Assisti a um vídeo de um terraplanista
que é ao mesmo tempo engraçado (pela forma cômica com que trata leis físicas),
triste (pela demonstração de desconhecimento de fatos bem simples e pela
arrogância de achar que sabe mais) e assustador (pelo estrago que faz ao
divulgar informações falsas que pessoas aceitarão sem critério e repetirão sem
pensar). Chamaremos esse terraplanista de Didi, com inspiração na palavra grega
διδιάστατη. Didi “explica” o experimento do pêndulo de
Foucault. De acordo com ele, esse experimento mostra uma contradição interna da
“pseudociência”, além de não mostrar que a Terra gira.
Didi afirma que as pessoas tendem a
simplesmente repetir as coisas sem parar para pensar a respeito, e que
terraplanistas, ao contrário de ser desinformados, estudam as mesmas coisas que
os demais, com a diferença de que pensam a respeito de tudo mais profundamente.
Bem, o que observei no vídeo foi
exatamente o contrário. Foi um vídeo de pouco mais de 13 minutos, mas com uma
grande densidade de erros elementares mostrando grande ignorância do assunto do
qual trata. Vamos examinar alguns dos detalhes.
Didi inicia pela leitura de uma
descrição do experimento original. A descrição era um tanto superficial, porém,
muito mais profunda do que os comentários feitos pelo Didi, em seguida.
O que mais me chamou a atenção
inicialmente foi a explicação dada por Didi logo após a leitura: concentrou-se
exclusivamente em aspectos irrelevantes do experimento e não chegou a comentar
a parte que realmente interessa, aquela que implica em que a Terra é
aproximadamente uma esfera que gira com período de um dia. O leitor pode ver
detalhes técnicos sobre esse tipo de experimento em “Ajuda a um Terraplanista”,
disponível para download aqui.
Ao explicar o fenômeno, Didi comenta
que um pêndulo pode oscilar em qualquer direção horizontal, e que isso não
prova que a Terra gira. Verdade, mas o experimento não trata desse detalhe.
Didi concentra-se nessa informação, sendo que ela é totalmente irrelevante ao
problema. Ao contrário de pensar profundamente, ele apenas demonstra não haver
entendido o problema, concentrar-se apenas em um aspecto irrelevante e, mesmo
assim, apressar-se a tirar conclusões e falar de maneira arrogante contra a “pseudociência”.
Como funciona o experimento, de fato?
Monta-se um pêndulo formado por um fio resistente, fino e longo, preso ao teto
de uma grande sala, com muitos metros de altura. À base desse pêndulo,
pendura-se um peso com massa consideravelmente grande, de forma que ele
praticamente não seja afetado por pequenas correntes de ar ao redor. Para
iniciar o movimento, tem-se o cuidado de apenas puxar o pêndulo para um lado e
depois soltá-lo, sem qualquer desvio lateral. Uma das estratégias para isso
consiste em puxar o pêndulo para um lado e prendê-lo com um fio de linha a algo
que o segure. Depois, queima-se o fio para liberar o pêndulo, garantindo que
ele não receberá um momentum inicial que possa introduzir um viés no
experimento.
O experimento em si consiste em observar
cuidadosamente o ângulo de oscilação do pêndulo em relação aos pontos cardeais.
Se a Terra não gira, o pêndulo deve permanecer oscilando sempre no mesmo plano,
sem precessão. Precessão é a alteração do plano de oscilação do pêndulo. Se ele
inicia na direção norte-sul, por exemplo, a precessão fará com que essa direção
mude com o tempo, passando por leste-oeste, por exemplo. Podemos calcular a
velocidade angular da precessão em cada modelo e comparar com o que observamos
na prática. A velocidade de precessão depende da projeção da vertical do
pêndulo sobre o eixo de rotação da Terra.
Costumamos representar velocidade
angular pela letra grega ômega: ω.
No modelo de Terra plana fixa e no
modelo de Terra globo fixa, a previsão teórica para a precessão do pêndulo de
Foucault é
ω = 0.
Em outras palavras, o pêndulo não deve
apresentar precessão alguma, se a Terra não gira, independentemente de ser
plana ou não.
No modelo de Terra plana giratória, a
previsão teórica é
ω = -ω0,
sendo ω0 = uma volta por dia
no sentido anti-horário. Nesse caso, o pêndulo de Foucault deve precessionar
dado uma volta por dia em todas as partes do mundo da mesma forma,
independentemente da latitude.
