O
que nos separa dos outros animais? A racionalidade, certo. Além de certas
peculiaridades, como, por exemplo, saber rir... Ok, as hienas também sabem rir,
mas não falam; apenas conversam (ou ladram) entre si, não têm o poder da
linguagem, como não o têm papagaios e macacos, que conseguem tão bem nos
imitar. “A linguagem é o nosso Rubicão, e nenhuma besta ousará cruzá-lo”,
bradou o renomado linguista Max Müller, ao final de uma palestra na Royal Institution
de Londres, em 1861. E desde então, só no cinema, primeiro com Walt Disney, as
bestas cruzaram o Rubicão.
Em
1861 fazia apenas dois anos que Charles Darwin publicara seu tratado sobre a
evolução das espécies. Mesmo acreditando que o homem foi criado por Deus à sua
imagem e semelhança e não por um processo de seleção natural que nos reconheceu
descendentes do macaco [sic], os criacionistas não tinham por que se opor à
tese de que só os humanos têm o poder da linguagem. Mas como adquirimos tal poder?
Os criacionistas não tinham por que se preocupar com essa questão. Os
evolucionistas até hoje não chegaram a uma conclusão. Sabe-se que o cérebro
humano evoluiu e nossa laringe adquiriu uma forma capaz de produzir sons que
nossos primos primatas não conseguem emitir, mas desconhecemos como isso
ocorreu [sabe-se, mas não se sabe como...]. Os linguistas também já entregaram
os pontos. [Será por que é bem complicado explicar quem surgiu primeiro –
se as cordas vocais, se a laringe, ou se os neurônios especializados na fala?
De que adiantaria um órgão ou uma função relacionada com a fala sem que os
demais órgãos e as demais funções existissem e fossem funcionais? Por que um
órgão adaptado a um tipo de função se modificaria para assumir outra função
específica?]
Ano
passado, o decano do Novo Jornalismo Tom Wolfe esbarrou na internet com um artigo sobre “o mistério da evolução da linguagem”,
em que uma plêiade de evolucionistas pesos-pesados, entre os quais o linguista
Noam Chomsky, comunicava ter desistido da questão de onde a fala – a linguagem –
vem e como funciona. “Jamais ouvira falar de um grupo de especialistas se
reunindo para anunciar que eram fracassados abjetos”, pensou Wolfe. Os
especialistas só confessaram, honestamente, seu fracasso; o “abjetos” foi uma
ilação de Wolfe, que sacou na hora o tema de seu próximo livro.
Ali
estava mais uma controvérsia – a incompetência de naturalistas, linguistas e
biólogos – para ele aumentar seu rol de desafetos, chamar atenção da mídia e
confeccionar outro best seller. Já
comprara briga com os “radicais chiques” da esquerda intelectual nova-iorquina,
o Olimpo literário americano, os praticantes e teóricos da arte moderna (A Palavra Pintada) e os arquitetos
contemporâneos (De Bauhaus ao Nosso Caos).
Com The Kingdom of Speech (aqui
editado pela Rocco: O Reino da Fala)
chegou a vez do establishment
científico. Polemizar é o seu “cheiro de napalm pela manhã”. [...]
Wolfe
não duvida que a Terra seja redonda, mas, qual um quinta-coluna do
criacionismo, desqualifica a teoria do Big Bang como vagamente ridícula e reduz
a Teoria da Evolução à “mera hipótese científica”, desprovida de prova material
[quando alguém, por mais genial e inteligente que seja, vai contra a
todo-poderosa teoria da evolução, começa a ser desacreditado na mídia]. E os quase
cinco anos que Darwin pesquisou a bordo do Beagle? E as evidências (anatomia
comparativa, fósseis e distribuição geográfica das espécies, etc.) por ele
apresentadas? E as pesquisas hoje feitas em laboratórios com micróbios e
insetos? [Nenhuma dessas observações e pesquisas prova a macroevolução. Simples
assim. Ponto para Wolfe.]
Para
incrementar sua iconoclastia, Wolfe providenciou um Salieri evolucionista para
Darwin: Alfred Russell Wallace. Enfurnado numa ilha da Malásia, a coletar plantas e espantar mosquitos,
Wallace teria chegado ao princípio da evolução por seleção natural antes de
Darwin. É uma história fascinante. Com um desfecho melancólico: Wallace um dia
virou espírita, passou a comunicar-se com o além e, zás!, recolheu-se de novo à
sua insignificância.
Se
Daniel Everett, o Salieri de Chomsky, mais parece uma versão masculina de Eve
Harrington, a malvada de A Malvada,
a culpa é do venenoso e perverso Wolfe, embora sua intenção primeira tenha sido
sujar a reputação do sumo linguista do MIT, a quem apelidou de “Noam Charisma”.
Esse carisma é, no mínimo, uma ironia. Wolfe não consegue olhar para o Chomsky
linguista revolucionário sem ver o Chomsky militante de esquerda. O mais janota
jornalista à direita de Gay Talese é um conservador tão imaculado quanto os
alvos ternos que nunca tira do corpo e já foram motivo de piada até na série
dos Simpsons. [Quando alguém, por mais genial e inteligente que seja, vai
contra o todo-poderosa marxismo cultural, começa a ser desacreditado na mídia.]
Sobre
a origem da fala – fruto da evolução da espécie, para Darwin, e uma qualidade
inata dos humanos, para Chomsky – Wolfe tem sua própria tese. Os humanos teriam
inventado a linguagem como um processo mnemônico, como um aide-mémoire.
"Pedra...pedra...pedra”, ruminava o homem das cavernas para não esquecer
de recolher uns cascalhos no meio do caminho. [E aqui até ele escorrega,
ao não cogitar que a fala tenha sido um dom inerente dado à humanidade pelo
Criador.] [...]