Um desserviço à ciência e à religião |
Deu
no portal UOL: “Nós sabemos: 2016 mal começou, mas já podemos ter a ‘teoria de conspiração
do ano’. Não se sabe bem a razão, mas argumentos de que a Terra é plana – fato não
só contestado por imagens tiradas do espaço, mas também por investigações
matemáticas que datam desde a Grécia antiga – têm ganhado manchetes pelo mundo
todo recentemente. [...] Quem são os crentes da Terra plana? [...] Eles
acreditam basicamente, que há uma conspiração mundial envolvendo cientistas e
agências espaciais para que todos acreditem que a Terra é esférica. É dito que
estamos em um disco circular, não em um globo, com o Polo Norte no meio e a
Antártida em toda a borda. [...] Em matéria do jornal inglês The Guardian, é citado que os
seguidores dessa teoria são ‘quase como uma religião’. Não se sabe qual é
realmente o tamanho do grupo. Mas, como em qualquer assunto, fanáticos fazem
barulho. Principalmente na internet. Em grupos de Facebook, posts no Twitter, vídeos no YouTube,
fóruns... [...] Inúmeros fatos são apontados pelos membros dos grupos. As
alegações para isso vão desde ‘desaparecimento de navios’ a ‘horizonte reto’ (mas
não citam que barcos ficam só parcialmente visíveis no horizonte por causa
da curvatura terráquea).”
O
livro Inventando a Terra Plana (São
Paulo: Editora Unisa, 1999), de Jeffrey Burton Russel, historiador e
pesquisador da Universidade da Califórnia, mostra convincentemente que a ideia
da Terra plana foi uma elaboração mais ou menos recente. Embora hoje se saiba
que os europeus renascentistas tenham supervalorizado a ideia de que houve um
período de mil anos de trevas intelectuais entre o mundo clássico e o moderno,
Russel acredita que o erro da Terra plana não havia sido incorporado à
ortodoxia moderna antes do século 19. “[Russel] descobriu o fio da meada nos
escritos do americano Washington Irving e do francês Antoine-Jean Letronne
[responsáveis pela posterior propagação do mito da Terra plana]. Mas sua
disseminação no pensamento convencional ocorreu entre 1870 e 1920, como
consequência da ‘guerra entre a ciência e a religião”, quando para muitos
intelectuais na Europa e nos Estados Unidos toda religião tornou-se sinônimo de
superstição e a ciência tornou-se a única fonte legítima da verdade. Foi
durante os últimos anos do século 19 e os primeiros anos do século 20 que a
viagem de Colombo se tornou então um símbolo amplamente divulgado da futilidade
da imaginação religiosa e do poder libertador do empirismo científico. [...] os
pensadores medievais, da mesma forma que os clássicos que os antecederam, criam
na redondeza da Terra” (p. 10).
Irving
(1783-1859) retocou a história para parecer que a oposição à viagem de Colombo
se deveu ao pensamento de que a Terra fosse plana. Isso foi provado falso. A
oposição se deveu, na verdade, à preocupação com a distância que os navegadores
teriam que percorrer. A esfericidade da Terra não foi tema de discussão naquela
ocasião.
O
fato é que nem Cristóvão Colombo, nem seus contemporâneos pensavam que a Terra
fosse plana. Não há uma referência sequer nos diários do navegador (e de outros
exploradores) que levante a questão da redondeza da Terra, o que indica que não
havia contestação alguma a esse respeito, na época. Assim, segundo Russel, é
comum a regra de Edward Grant de que no século 15 não havia pessoas cultas que
negassem a redondeza da Terra. No entanto, esse mito permanece até hoje,
firmemente estabelecido com a ajuda dos meios de comunicação e dos livros
didáticos. Com que interesse?
Para
Russel, o mito da Terra plana pode ser rastreado até o século 19, especialmente
a partir de 1870, à medida que autores de livros-textos se envolveram na
controvérsia em torno do darwinismo. “No início do século [20] a força
dominante subjacente ao erro [da Terra plana] foi o anticlericalismo do
Iluminismo no seio da classe média na Europa, e o anticatolicismo nos Estados
Unidos” (p. 35).
Antes
disso, na Divina Comédia, o poeta Dante Alighieri (1265-1321) já
apresentava o conceito de uma Terra redonda. Os filósofos escolásticos,
incluindo o maior deles, Tomás de Aquino (1225-1275), conhecedores de
Aristóteles, igualmente afirmavam a esfericidade da Terra.