No modelo de Terra globo giratória, a
previsão teórica para a precessão do pêndulo de Foucault é
ω = -ω0 sin(ϕ),
sendo que ϕ é a latitude da posição
onde está o pêndulo. Vejamos alguns exemplos.
- No pólo norte, ϕ = 900,
e sin (900) = 1, o que significa que a precessão ocorrerá no
sentido horário à taxa de uma volta por dia.
- No paralelo ϕ = 300
(hemisfério norte), a precessão será de meia volta por dia no sentido
horário, pois sin (300) = ½.
- No Equador, a precessão do
pêndulo cai a zero, pois sin (00) = 0.
- No paralelo ϕ = -300
(hemisfério sul), a precessão do pêndulo será de meia volta por dia em
sentido anti-horário, pois sin (-300) = -½.
- No polo sul, ϕ = -900,
o que significa que o pêndulo precessiona uma volta por dia em sentido
anti-horário.
O experimento consiste em comparar
esses valores com o que se observa. E qual é o resultado? A última fórmula é a
que reflete a realidade. Em outras palavras, das opções acima (Terra plana
fixa, Terra globo fixa, Terra plana giratória e Terra globo giratória), a única
opção que gera resultados corretos é a da Terra globo giratória.
Bem, até este ponto, Didi erra primeiro
por não entender o experimento. Concentra-se apenas em detalhes irrelevantes e
perde a essência. Também erra ao não entender que modelos devem ser testados
pelas fórmulas e pelos números que geram (por previsões teóricas) comparados
com medidas que podemos fazer. Não basta achar que uma ideia é melhor que outra.
É necessário comparar resultados.
Porém, Didi não para em sua análise
superficial do assunto. Ele segue usando argumentos do espantalho para
fundamentar a ideia de que o experimento de Foucault contradiz as próprias
afirmações da “pseudociência” e, mais uma vez, comete erros grosseiros. Vários
em cada frase. Vamos conversar sobre isso por partes.
Em primeiro lugar, é importante saber o
que é um argumento do espantalho. Trata-se de distorcer um argumento adversário
para torná-lo mais fácil de combater. Didi faz isso diversas vezes ao longo de
seu vídeo.
Um dos exemplos mais importantes de
argumentos do espantalho usados por Didi aparece no que ele fala sobre inércia.
Ele menciona a lei da inércia de uma forma que não chega a estar errada, mas
demonstra não entender os argumentos que fazem uso dela. Também demonstra
ignorar completamente como funcionam os diferentes tipos de referenciais em
Física. Vamos aos detalhes.
Ele diz que seus adversários afirmam
que, de acordo com a lei da inércia, movimentos da Terra não afetam movimentos
dos objetos na superfície da Terra, sendo que o pêndulo de Foucault demonstra o
contrário. Temos, portanto, uma contradição interna da “pseudociência”. Esse é
um exemplo de argumento do espantalho. Vejamos por quê.
Em primeiro lugar, não se afirma que
movimentos da Terra não afetam movimentos de objetos na superfície da Terra.
Essa ideia totalmente falsa parece ser produto de uma forma obtusa de entender
explicações que damos sobre a relação entre movimentos da Terra e movimentos de
objetos na superfície da Terra. No texto “Ajuda a um Terraplanista”, explico o assunto dos referenciais com vários
exemplos.
Esse assunto dos referenciais é
fundamental para o entendimento de leis físicas, mas terraplanistas têm
sistematicamente ignorado essas coisas, tanto em seus argumentos físicos quanto
em seus argumentos bíblicos, o que os leva a aberrações conceituais cada vez
maiores. Didi menciona, por exemplo, que um avião não poderia pousar no solo se
a Terra girasse a 1600 km/h, pois o avião viaja a apenas uns 250 km/h na
aterrissagem. Se fosse descer sobre uma pista a 1600 km/h, ele seria
destroçado. Didi confunde as explicações sobre isso com uma afirmação absurda
de que movimentos da Terra não afetam movimentos de objetos na Terra. Esse
argumento mostra total falta de entendimento de mecânica newtoniana, mas é
comum que as pessoas esqueçam ou não entendam essas coisas. Embora já tenha
explicado esse assunto em outro texto, farei um breve resumo aqui.
Imagine um terraplanista chamado
Voilson em um avião viajando a 900 km/h em linha reta. Sentado em seu assento,
ele joga uma bola de baseball para cima, de forma que ela sobe uns 50 cm e cai
de volta em sua mão. Esse fenômeno acontece no avião da mesma forma que
aconteceria se a pessoa estivesse parada no solo. A bola cai na mão da pessoa a
cerca de 11 km/h na vertical. Do ponto de vista de outro terraplanista chamado
Planilson, que está no solo, a mesma bola viaja a mais de 900 km/h e percorre
aproximadamente uma parábola muito esticada na horizontal, não uma linha reta.
