicas, sobretudo na área da educação?”
Deixando de lado o aspecto político
da coisa, é bom, antes de mais nada, lembrar uma das definições de criacionismo:
estrutura/modelo
conceitual que adota para o estudo da natureza a possibilidade da existência de
um Criador. A vida teria sido criada inicialmente complexa, completa e
funcional, em tipos básicos de seres vivos dotados do aporte necessário para
sofrer diversificação limitada ao longo do tempo. Existem três principais
ramificações distintas dentro do criacionismo: a religiosa, a bíblica e a
científica. O criacionismo científico parte da pesquisa científica, no
sentido de identificar evidências de design
intencional na natureza – mais ou menos como fazem os investigadores criminais,
que lidam com pistas em busca do culpado. Portanto, criacionismo nada tem que
ver com mitos de criação ancestrais.
A Dra. Luciana Brito sustenta em seu
artigo que “teorias como o criacionismo desde sempre foram utilizadas para
justificar projetos políticos de organização da sociedade. Nos Estados Unidos
do início do século 19, por exemplo, teorias criacionistas estavam de ‘mãos
dadas’ com as teses que defendiam a escravidão e a segregação racial”. Então
ela cita algumas pessoas que, de fato, defendiam ideias escravagistas, como Thomas
R. Dew, professor universitário da Virginia que acreditava que “negros tinham hábitos
e sentimentos de escravos, enquanto os brancos carregavam em si, naturalmente,
o comportamento de senhores”.
Segundo ela, “teses baseadas no Antigo
Testamento foram amplamente utilizadas para justificar a escravidão”. E cita
outro historiador: George Fredrickson, autor do livro The Black Image in the White Mind (A Imagem Negra na Mente Branca,
em tradução livre), que se vale da história de Cam (filho de Noé) para
discorrer sobre a maldição usada para justificar “o eterno estágio de submissão
e servidão à qual estariam submetidas as raças africanas”. (Neste texto há uma
explicação do porquê essa associação é falsa.)
Logo, a Bíblia e o criacionismo nada
têm que ver com as ideias defendidas por Dew nem por Fredrickson.
Luciana diz também que “foi na década
de 1850 que um grupo de cientistas percebeu que havia outro caminho para
justificar a escravidão que não ferisse as escrituras bíblicas: o poligenismo”.
E lembra que o cientista Louis Agassiz “acreditava que existiam ‘zonas de
criação’, que haviam produzido, em partes do mundo distintas, quase ao mesmo
tempo, diferentes espécies. A raça branca, por exemplo, seria aquela mais
avançada, única que descendia de Adão e Eva. Agassiz afirmava que os negros,
por sua vez, haviam surgido de uma outra criação, que produziu uma raça
inferior, oriunda das regiões tropicais”.
Mais uma vez pergunto: O que a Bíblia
e o criacionismo têm que ver com essa insanidade racista?
Então Luciana conclui dizendo que “Agassiz
e sua teoria criacionista/poligenista só caíram em descrédito quando
confrontadas com a teoria da evolução de Charles Darwin, que acabou ofuscando o
suíço”.
Ok. Já que ela mencionou Darwin, que
tal averiguar quais eram as ideias do naturalista inglês a respeito dos negros?
Vala a pena dar uma olhada no que ele
escreveu em seu livro pouco conhecido e muito constrangedor The Descent of Man (A Descendência do
Homem). Nessa obra de 1871 (portanto, posterior ao aclamado Origem das Espécies), Darwin afirma que
a lacuna atual entre antropóides e humanos se encontra entre o gorila, do lado do
macaco, e o negro ou aborígene australiano, do lado humano: “A ruptura entre
homem e seus mais próximos aliados será então ampliada, pois irá intervir entre
o homem em um estado mais civilizado, como podemos esperar, mesmo que o
caucasiano e alguns macacos tão baixos quanto um babuíno, ao invés de como
agora entre o negro ou australiano e o gorila” (capítulo 6, “On the affinities
and genealogy of man”).
E aí? Deixou Agassiz no chinelo no
que diz respeito a racismo, hein!
E já que estamos falando em
preconceito, que tal uma olhadinha também no que Darwin escreveu sobre homens e
mulheres?
