segunda-feira, agosto 05, 2019

Terraplanista fala bobagens sobre o pêndulo de Foucault


Assisti a um vídeo de um terraplanista que é ao mesmo tempo engraçado (pela forma cômica com que trata leis físicas), triste (pela demonstração de desconhecimento de fatos bem simples e pela arrogância de achar que sabe mais) e assustador (pelo estrago que faz ao divulgar informações falsas que pessoas aceitarão sem critério e repetirão sem pensar). Chamaremos esse terraplanista de Didi, com inspiração na palavra grega διδιάστατη. Didi “explica” o experimento do pêndulo de Foucault. De acordo com ele, esse experimento mostra uma contradição interna da “pseudociência”, além de não mostrar que a Terra gira.

Didi afirma que as pessoas tendem a simplesmente repetir as coisas sem parar para pensar a respeito, e que terraplanistas, ao contrário de ser desinformados, estudam as mesmas coisas que os demais, com a diferença de que pensam a respeito de tudo mais profundamente.

Bem, o que observei no vídeo foi exatamente o contrário. Foi um vídeo de pouco mais de 13 minutos, mas com uma grande densidade de erros elementares mostrando grande ignorância do assunto do qual trata. Vamos examinar alguns dos detalhes.

Didi inicia pela leitura de uma descrição do experimento original. A descrição era um tanto superficial, porém, muito mais profunda do que os comentários feitos pelo Didi, em seguida.

O que mais me chamou a atenção inicialmente foi a explicação dada por Didi logo após a leitura: concentrou-se exclusivamente em aspectos irrelevantes do experimento e não chegou a comentar a parte que realmente interessa, aquela que implica em que a Terra é aproximadamente uma esfera que gira com período de um dia. O leitor pode ver detalhes técnicos sobre esse tipo de experimento em “Ajuda a um Terraplanista”, disponível para download aqui.

Ao explicar o fenômeno, Didi comenta que um pêndulo pode oscilar em qualquer direção horizontal, e que isso não prova que a Terra gira. Verdade, mas o experimento não trata desse detalhe. Didi concentra-se nessa informação, sendo que ela é totalmente irrelevante ao problema. Ao contrário de pensar profundamente, ele apenas demonstra não haver entendido o problema, concentrar-se apenas em um aspecto irrelevante e, mesmo assim, apressar-se a tirar conclusões e falar de maneira arrogante contra a “pseudociência”.

Como funciona o experimento, de fato? Monta-se um pêndulo formado por um fio resistente, fino e longo, preso ao teto de uma grande sala, com muitos metros de altura. À base desse pêndulo, pendura-se um peso com massa consideravelmente grande, de forma que ele praticamente não seja afetado por pequenas correntes de ar ao redor. Para iniciar o movimento, tem-se o cuidado de apenas puxar o pêndulo para um lado e depois soltá-lo, sem qualquer desvio lateral. Uma das estratégias para isso consiste em puxar o pêndulo para um lado e prendê-lo com um fio de linha a algo que o segure. Depois, queima-se o fio para liberar o pêndulo, garantindo que ele não receberá um momentum inicial que possa introduzir um viés no experimento.

O experimento em si consiste em observar cuidadosamente o ângulo de oscilação do pêndulo em relação aos pontos cardeais. Se a Terra não gira, o pêndulo deve permanecer oscilando sempre no mesmo plano, sem precessão. Precessão é a alteração do plano de oscilação do pêndulo. Se ele inicia na direção norte-sul, por exemplo, a precessão fará com que essa direção mude com o tempo, passando por leste-oeste, por exemplo. Podemos calcular a velocidade angular da precessão em cada modelo e comparar com o que observamos na prática. A velocidade de precessão depende da projeção da vertical do pêndulo sobre o eixo de rotação da Terra.

Costumamos representar velocidade angular pela letra grega ômega: ω.

No modelo de Terra plana fixa e no modelo de Terra globo fixa, a previsão teórica para a precessão do pêndulo de Foucault é

ω = 0. 

Em outras palavras, o pêndulo não deve apresentar precessão alguma, se a Terra não gira, independentemente de ser plana ou não.

No modelo de Terra plana giratória, a previsão teórica é

ω = -ω0,

sendo ω0 = uma volta por dia no sentido anti-horário. Nesse caso, o pêndulo de Foucault deve precessionar dado uma volta por dia em todas as partes do mundo da mesma forma, independentemente da latitude.