E atinge a mão de Voilson a mais de 900 km/h, muito mais rápido do que
projéteis de algumas armas de fogo. Planilson assiste a vídeos no canal de Didi
e entende o que ele fala sobre aviões tentando aterrissar em um aeroporto que
viaja a 1600 km/h. Os aviões seriam destroçados. Usando o mesmo raciocínio, ele
conclui que a bola destrói a mão de Voilson e explode no processo. Voilson
discorda, pois a bola atinge sua mão a apenas 11 km/h. Então, o que está errado
com o comentário de Didi quanto ao pouso de aviões? Praticamente tudo.
Afinal, por que a bola não destrói a
mão de Voilson? Porque não existem velocidades absolutas, apenas relativas.
Esse é um dos fatos básicos da Física. A velocidade da bola é de uns 900 km/h
em relação a Planilson, não a Voilson. Para Voilson, a velocidade da bola ao
atingir sua mão é de apenas 11 km/h. Planilson precisa aprender a calcular
velocidades relativas para conseguir acertar suas contas e obter resultados
compatíveis com a realidade. Se ainda não ficou claro, vamos tornar o assunto
um pouco mais explícito.
Voilson viaja a 900 km/h em relação a
Planilson e a 0 km/h em relação a si mesmo. Enquanto segura a bola em sua mão,
antes de jogá-la, ela viaja a 0 km/h em relação a Voilson e a 900 km/h em
relação a Planilson. Quando Voilson a joga para cima, a componente vertical da
velocidade inicial é de 11 km/h para cima em ambos os referenciais. No
referencial de Voilson, a componente horizontal da velocidade da bola é 0 km/h.
No de Planilson é 900 km/h. Quando a bola atinge de volta a mão de Voilson, a
componente vertical é de 11 km/h para baixo em ambos os referenciais. Mas a
componente horizontal continua a mesma (0 para Voilson, 900 km/h para
Planilson). Qual das duas velocidades deve ser usada para avaliar o estrago que
a bola causará na mão de Voilson e em si mesma?
O importante em um impacto é a
velocidade relativa entre os objetos que colidem. Não importa a velocidade de
Voilson em relação a Planilson nem a da bola em relação a Planilson. A bola
interage apenas com Voilson. E a velocidade relativa entre ambos é de apenas 11
km/h. Isso nada tem a ver com inércia, como Didi quer fazer parecer. Se a mesma
bola atingir a cabeça de Planilson a 900 km/h, ela causará sua morte.
E por que as coisas são assim? Por que
é a transferência de momentum e energia que faz diferença em colisões, e
isso só depende da velocidade relativa dos objetos que colidem entre si (de um
em relação ao outro). Força é transferência de momentum por unidade de
tempo (segunda lei de Newton). Quando há muito momentum para transferir
em pouco tempo, a força é grande e causa grandes estragos. E a transferência de
momentum depende da velocidade relativa, não da absoluta (caso isso
existisse).
E o que a inércia tem a ver com tudo
isso? Bem, do ponto de vista de Voilson, a bola em sua mão tem momentum
zero (massa vezes velocidade). Ela permanece naturalmente com a mesma
velocidade sem fazer força alguma sobre seu ambiente. Do ponto de vista de
Voilson, ela está realmente parada. Digamos que a bola tenha 100 g. Do ponto de
vista de Planilson, o momentum da bola é de 25 kg m/s. Se a bola atingir
Planilson e precisar parar em, digamos, 1 ms (milissegundo), precisará transferir os 25 kg m/s
nesse tempo e aplicará sobre Planilson uma força de 25 kN (equivalente ao peso
de umas duas toneladas e meia). Se atingir Voilson, não precisa transferir esse
momentum horizontal, pois a velocidade horizontal em relação a Voilson é zero.
O mesmo ocorre com aviões. Antes de
decolar, eles já possuem a mesma velocidade do solo (em relação a algum
observador fora da Terra). Em relação ao solo, estão parados. Ao decolarem,
adquirem alguma velocidade em relação ao solo. Mais tarde, essa velocidade
relativa diminui e o avião aterrissa de maneira relativamente suave, assim como
a bola na mão de Voilson.
Isso significa que movimentos da Terra
não afetam os movimentos de objetos na superfície da Terra? De maneira nenhuma!