“A distinção principal nos poderes
mentais dos dois sexos reside no fato de que o homem chega antes que a mulher em
toda ação que empreenda, requeira ela um pensamento profundo ou então razão, imaginação,
ou simplesmente o uso das mãos e dos sentidos. Se houvesse dois grupos de
homens e mulheres que mais sobressaíssem na poesia, na pintura, na escultura,
na música (trate-se da composição ou da execução), na história, nas ciências e
filosofia, não poderia haver termos de comparação. [...] podemos também
concluir que, se em muitas disciplinas os homens são decididamente superiores às
mulheres, o poder mental médio do homem é superior àquele destas últimas” (A Origem do Homem e a Seleção Sexual, p.
649).
De arrepiar os pelos da axila, né?
No início dos anos 2000, houve uma
grande discussão sobre a devolução de cadáveres de africanos e aborígenes “empalhados”
e expostos em diversos museus da Europa. Hoje, pouco se fala que o motivo de
empalharem essas pessoas e as exibirem em museus era o fato de os
evolucionistas as considerarem como estando mais abaixo na cadeia evolutiva
(confira).
“Há cinco anos, a mídia mundial
concentrou sua atenção em Gaborone, no Botsuana, para assistir ao repatriamento
de um cadáver. O corpo empalhado de um africano do século 19, que estava em
exibição havia mais de um século em museus europeus, foi devolvido ao seu solo
nativo. Populações indígenas fora da Europa, desde os ‘hotentotes’ do sul da
África até os maori da Nova Zelândia, foram durante muito tempo objeto de
investigação científica e antropológica europeia. Museus em todo o continente
mantêm crânios, peles e órgãos dos povos que os impérios europeus dominavam.
Grupos de aborígines na Austrália afirmam que pelo menos 8.000 conjuntos de
aborígines permanecem sozinhos em instituições no exterior” (fonte).
“Está registrado na história de
Mackay, Queensland, que um colecionador estrangeiro fez um pedido a um soldado
para que ele matasse um menino nativo para fornecer um exemplar completo com
esqueleto, pele e crânio de um aborígene australiano” (The Sydney Morning Herald, 31 de janeiro de 1955, p. 2).
Viu só como ideias têm consequências?
E essas aí não vieram da Bíblia nem do criacionismo.
No livro The Creationists, o pesquisador Ronald Numbers afirma que o
criacionismo espalhou-se rapidamente durante o século 20, desde seu humilde
começo “nos escritos de Ellen White”. Mark Noll também afirma que o
criacionismo moderno emergiu dos esforços dos adventistas do sétimo dia.
Portanto, um exercício interessante é o de comparar com as ideias de Darwin o
que escreveu a contemporânea dele Ellen White, que, como sustentam Numbers e
Noll, é uma das precursoras do criacionismo.
Sobre negros e brancos ela escreveu: “O
nome do homem de cor é escrito no livro da vida, ao lado do nome do homem
branco. Todos são um em Cristo. Nascimento, posição, nacionalidade ou cor não
podem elevar nem degradar os homens” (Mensagens
Escolhidas, v. 2, p. 342).
“Todos são um em Cristo.” Aqui Ellen ecoa
as palavras do apóstolo Paulo, que escreveu: “Não há judeu nem grego; não há escravo nem livre; não há
homem nem mulher; porque todos vós sois um em Cristo Jesus” (Gálatas 3:28).
Essa é a verdadeira visão antropológica criacionista bíblica.
E sobre mulheres e homens, Ellen
escreveu: “Ao criar Eva, Deus pretendia que ela não fosse nem inferior nem
superior ao homem, mas em todas as coisas lhe fosse igual. O santo par não
devia ter nenhum interesse independente um do outro; e não obstante cada um
possuía individualidade de pensamento e de ação” (Testemunhos Seletos, v. 1, p. 412).
Portanto,
culpar o criacionismo pelas ideias e atitudes equivocadas de pretensos
defensores do modelo é como culpar o cristianismo pela Inquisição católica, por
exemplo. Para um criacionista, homens e mulheres têm o mesmo valor diante de
Deus, pois foram criados assim por Ele, sendo ambos Sua imagem e semelhança.
Para um criacionista, negros e brancos são uma só raça, a raça humana, pois
descendem ambos do mesmo casal, Adão e Eva (que não eram brancos nem negros,
pelo que se percebe no texto bíblico).
É
lamentável quando o viés político se sobrepõe aos fatos criando distorções e
aumentando o preconceito sobre algo que se desconhece.
Michelson Borges
Leia também: "Fermento racista" e "Humanidade sem raças"