No modelo de Terra globo giratória, a previsão teórica para a precessão do pêndulo de Foucault é

ω = -ω0 sin(ϕ),

sendo que ϕ é a latitude da posição onde está o pêndulo. Vejamos alguns exemplos.

  1. No pólo norte, ϕ = 900, e sin (900) = 1, o que significa que a precessão ocorrerá no sentido horário à taxa de uma volta por dia.
  2. No paralelo ϕ = 300 (hemisfério norte), a precessão será de meia volta por dia no sentido horário, pois sin (300) = ½.
  3. No Equador, a precessão do pêndulo cai a zero, pois sin (00) = 0.
  4. No paralelo ϕ = -300 (hemisfério sul), a precessão do pêndulo será de meia volta por dia em sentido anti-horário, pois sin (-300) = -½.
  5. No polo sul, ϕ = -900, o que significa que o pêndulo precessiona uma volta por dia em sentido anti-horário.

O experimento consiste em comparar esses valores com o que se observa. E qual é o resultado? A última fórmula é a que reflete a realidade. Em outras palavras, das opções acima (Terra plana fixa, Terra globo fixa, Terra plana giratória e Terra globo giratória), a única opção que gera resultados corretos é a da Terra globo giratória.

Bem, até este ponto, Didi erra primeiro por não entender o experimento. Concentra-se apenas em detalhes irrelevantes e perde a essência. Também erra ao não entender que modelos devem ser testados pelas fórmulas e pelos números que geram (por previsões teóricas) comparados com medidas que podemos fazer. Não basta achar que uma ideia é melhor que outra. É necessário comparar resultados.

Porém, Didi não para em sua análise superficial do assunto. Ele segue usando argumentos do espantalho para fundamentar a ideia de que o experimento de Foucault contradiz as próprias afirmações da “pseudociência” e, mais uma vez, comete erros grosseiros. Vários em cada frase. Vamos conversar sobre isso por partes.

Em primeiro lugar, é importante saber o que é um argumento do espantalho. Trata-se de distorcer um argumento adversário para torná-lo mais fácil de combater. Didi faz isso diversas vezes ao longo de seu vídeo.

Um dos exemplos mais importantes de argumentos do espantalho usados por Didi aparece no que ele fala sobre inércia. Ele menciona a lei da inércia de uma forma que não chega a estar errada, mas demonstra não entender os argumentos que fazem uso dela. Também demonstra ignorar completamente como funcionam os diferentes tipos de referenciais em Física. Vamos aos detalhes.

Ele diz que seus adversários afirmam que, de acordo com a lei da inércia, movimentos da Terra não afetam movimentos dos objetos na superfície da Terra, sendo que o pêndulo de Foucault demonstra o contrário. Temos, portanto, uma contradição interna da “pseudociência”. Esse é um exemplo de argumento do espantalho. Vejamos por quê.

Em primeiro lugar, não se afirma que movimentos da Terra não afetam movimentos de objetos na superfície da Terra. Essa ideia totalmente falsa parece ser produto de uma forma obtusa de entender explicações que damos sobre a relação entre movimentos da Terra e movimentos de objetos na superfície da Terra. No texto “Ajuda a um Terraplanista”, explico o assunto dos referenciais com vários exemplos.

Esse assunto dos referenciais é fundamental para o entendimento de leis físicas, mas terraplanistas têm sistematicamente ignorado essas coisas, tanto em seus argumentos físicos quanto em seus argumentos bíblicos, o que os leva a aberrações conceituais cada vez maiores. Didi menciona, por exemplo, que um avião não poderia pousar no solo se a Terra girasse a 1600 km/h, pois o avião viaja a apenas uns 250 km/h na aterrissagem. Se fosse descer sobre uma pista a 1600 km/h, ele seria destroçado. Didi confunde as explicações sobre isso com uma afirmação absurda de que movimentos da Terra não afetam movimentos de objetos na Terra. Esse argumento mostra total falta de entendimento de mecânica newtoniana, mas é comum que as pessoas esqueçam ou não entendam essas coisas. Embora já tenha explicado esse assunto em outro texto, farei um breve resumo aqui.