Fiquei até curioso para saber de onde Didi tirou essa ideia absurda. Vejamos
essa questão mais de perto.
Voltemos ao experimento de Voilson. A
explicação que demos acima implica em que movimentos do avião não afetam os
movimentos da bola jogada por Voilson? De maneira nenhuma! Imagine que, no
momento em que Voilson joga a bola para cima, o avião se incline para um lado.
Do ponto de vista de Planilson, a bola segue sua trajetória normal. Do ponto de
vista de Voilson, a bola sofre um desvio para um lado e cai longe de sua mão. É
como se surgisse do nada uma força horizontal perturbando a bola. O que
acontece, porém, é que seu referencial deixou de ser horizontalmente inercial
(sem forças fictícias na horizontal).
A Terra não é um sistema inercial
porque gira, como podemos ver por inúmeros experimentos independentes entre si,
incluindo o do pêndulo de Foucault e as fórmulas e resultados que geram para
cada modelo e a comparação disso com o que se observa na prática. Mas o que
conta em fenômenos físicos são sempre velocidades relativas. O movimento de
giro da Terra afeta correntes atmosféricas e marítimas de maneira visível,
assim como o faz com o pêndulo de Foucault.
Outro ponto perturbador do vídeo foi
uma afirmação errada que costuma ser repetida à exaustão por terraplanistas que
não param para entender o que estão repetindo: que a Terra gira a 1600 km/h no
modelo padrão. Não é verdade. Em primeiro lugar, isso está próximo da verdade
apenas no Equador. No texto “Ajuda a um Terraplanista”, mostramos como os cálculos com o modelo de Terra redonda geram
corretamente os valores da aceleração da gravidade nos polos e no Equador, e
como isso implica em que a água não é “espirrada” para fora da Terra, mas
permanece estável com sua velocidade praticamente nula em relação ao solo. A
gravidade é vertical em relação ao solo e tem valor muito maior que de uma “força
centrífuga” fictícia nesse sistema não inercial.
A velocidade em km/h do solo em relação
a um sistema inercial é menor do que a do Equador em latitudes diferentes de
zero. Quando se fala em rotação da Terra, o correto é usar velocidade angular e
não linear. E a da Terra é de uma volta por dia, ou seja, trata-se de uma
rotação tão lenta que não chega a ser perceptível a olho nu.
O conceito de referencial também
confunde terraplanistas ao analisar passagens bíblicas. Um exemplo famoso é o
de Josué 10:13, 14. Lá é dito que, a pedido de Josué, o Sol e a Lua pararam no
céu. Isso significa que o Sol e a Lua movem-se normalmente em relação à Terra.
Isso entra em conflito com o que os cientistas atuais dizem, certo? Errado! No
referencial do solo, este encontra-se parado, enquanto o Sol, a Lua e as
estrelas movem-se no céu. Isso é o que os cientistas modernos dizem. Só que
esse referencial não é inercial. Em outras palavras, descrever as leis físicas
nele faz com que as leis físicas pareçam muito mais complexas do que elas
realmente são. É como descrever a realidade a partir do referencial de um
carrossel. Por isso, os físicos preferem, sempre que possível, usar
referenciais inerciais, nos quais não aparecem aberrações como a força
centrífuga, por exemplo. Em referenciais inerciais, distantes da Terra, ela
gira em torno de si mesma e orbita o Sol. Mas isso não muda o fato de que, no
referencial de quem está parado na superfície da Terra, é o Universo todo que
gira ao redor da Terra, incluindo o Sol e a Lua. Resumindo, usar essa passagem
de Josué para provar alguma coisa sobre o movimento da Terra apenas demonstra
desconhecimento do assunto, tanto em termos de linguagem bíblica e seus
referenciais quanto em termos de Física básica.
Resumo geral: Didi apresenta uma “explicação”
do experimento de Foucault que deixa de fora tudo o que é mais essencial ao
experimento e seus resultados, depois faz uma análise na qual comete vários
erros em cada frase que fala, sendo que destaquei aqui os que me chamaram mais
atenção no sentido de demonstrar desconhecimento de Física básica. Além disso,
prende-se a uma abordagem puramente qualitativa sem usar de fato qualquer lei
física formalmente para demonstrar o que diz. E os exemplos qualitativos estão
errados ou não têm a ver com o problema em discussão. Essa demonstração de
desconhecimento tem sido uma constante em todo o material terraplanista que já
vi até o momento.
(Eduardo Lütz é físico
e engenheiro de software)