sexta-feira, outubro 26, 2018

Imprinting genético: até o embrião sabe o papel diferente de pai e mãe


Não costumo escrever sobre assuntos biológicos, mas esse me chamou atenção. Há pouco mais de dez dias, vi um artigo com o seguinte título em um site nacional: “Camundongos do mesmo sexo geram filhotes por meio de edição genética”, baseado no artigo “Generation of bimaternal and bipateral mice from hypomethylated haploid ESCs with imprinting region deletions” (Cell Stem Cell). No artigo, os cientistas contam que conseguiram, graças à manipulação genética, fazer um embrião de camundongo se desenvolver a partir de dois conjuntos genômicos provenientes de indivíduos do mesmo sexo; nesse caso duas fêmeas de camundongo. No entanto, isso não poderia ocorrer a não ser com uma edição genética de ponta.

Para entender melhor, analisemos a fecundação humana. Nela, um conjunto genômico de 23 cromossomos e outro de 23 cromossomos devem se juntar para haver formação de um zigoto e posterior embrião com 46 cromossomos, 46 XX ou 46 XY. Algumas variações são possíveis, naturalmente, e acarretam algumas síndromes de origem genética, como 45,X0 (síndrome de Turner), 47,XXouXY +21 (síndrome de Down), 47, XXY (Kleinefelter), entre outras.

Em relação aos gametas, o espermatozoide carrega 22 cromossomos autossômicos e um sexual podendo ser ele X ou Y. E o óvulo irá carregar 22 cromossomos autossômicos e um sexual, esse sendo sempre X. A combinação de um espermatozoide com um óvulo acarreta na formação de um indivíduo 46 XX ou 46 XY.

Assim, na teoria, poderia se obter o mesmo resultado combinando dois óvulos, tendo uma combinação 46 XX, o que acarretaria em um indivíduo feminino. Ou combinar dentro de um óvulo dois pró-núcleos provenientes de espermatozoides, acarretando indivíduos 46 XX ou 46 XY (46 YY seria inviável).

A questão é: Por que isso não ocorre naturalmente ou em uma fecundação in vitro?

Porque no momento da fecundação em mamíferos placentários, para que o padrão de metilação do DNA seja transmitido aos descendentes, é necessário que ele seja estabelecido nos gametas, durante a gametogênese. Ou seja, o zigoto recém-formado sabe quais conjuntos gênicos foram herdados do pai (sexo masculino) e quais conjuntos gênicos são herdados da mãe, sexo feminino, para assim continuar seu desenvolvimento. É como uma etiqueta ou impressão genômica (imprinting genético). Portanto, o reconhecimento e a manutenção de impressões são muito importantes na reprogramação do genoma. Ao reconhecer que os dois conjuntos genômicos são provenientes do mesmo sexo, o desenvolvimento do embrião é interrompido.

A última etapa do ciclo de vida da impressão é o apagamento das impressões epigenéticas nas células germinativas primordiais, e isso garante o estabelecimento da impressão dependente do sexo em estágios posteriores do desenvolvimento. Ou seja, o embrião descarta as etiquetas de pai e mãe de seus cromossomos e coloca sua etiqueta ou impressão própria. Portanto, os genes “etiquetados” sofrem desmetilação do DNA nas células germinativas primordiais, e o padrão de metilação específico da origem parental volta a ser restabelecido durante a gametogênese, no gameta maduro. Assim funciona a natureza e é como ela foi criada: os sexos sendo determinados biologicamente não somente pela presença dos cromossomos sexuais, mas em todo um conjunto genômico por uma marcação “invisível” reconhecida pelo próprio embrião, no qual também etiquetará seu sexo em seus clusters de genes.

Mas, voltando ao artigo, como os cientistas então conseguiram “ludibriar” o embrião? Os pesquisadores, usando tecnologia de edição genética, excluíram três conjuntos de impressões genéticas de um gameta feminino e juntaram com uma célula-tronco embrionária. Assim, para torná-los compatíveis, os fragmentos de DNA que carregavam os conjuntos gênicos “etiquetados” foram deletados para tornar os filhotes viáveis. No caso de descendentes de ratos fêmeas, dos 210 embriões, 14% sobreviveram e se tornaram adultos normais e até férteis. Já no caso de embriões provenientes exclusivamente de ratos machos, os filhotes nasceram debilitados e toda a ninhada morreu em dois dias.

E assim, mesmo com um resultado longe de ser um sucesso em termos de viabilidade desses indivíduos, com esse artigo são geradas as especulações de testes semelhantes com outras espécies, inclusive a humana. “Mas há uma expectativa grande em torno das possibilidades de levar essas técnicas para outros animais, até um dia chegar aos seres humanos. Essa pesquisa mostra o que é possível”, afirma Wei Li, pesquisador do mesmo instituto.

Outros pesquisadores renomados também falaram sobre essa possibilidade: “O risco de anomalias severas é elevado demais, e levaria anos de pesquisas em vários modelos animais para compreender plenamente como fazê-lo de modo seguro”, afirmou o especialista em células-tronco Dusko Ilic, do King’s College de Londres.

O que se destaca é que, naturalmente, a vida humana é proveniente da junção de um indivíduo masculino e um feminino, sendo que o próprio embrião identifica por meio de mecanismo epigenéticos diferenças funcionais entre os genomas paterno e materno, mas o ser humano não aceita esta condição idealizada há muito tempo: “Por essa razão, o homem deixará pai e mãe e se unirá à sua mulher, e eles se tornarão uma só carne” (Gênesis 2:24).

(Tiago Moreti é biólogo e mestre em Biotecnologia)