segunda-feira, abril 24, 2023

O elo perdido, segundo Frei Betto

[Meus comentários seguem entre colchetes. – MB] Há tempos a ci­ência in­ves­tiga o elo per­dido entre o ma­caco e o homem. Já há con­senso de que Darwin tinha razão [sic]. Até o papa João Paulo II, que não era de dar o braço a torcer, ad­mitiu a per­ti­nência do darwi­nismo [sim os últimos papas deixaram clara sua visão evoteísta, que tenta misturar Bíblia com darwinismo]. O que obrigou os bispos da Ar­gen­tina, adeptos fun­da­men­ta­listas [sic] do cri­a­ci­o­nismo, a sus­pender, nas es­colas ca­tó­licas, o en­sino de que entre Deus e nós não houve outros in­ter­me­diários senão Adão e Eva.

Os cri­a­ci­o­nistas não podem ir além da ideia de um deus oleiro que, tendo brin­cado com ar­gila e so­prado o barro, deu vida às maquetes hu­manas [lamentável ver um frei usar linguagem irônica ao se referir ao relato histórico e factual da criação conforme registrado por Moisés em Gênesis]. Se dessem um passo a mais na ge­ne­a­logia do pri­meiro casal fi­ca­riam en­ca­la­crados. Se Adão e Eva ti­veram apenas fi­lhos machos, Caim, Abel e Seth, como se ex­plica essa vasta des­cen­dência da qual fa­zemos parte? Se­ríamos todos fi­lhos e filhas de um pa­ra­di­síaco in­cesto? [“Aos 130 anos, Adão gerou um filho à sua semelhança, conforme a sua imagem; e deu-lhe o nome de Sete.
Depois que gerou Sete, Adão viveu 800 anos e gerou outros filhos e filhas” (Gênesis 5:3, 4). Que falta faz ler a Bíblia levando-a a sério.]

Como os an­tigos he­breus não frequen­taram a uni­ver­si­dade e, por­tanto, es­tavam isentos da lin­guagem aca­dê­mica, abs­trata, em toda a Bí­blia não há uma só aula de dou­trina ou te­o­logia [quanta prepotência!]. Sua lin­guagem é a do mi­neiro, à base de “causos”. Vê-se o que se lê. A lin­guagem figurativa, própria dos povos semitas, trans­forma con­ceitos em ima­gens. O vo­cá­bulo he­braico “terra” deu origem a Adão [sim, pois ele foi formado dos mesmos constituintes químicos do solo], e “vida” a Eva [claro, pois é da mulher que provém a vida], numa configuração plástica da noção de que Deus criou o mundo e a humanidade. O curioso é que o autor bíblico sugere que a vida veio da terra, o que só foi constatado pela ciência no século 19, quando foram descobertas as leis da evolução do Universo.

A Bí­blia quer en­sinar apenas que Deus é o cri­ador do Uni­verso, in­cluídos os hu­manos que, em­bora obra di­vina, pa­decem de duas li­mi­tações in­trans­po­ní­veis: têm prazo de va­li­dade e de­feito de fa­bri­cação [se levasse a Bíblia a sério, entenderei o que explica o capítulo 3 de Gênesis: que a morte e os “defeitos” não fazem parte da criação original de Deus, mas são resultado temporário da entrada do pecado no mundo]. O que a dou­trina cristã chama de pe­cado ori­ginal [se não há doutrinas na Bíblia, como escreveu Betto, então elas foram todas inventadas pelos cristãos?].

Isto é óbvio: todos morrem um dia, mal­grado as aca­de­mias de le­tras re­pletas de imor­tais, e não são poucos os que de­mons­tram grandes de­feitos de fa­bri­cação – ao longo da vida tornam-se cor­ruptos, men­ti­rosos, criminosos, opor­tu­nistas, se­gre­ga­dores, ma­chistas, homofóbicos, cí­nicos. Em suma, ho­mens sem qua­li­dade, diria Musil. E muitos com uma cu­riosa ten­dência para a po­lí­tica [adepto da teologia da libertação há muitos anos, o frei não perderia a oportunidade de politizar o assunto...].

Quando teria se dado o salto do símio ao hu­mano? No dia em que um ma­caco uti­lizou um pe­daço de pau como ex­tensão das mãos, como mostra Stanley Ku­brick, no filme “2001, uma odis­seia no es­paço”? [curiosamente, o relato bíblico da criação é mitológico, alegórico, mas no filme é “mostrada” e evolução humana... Cada um escolhe as fontes nas quais acreditar.] Ou no dia em que o oran­go­tango de­cidiu, ao con­trário de toda a fa­mília zo­o­ló­gica, deixar de comer quando tem fome e marcar hora para as re­fei­ções? Teria sido na­quela tarde de sá­bado em que o ma­caco tem­perou a caça com pi­menta e assou na brasa que res­tara de uma quei­mada pro­du­zida pelo re­lâm­pago, sem saber que in­ven­tava o chur­rasco? [Isso não é história pra macaco dormir; o texto bíblico, esse sim, é!]