No
entanto, como os escolásticos e filósofos medievais se baseavam em Aristóteles
e este defendia a esfericidade da Terra, os iluministas tiveram que arranjar
outros referenciais para dizer que o mito se baseava neles. E os encontraram em
Lactâncio (245-325 d.C.) e Cosme Indicopleustes, autor de Topografia Cristã (escrito entre
547 e 549 d.C.). Só que, segundo Russel, Lactâncio tinha ideias muito estranhas
sobre Deus e não foi levado em consideração na Idade Média (na verdade, foi
considerado herege) – até que os humanistas da Renascença o “ressuscitassem”,
apregoando sua suposta influência. Indicopleustes, partindo de escritos de
filósofos pagãos e interpretando erroneamente textos bíblicos poéticos,
defendeu a ideia da Terra plana. Era ignorado, ao invés de seguido.
Detalhe:
a primeira tradução de Cosme para o latim não foi feita senão em 1706.
Portanto, como poderia ele ter tido influência sobre o pensamento ocidental
medieval?
Russel
arremata: “[Lactâncio e Cosme] foram símbolos convenientes a serem usados como armas
contra os antidarwinistas. Em torno de 1870, o relacionamento entre a ciência e
a teologia estava começando a ser descrito através de metáforas bélicas. Os
filósofos (propagandistas do Iluminismo), particularmente [David] Hume, haviam
plantado uma semente ao implicar que estavam em conflito os pontos de vista
científicos e cristãos. Augusto Comte (1798-1857) havia argumentado que a
humanidade estava laboriosamente lutando para ascender em direção ao reinado da
ciência; seus seguidores lançaram o corolário de que era retrógrado tudo o que
impedisse o advento do reino da ciência. Seu sistema de valores percebia o
movimento em direção à ciência como ‘bom’, de tal forma que o que atrapalhasse
esse movimento era ‘mau’. [...] O erro [da Terra plana] foi, desta forma,
incluído no contexto de uma controvérsia muito maior – a alegada guerra entre
ciência e religião” (p. 67, 77).
O
próprio Copérnico, no prefácio de seu clássico trabalho De Revolutionibus, usou Lactâncio para
ilustrar como a ignorância dos opositores à ideia da Terra esférica era
comparável à dos que insistiam no geocentrismo. Curiosamente, Copérnico não diz
que Lactâncio era típico do pensamento medieval. Esse prefácio foi enviado para
o papa a fim de obter aprovação eclesiástica. Copérnico não atacaria Lactâncio
e sua ideia da Terra plana, se a igreja estivesse de acordo com esse
pensamento. O problema, como já vimos, teve que ver com o geocentrismo
aristotélico versus heliocentrismo, e
não com o formato da Terra.
Com
essa polêmica levantada pelos novos defensores da Terra plana, já há quem
tente, pela milionésima vez, mostrar que a Bíblia sustenta essa ideia absurda.
Nada mais falso, também. Na Bíblia não há qualquer sugestão de que a Terra
poderia ser plana. Conforme explicam os teólogos Gerhard e Michael Hasel, “algumas passagens poéticas descrevem os ‘alicerces’
da Terra como descansando sobre ‘colunas’ (1Sm 2:8; Jó 9:6). No entanto, essas
palavras são usadas apenas em poesia e são mais bem entendidas como metáforas.
Elas não podem ser interpretadas como colunas literais. Até hoje, falamos
metaforicamente das ‘colunas da igreja’, referindo-nos aos membros de confiança
da comunidade de crentes. Então, as colunas da terra são metáforas que descrevem
Deus como aquele que pode apoiar ou mover os fundamentos internos que mantêm a Terra
no lugar e unida, porque ele é o Criador” (He
Spoken and It Was, em preparo para publicação em português pela Casa
Publicadora Brasileira).
Isso também ocorre com expressões como “os quatro
ventos [ou cantos] da Terra”, o que não desmerece a Bíblia, uma vez que até
mesmo cientistas ainda hoje usam expressões como “pôr do sol”, embora todos
saibamos que não é o Sol que se põe.
Infelizmente, defensores de teorias conspiratórias
como a da Terra plana prestam um desserviço à história da ciência e até mesmo à
religião. Mais confundem do que ajudam, e tudo o que conseguem é cair no
ridículo.
Michelson
Borges