Imagine um terraplanista chamado Voilson em um avião viajando a 900 km/h em linha reta. Sentado em seu assento, ele joga uma bola de baseball para cima, de forma que ela sobe uns 50 cm e cai de volta em sua mão. Esse fenômeno acontece no avião da mesma forma que aconteceria se a pessoa estivesse parada no solo. A bola cai na mão da pessoa a cerca de 11 km/h na vertical. Do ponto de vista de outro terraplanista chamado Planilson, que está no solo, a mesma bola viaja a mais de 900 km/h e percorre aproximadamente uma parábola muito esticada na horizontal, não uma linha reta. E atinge a mão de Voilson a mais de 900 km/h, muito mais rápido do que projéteis de algumas armas de fogo. Planilson assiste a vídeos no canal de Didi e entende o que ele fala sobre aviões tentando aterrissar em um aeroporto que viaja a 1600 km/h. Os aviões seriam destroçados. Usando o mesmo raciocínio, ele conclui que a bola destrói a mão de Voilson e explode no processo. Voilson discorda, pois a bola atinge sua mão a apenas 11 km/h. Então, o que está errado com o comentário de Didi quanto ao pouso de aviões? Praticamente tudo.

Afinal, por que a bola não destrói a mão de Voilson? Porque não existem velocidades absolutas, apenas relativas. Esse é um dos fatos básicos da Física. A velocidade da bola é de uns 900 km/h em relação a Planilson, não a Voilson. Para Voilson, a velocidade da bola ao atingir sua mão é de apenas 11 km/h. Planilson precisa aprender a calcular velocidades relativas para conseguir acertar suas contas e obter resultados compatíveis com a realidade. Se ainda não ficou claro, vamos tornar o assunto um pouco mais explícito.

Voilson viaja a 900 km/h em relação a Planilson e a 0 km/h em relação a si mesmo. Enquanto segura a bola em sua mão, antes de jogá-la, ela viaja a 0 km/h em relação a Voilson e a 900 km/h em relação a Planilson. Quando Voilson a joga para cima, a componente vertical da velocidade inicial é de 11 km/h para cima em ambos os referenciais. No referencial de Voilson, a componente horizontal da velocidade da bola é 0 km/h. No de Planilson é 900 km/h. Quando a bola atinge de volta a mão de Voilson, a componente vertical é de 11 km/h para baixo em ambos os referenciais. Mas a componente horizontal continua a mesma (0 para Voilson, 900 km/h para Planilson). Qual das duas velocidades deve ser usada para avaliar o estrago que a bola causará na mão de Voilson e em si mesma?

O importante em um impacto é a velocidade relativa entre os objetos que colidem. Não importa a velocidade de Voilson em relação a Planilson nem a da bola em relação a Planilson. A bola interage apenas com Voilson. E a velocidade relativa entre ambos é de apenas 11 km/h. Isso nada tem a ver com inércia, como Didi quer fazer parecer. Se a mesma bola atingir a cabeça de Planilson a 900 km/h, ela causará sua morte.

E por que as coisas são assim? Por que é a transferência de momentum e energia que faz diferença em colisões, e isso só depende da velocidade relativa dos objetos que colidem entre si (de um em relação ao outro). Força é transferência de momentum por unidade de tempo (segunda lei de Newton). Quando há muito momentum para transferir em pouco tempo, a força é grande e causa grandes estragos. E a transferência de momentum depende da velocidade relativa, não da absoluta (caso isso existisse).

E o que a inércia tem a ver com tudo isso? Bem, do ponto de vista de Voilson, a bola em sua mão tem momentum zero (massa vezes velocidade). Ela permanece naturalmente com a mesma velocidade sem fazer força alguma sobre seu ambiente. Do ponto de vista de Voilson, ela está realmente parada. Digamos que a bola tenha 100 g. Do ponto de vista de Planilson, o momentum da bola é de 25 kg m/s. Se a bola atingir Planilson e precisar parar em, digamos, 1 ms (milissegundo), precisará transferir os 25 kg m/s nesse tempo e aplicará sobre Planilson uma força de 25 kN (equivalente ao peso de umas duas toneladas e meia). Se atingir Voilson, não precisa transferir esse momentum horizontal, pois a velocidade horizontal em relação a Voilson é zero.

O mesmo ocorre com aviões. Antes de decolar, eles já possuem a mesma velocidade do solo (em relação a algum observador fora da Terra). Em relação ao solo, estão parados. Ao decolarem, adquirem alguma velocidade em relação ao solo. Mais tarde, essa velocidade relativa diminui e o avião aterrissa de maneira relativamente suave, assim como a bola na mão de Voilson.