Um ver­da­deiro hu­mano seria uma pessoa do­tada de cri­a­ti­vi­dade. Quem já viu uma casa de joão-de-barro com uma va­ran­dinha ou um pu­xa­dinho para abrigar o filho recém-casado? [Pois é. Quais foram as mutações aleatórias filtradas pela seleção natural lenta e gradual que “ensinaram” o joão-de-barro e tantos outros animais a serem tão engenhosos, dependentes de instintos que deveriam funcionar bem desde o princípio?] Ocorre que a cri­a­ti­vi­dade é também um atri­buto dos ban­didos. Talvez seja me­lhor ca­rac­te­rizar o hu­mano por suas vir­tudes: uma pessoa ge­ne­rosa, al­truísta, ética, so­li­dária, amo­rosa, capaz de par­ti­lhar seus bens e dons. Isso existe? [E se existe, quando foi que a evolução nos dotou de tais atributos antievolutivos, que contrariam a “sobrevivência do mais forte”?]

Se es­ti­vermos de acordo que isso ainda é um pro­jeto, uma pers­pec­tiva, um sonho, então há que aceitar: o elo per­dido entre o ma­caco e o homem somos nós, essa ca­deia de ma­mí­feros que co­meça com a cu­ri­o­si­dade de Adão e Eva, que foram meter o nariz onde não eram cha­mados, à ge­ração atual con­tem­po­rânea de Biden e Putin! Aliás, dois bons exem­plos da es­pécie pré-hu­mana que tem o rabo preso; onde mete os pés cria uma bana­nosa e vive in­va­dindo o es­paço alheio. [Aí tenho que concordar com Betto: Biden e Putin (e Xi Jinping, também) são “bons” exemplos da decadência da humanidade, em sua sanha conquistadora, repressora, destrutiva, capitalista, gramcista, secularista, deturpadora de valores bíblicos, etc., etc.]

Nós somos o elo que an­dava per­dido. No en­tanto, ele sempre es­teve na nossa frente. Basta-nos mirar no es­pelho. O ver­da­dei­ra­mente hu­mano é ainda um projeto de fu­turo. Caso con­trário, o pró­prio elo ha­verá de se romper e o pro­jeto hu­mano que­dará como uma utopia. Talvez re­a­li­zável em algum outro planeta onde haja abun­dância disto que tanto falta por aqui: vida in­te­li­gente. [Esta é a visão típica dos religiosos marxistas da teologia da libertação: não há esperança real para a humanidade; tudo se trata de utopia irrealizável; os cristão bíblicos criacionistas creem que Deus resolverá o problema; creem que Jesus voltará e um dia recriará a Terra, devolvendo-a à sua condição edênica. Mas como crer nisso, quando se pensa que o “pecado original” não existiu de fato (pelo menos não como relata a Bíblia em Gênesis 3), e que, portanto, Jesus não veio para saldar a dívida humana e redimir a humanidade, mas veio para morrer como um mero mártir revolucionário? Como crer nisso, se a segunda vinda de Cristo sequer é tida como uma doutrina e uma promessa Bíblica?]

Ou quem sabe o Cri­ador de­cida passar a limpo sua cri­ação pela se­gunda vez. Du­vido que vá des­truí-la com um novo di­lúvio. A água é, hoje, um bem es­casso. Deus é ge­ne­roso, não per­du­lário. Talvez o aque­ci­mento global seja o pri­meiro in­dício de que tudo ha­verá de virar cinza. Ou, quem sabe, nós mesmos apressaremos o apocalipse desencadeando uma guerra nuclear. Então um novo Gê­nesis terá início. [Como? De que forma? Destruiremos o mundo para que possa haver uma nova suposta evolução? Deus deixará as coisas chegarem a esse ponto, assistindo a tudo de braços cruzados?]

Des­confio que, no sexto dia, Deus criará ani­mais inaptos a de­sen­volver uma ca­deia evo­lu­tiva. E, no sé­timo, se re­cos­tará em sua rede no Jardim do Éden, porque nin­guém é de ferro, e con­tem­plará a be­leza do Uni­verso – agora livre da ameaça de um pe­ri­goso pre­dador descendente dos ma­cacos, o elo entre o que já não é e o que nunca foi. [Lamento muito que um frei, um religioso mantenha esse tipo de ponto de vista melancólico e o ensine por aí; mas chego a entendê-lo, pois, antes de me tornar criacionista, sustentei visão semelhante e desprovida de esperança. Mas os iluminados são eles e os “fundamentalistas” de mente estreita somos nós. Sim, uma pena.]

(Instituto Humanitas Unisinos)