quarta-feira, outubro 18, 2017

Em O Reino da Fala, Tom Wolfe caminha na contramão de Darwin

O que nos separa dos outros animais? A racionalidade, certo. Além de certas peculiaridades, como, por exemplo, saber rir... Ok, as hienas também sabem rir, mas não falam; apenas conversam (ou ladram) entre si, não têm o poder da linguagem, como não o têm papagaios e macacos, que conseguem tão bem nos imitar. “A linguagem é o nosso Rubicão, e nenhuma besta ousará cruzá-lo”, bradou o renomado linguista Max Müller, ao final de uma palestra na Royal Institution de Londres, em 1861. E desde então, só no cinema, primeiro com Walt Disney, as bestas cruzaram o Rubicão. 

Em 1861 fazia apenas dois anos que Charles Darwin publicara seu tratado sobre a evolução das espécies. Mesmo acreditando que o homem foi criado por Deus à sua imagem e semelhança e não por um processo de seleção natural que nos reconheceu descendentes do macaco [sic], os criacionistas não tinham por que se opor à tese de que só os humanos têm o poder da linguagem. Mas como adquirimos tal poder? Os criacionistas não tinham por que se preocupar com essa questão. Os evolucionistas até hoje não chegaram a uma conclusão. Sabe-se que o cérebro humano evoluiu e nossa laringe adquiriu uma forma capaz de produzir sons que nossos primos primatas não conseguem emitir, mas desconhecemos como isso ocorreu [sabe-se, mas não se sabe como...]. Os linguistas também já entregaram os pontos. [Será por que é bem complicado explicar quem surgiu primeiro – se as cordas vocais, se a laringe, ou se os neurônios especializados na fala? De que adiantaria um órgão ou uma função relacionada com a fala sem que os demais órgãos e as demais funções existissem e fossem funcionais? Por que um órgão adaptado a um tipo de função se modificaria para assumir outra função específica?]

Ano passado, o decano do Novo Jornalismo Tom Wolfe esbarrou na internet com um artigo sobre “o mistério da evolução da linguagem”, em que uma plêiade de evolucionistas pesos-pesados, entre os quais o linguista Noam Chomsky, comunicava ter desistido da questão de onde a fala – a linguagem – vem e como funciona. “Jamais ouvira falar de um grupo de especialistas se reunindo para anunciar que eram fracassados abjetos”, pensou Wolfe. Os especialistas só confessaram, honestamente, seu fracasso; o “abjetos” foi uma ilação de Wolfe, que sacou na hora o tema de seu próximo livro. 

Ali estava mais uma controvérsia – a incompetência de naturalistas, linguistas e biólogos – para ele aumentar seu rol de desafetos, chamar atenção da mídia e confeccionar outro best seller. Já comprara briga com os “radicais chiques” da esquerda intelectual nova-iorquina, o Olimpo literário americano, os praticantes e teóricos da arte moderna (A Palavra Pintada) e os arquitetos contemporâneos (De Bauhaus ao Nosso Caos). Com The Kingdom of Speech (aqui editado pela Rocco: O Reino da Fala) chegou a vez do establishment científico. Polemizar é o seu “cheiro de napalm pela manhã”. [...]

Wolfe não duvida que a Terra seja redonda, mas, qual um quinta-coluna do criacionismo, desqualifica a teoria do Big Bang como vagamente ridícula e reduz a Teoria da Evolução à “mera hipótese científica”, desprovida de prova material [quando alguém, por mais genial e inteligente que seja, vai contra a todo-poderosa teoria da evolução, começa a ser desacreditado na mídia]. E os quase cinco anos que Darwin pesquisou a bordo do Beagle? E as evidências (anatomia comparativa, fósseis e distribuição geográfica das espécies, etc.) por ele apresentadas? E as pesquisas hoje feitas em laboratórios com micróbios e insetos? [Nenhuma dessas observações e pesquisas prova a macroevolução. Simples assim. Ponto para Wolfe.]

Para incrementar sua iconoclastia, Wolfe providenciou um Salieri evolucionista para Darwin: Alfred Russell Wallace. Enfurnado numa ilha da Malásia, a coletar plantas e espantar mosquitos, Wallace teria chegado ao princípio da evolução por seleção natural antes de Darwin. É uma história fascinante. Com um desfecho melancólico: Wallace um dia virou espírita, passou a comunicar-se com o além e, zás!, recolheu-se de novo à sua insignificância. 

Se Daniel Everett, o Salieri de Chomsky, mais parece uma versão masculina de Eve Harrington, a malvada de A Malvada, a culpa é do venenoso e perverso Wolfe, embora sua intenção primeira tenha sido sujar a reputação do sumo linguista do MIT, a quem apelidou de “Noam Charisma”. Esse carisma é, no mínimo, uma ironia. Wolfe não consegue olhar para o Chomsky linguista revolucionário sem ver o Chomsky militante de esquerda. O mais janota jornalista à direita de Gay Talese é um conservador tão imaculado quanto os alvos ternos que nunca tira do corpo e já foram motivo de piada até na série dos Simpsons. [Quando alguém, por mais genial e inteligente que seja, vai contra o todo-poderosa marxismo cultural, começa a ser desacreditado na mídia.]

Sobre a origem da fala – fruto da evolução da espécie, para Darwin, e uma qualidade inata dos humanos, para Chomsky – Wolfe tem sua própria tese. Os humanos teriam inventado a linguagem como um processo mnemônico, como um aide-mémoire. "Pedra...pedra...pedra”, ruminava o homem das cavernas para não esquecer de recolher uns cascalhos no meio do caminho. [E aqui até ele escorrega, ao não cogitar que a fala tenha sido um dom inerente dado à humanidade pelo Criador.] [...]