Lendo seu texto sobre a fala estulta solta, inadvertidamente, pelo apresentador Bóris Casoy, lembrei-me de um episódio semelhante ocorrido em meados de 1994. Na ocasião, o então Ministro da Fazenda, Rubens Ricúpero, foi gravado falando em off a seguinte frase: “Eu não tenho escrúpulos: o que é bom a gente fatura, o que é ruim a gente esconde.” A oposição ao governo Itamar Franco, obviamente, explorou o incidente até onde pôde. Cabe notar que o jurista, diplomata e economista Ricúpero foi (e continua sendo) um dos mais íntegros homens públicos da história da nossa república. Pouco depois, em um gesto raro na nossa política, ele veio a público, com sincera humildade, desculpar-se com a nação e apresentar seu pedido de demissão. Não procurou justificar-se; não buscou esconder-se acusando algo como complô ou golpismo da “mídia”; antes ajoelhou-se no milho; rasgou as vestes; pôs cinzas sobre a cabeça, e saiu com ela erguida e erguida permanece.
O que me chamou a atenção foi o contraste entre a figura contrita e sóbria do ex-ministro caído em desgraça e a plêiade de santarrões que assomou de todos os rincões do país. Era como se a queda de Ricúpero tivesse o condão de transformar em varões de Plutarco todos, indistintamente todos os políticos da cena nacional. Anotei alguns textos de jornalistas esfolando o infeliz político e comparei suas indignações éticas de então com suas indulgências de agora ante a infinitude de escândalos que vêm aflorando nos últimos seis anos. Creia-me: nada mais pedagógico. Mas vou-me ater a um único caso, que, inclusive, deveria servir de Norte não apenas a Casoy, mas a todos nós.
O jornalista Carlos Heitor Cony, em 05/09/1994, escreveu o que se segue:
“Homem religioso, o ex-ministro Rubens Ricúpero devia conhecer aquela fórmula de santidade atribuída a Francisco de Sales: ‘proceder em público como se estivesse sozinho, e, sozinho, agir como se estivesse em público’ [grifo meu]. Se assim o fizesse, não estaria amargando o vinagre em que se meteu. Os entendidos afirmam que nada há de pior do que a queda de um anjo, a começar por Lúcifer: ‘vidi angelum cadentem!’ Mas a reflexão que prefiro fazer é outra. Se o melhor era isso, se Ricupero com seu visual de Fran Angelico era no fundo um funcionário grosseiro, atolado na vulgaridade do poder, o que serão os outros? Uma parabólica nas conversas íntimas entre Itamar e o seu pessoal de Juiz de Fora, entre FHC e seus hierarcas da campanha, um telefonema entre Roberto Marinho e Antônio Carlos Magalhães, uma reciclagem entre Marco Maciel e Jorge Bornhausen – não dá para imaginar. Imaginar o pior seria melhor do que a realidade.
“Fica difícil avaliar o que acontecerá com o real e com a candidatura do governo. A inconfidência da parabólica apenas revelou o óbvio, o que todos sabiam: o Plano Real pode ser excelente, mas não é para valer. O que interessa ao governo é a continuação do mesmo grupo no poder – coisa tão primária e tão antiga na história do mundo que também não dá para admirar. Resta lamentar que a selva política tenha tragado um homem como Ricúpero. Não sendo do ramo, suas defesas eram frágeis, ignorava o macete que mantém permanentemente ligado o piloto automático de um profissional. Caiu no grave pecado, aliás, no único pecado que um político não pode cometer: disse o que estava pensando.”
Observe a insinuação rasteira do ateu Cony a respeito da religiosidade de Ricúpero, que nos é impingida por tabela. Como cristãos, um único deslize nosso, por insignificante que seja, pode servir de andor aos incréus e aos inimigos da Verdade, do Bem e da Justiça. Só dos que, como os cristãos, propõem-se a trilhar a retidão é cobrado integridade, coerência, caráter. Já os que pisoteiam um justo caído...
Só para citar um exemplo, o próprio Cony, crítico impiedoso e infatigável dos governos Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso, bem como do Plano Real (“o óbvio, o que todos sabiam: o Plano Real pode ser excelente, mas não é para valer”), mostrou-se longânimo e inefável em relação ao governo posterior. Coincidentemente, foi agraciado há alguns anos com milionária indenização (R$ 1,5 milhão + R$ 19.000 mensais vitalícios) como “perseguido político” – essa elástica e insaciável confraria que põe na sombra o burro de gente que nunca sequer levou um peteleco nos tempos da ditadura militar; pior: muitos foram despedidos de suas agências de notícias por desídia, falta de ética ou pura incompetência, e vieram bater à porta da Viúva reclamando (e conseguindo!) prebendas nababescas.
Voltando a Cony, não satisfeito em nadar de braçada na gorda pensão que sai de nossos bolsos, ele aproveitou para vir a público e defender José Sarney apaixonadamente, por ocasião da última crise do Senado. Se não apagaram o áudio (garanto que o ouvi) com a defesa incrivelmente cínica de Cony a Sarney, ela deve estar aqui, em alguma data entre março e julho de 2009.
A advertência que nos fica desse caso é justamente a malícia venenosa de Cony: “se Ricupero com seu visual de Fran Angelico era no fundo um funcionário grosseiro, atolado na vulgaridade do poder, o que serão os outros? (...) Imaginar o pior seria melhor do que a realidade.” Na boca dos inimigos de Cristo, soaria mais ou menos assim: “se este aí é assim, imagine o resto...”
O melhor é gravarmos na mente a única parte didática do texto de Cony, a citação feita por nossa vestal apaniguada: “proceder em público como se estivesse sozinho, e, sozinho, agir como se estivesse em público.” Ou como diria Nosso Senhor: “Sede prudentes como as serpentes e simples como as pombas” (Mt 10:16).
(Marco Dourado, formado em Ciência da Computação pela UnB, com especialização em Administração em Banco de Dados)