Isso significa que movimentos da Terra não afetam os movimentos de objetos na superfície da Terra? De maneira nenhuma! Fiquei até curioso para saber de onde Didi tirou essa ideia absurda. Vejamos essa questão mais de perto.

Voltemos ao experimento de Voilson. A explicação que demos acima implica em que movimentos do avião não afetam os movimentos da bola jogada por Voilson? De maneira nenhuma! Imagine que, no momento em que Voilson joga a bola para cima, o avião se incline para um lado. Do ponto de vista de Planilson, a bola segue sua trajetória normal. Do ponto de vista de Voilson, a bola sofre um desvio para um lado e cai longe de sua mão. É como se surgisse do nada uma força horizontal perturbando a bola. O que acontece, porém, é que seu referencial deixou de ser horizontalmente inercial (sem forças fictícias na horizontal).

A Terra não é um sistema inercial porque gira, como podemos ver por inúmeros experimentos independentes entre si, incluindo o do pêndulo de Foucault e as fórmulas e resultados que geram para cada modelo e a comparação disso com o que se observa na prática. Mas o que conta em fenômenos físicos são sempre velocidades relativas. O movimento de giro da Terra afeta correntes atmosféricas e marítimas de maneira visível, assim como o faz com o pêndulo de Foucault.

Outro ponto perturbador do vídeo foi uma afirmação errada que costuma ser repetida à exaustão por terraplanistas que não param para entender o que estão repetindo: que a Terra gira a 1600 km/h no modelo padrão. Não é verdade. Em primeiro lugar, isso está próximo da verdade apenas no Equador. No texto “Ajuda a um Terraplanista”, mostramos como os cálculos com o modelo de Terra redonda geram corretamente os valores da aceleração da gravidade nos polos e no Equador, e como isso implica em que a água não é “espirrada” para fora da Terra, mas permanece estável com sua velocidade praticamente nula em relação ao solo. A gravidade é vertical em relação ao solo e tem valor muito maior que de uma “força centrífuga” fictícia nesse sistema não inercial.

A velocidade em km/h do solo em relação a um sistema inercial é menor do que a do Equador em latitudes diferentes de zero. Quando se fala em rotação da Terra, o correto é usar velocidade angular e não linear. E a da Terra é de uma volta por dia, ou seja, trata-se de uma rotação tão lenta que não chega a ser perceptível a olho nu.

O conceito de referencial também confunde terraplanistas ao analisar passagens bíblicas. Um exemplo famoso é o de Josué 10:13, 14. Lá é dito que, a pedido de Josué, o Sol e a Lua pararam no céu. Isso significa que o Sol e a Lua movem-se normalmente em relação à Terra. Isso entra em conflito com o que os cientistas atuais dizem, certo? Errado! No referencial do solo, este encontra-se parado, enquanto o Sol, a Lua e as estrelas movem-se no céu. Isso é o que os cientistas modernos dizem. Só que esse referencial não é inercial. Em outras palavras, descrever as leis físicas nele faz com que as leis físicas pareçam muito mais complexas do que elas realmente são. É como descrever a realidade a partir do referencial de um carrossel. Por isso, os físicos preferem, sempre que possível, usar referenciais inerciais, nos quais não aparecem aberrações como a força centrífuga, por exemplo. Em referenciais inerciais, distantes da Terra, ela gira em torno de si mesma e orbita o Sol. Mas isso não muda o fato de que, no referencial de quem está parado na superfície da Terra, é o Universo todo que gira ao redor da Terra, incluindo o Sol e a Lua. Resumindo, usar essa passagem de Josué para provar alguma coisa sobre o movimento da Terra apenas demonstra desconhecimento do assunto, tanto em termos de linguagem bíblica e seus referenciais quanto em termos de Física básica.

Resumo geral: Didi apresenta uma “explicação” do experimento de Foucault que deixa de fora tudo o que é mais essencial ao experimento e seus resultados, depois faz uma análise na qual comete vários erros em cada frase que fala, sendo que destaquei aqui os que me chamaram mais atenção no sentido de demonstrar desconhecimento de Física básica. Além disso, prende-se a uma abordagem puramente qualitativa sem usar de fato qualquer lei física formalmente para demonstrar o que diz. E os exemplos qualitativos estão errados ou não têm a ver com o problema em discussão. Essa demonstração de desconhecimento tem sido uma constante em todo o material terraplanista que já vi até o momento.

(Eduardo Lütz é físico e engenheiro de software)