Um dia desses, em um feriado nacional, abri minha caixa de mensagens. Lá estava o e-mail de um amigo ateu: “Acho que vou pelo caminho da the unbearable lightness of being.” Esse foi o último grande soco que recebi em minha alma. Percebi que, depois de minhas inúmeras palavras sobre Deus, ele havia tomado a decisão de continuar sua vida insustentavelmente “leve”, descompromissada, promíscua e sem Deus, mesmo admitindo ser um homem desgostoso, obscurecido, macambúzio, sorumbático, solitário, depressivo e carente. Não respondi nada sobre a frase, mas pensei em sua insustentável leveza sem a presença do Senhor; pensei em sua dor existencial que tenho acompanhado; sua teimosia em negar o Divino; sua insensibilidade para com o amor de Deus. Sim, ele não consegue ver que só o amor de Deus é capaz de nos fazer amar semelhante tão diferente e termos compaixão por ele. Não a compaixão pejorativa que se tem empregado no mundo, mas a compaixão de estar “com o sofrimento” do outro em nós, como uma só carne, um só sangue, um só espírito.
Para quem não conhece, The unbearable lightness of being ou A insustentável leveza do ser é um romance publicado em 1984 por Milan Kundera que, posteriormente, serviu de base para o filme homônimo de Philip Kaufman. A história se passa por volta de 1968 e Tomaz, o protagonista, é um rapaz atraente comprometido com o descomprometimento, isto é, escolheu uma vida “leve”, sem o “peso” do compromisso amoroso-político-religioso. Ele simplesmente existia para o prazer da leveza. O livro tem recebido elogios e admiração pública pela discussão filosófica pré-socrática que apresenta, em especial pelos pensamentos do filósofo Parmênides (530 a.C. - 460 a.C.) cuja teoria centra-se na dualidade do Ser como resultado da falta ou presença de entidades. Ou seja, a leveza seria a ausência da não-leveza, do peso. Esse conceito é mais do que conhecido pelos cristãos, afinal, quem não sabe que a escuridão é a ausência da luz? Que o Mal é a ausência do Bem? No entanto, a questão que se coloca é: Qual o conceito de leveza e peso para cada ser humano?
Para os incrédulos, o comprometimento com Deus é uma corrente de infindáveis algemas, que nos força a um comportamento alheio a nossa vontade; é como se agíssemos sempre com medo do inferno. Segundo eles, Deus é um peso moral/moralista na vida do indivíduo. Engraçado, como pode o amor, o respeito, a gratidão, a paciência, a fidelidade, a bondade, serem tão pesados? Mas, enfim... E para nós? Vemos a cruz do calvário como libertação, leveza, perda de um peso incomensurável que se encontrava em nossas costas. Pelo sacrifício perfeito de Cristo e pela fé, somos livres das trevas, da tristeza de um mundo maligno e sem amor. Sabemos que tudo coopera para o bem daqueles que creem. Sentimos a suavidade do amor de Deus em nossa vida, o toque acolhedor do Espírito Santo. Mesmo na angustia, Ele é o único capaz de nos ajudar a transformar maldição em bênção.
Para muitos, o comprometimento com algo seria um peso insustentável. O sujeito deveria então se desprender de tudo para ser livre, leve e feliz no mundo. Apegar-se a algo, comprometer-se com uma ideologia ou valor, teria um preço muito alto a se pagar: a liberdade. No entanto, o título do romance nos remete a uma insustentabilidade dessa leveza, talvez porque tudo que é leve voa, desaparece ao vento como uma folha de árvore seca que simplesmente não se sustenta em si mesma. Quando o compositor Cazuza, morto prematuramente pela sua insustentável leveza, escreveu “ideologia, eu quero uma pra viver” era disso que ele estava falando. Ser errante é insustentável. O filósofo francês Jean Paul Sartre dizia que estamos fadados à liberdade, já que não acreditava em Deus, defendia que estamos à mercê de nós mesmos e livres de Juízo Final, de repreensões de um Ser Superior, absolutamente jogados no Universo. Daí a angústia de viver, ela viria pela consciência da falta de garantias no mundo. De fato, Sartre tem razão: somos livres para escolher Deus ou não, e esta é a grande sacada do Criador: deixar-nos com o livre-arbítrio, mas, ao mesmo tempo, deixar-nos angustiados sem a presença dEle, para que, assim, possamos buscá-Lo de livre e espontânea vontade, por uma necessidade intrínseca do ser humano.
A insustentável leveza sem Deus é o total desamparo do ser. Freud, pai da psicanálise e um judeu ateu, aponta para o mundo sem garantias, um mundo sem Deus. Mataram o Divino para substituí-Lo pelo novo deus chamado ciência naturalista. Mas, como diria Pasteur, “um pouco de ciência nos afasta de Deus, muito nos aproxima”.
Se a ausência de Deus é o completo desespero, por que as pessoas preferem a dor? Nascemos, vivemos e morremos como se nada fôssemos? Somos livres/leves sem Deus? Não. Sem Deus, estamos escravos de uma liberdade ilusória que nos rouba a real felicidade, estamos à mercê de um instinto animalesco, ou “vontade de viver” a que todos estão presos inconscientemente, como diria Schopenhauer. Quando os seres agem como feras, copulam como quem defeca, brigam para marcar território, se agridem para mostrar força, se matam para liderar, corrompem, mentem, ofendem, humilham, traem, machucam seus semelhantes, roubam, desprezam, os seres demonstram o total peso da ausência de Deus e a plena fé que possuem na mediocridade
Liberdade? A insustentável leveza sem Deus é estarmos à disposição do nada, ou, se quisermos, do Mal. Onde não há luz, há trevas, e onde há trevas, não há compromisso. Melhor dizendo, sempre há: o compromisso de iludir-se com o descomprometimento. Estar vivo é um comprometimento de células que deverão trabalhar em perfeita harmonia; é o comprometimento de órgãos que deverão seguir os comandos do cérebro; é o comprometimento de levantar cedo e ir trabalhar; é o comprometimento de levar a colher à boca para alimentar o corpo; é o comprometimentos de sorrir quando se recebe um sorriso; é o comprometer-se a um DNA, um país, um idioma, uma família que não se escolheu; é o comprometimento de não fazer ao próximo o que não gostaria que ele fizesse com você; é o comprometimento de não seguir os erros dos outros; o comprometimento de ser o melhor que se pode ser.
Quem, em sã consciência, seria amigo de uma pessoa que diz: “Olha, sou seu amigo, mas se precisar de mim, nem vem, não vou te ajudar, não tenho comprometimento com você”? Acho que ninguém. Quem trabalharia para um patrão que diz: “Olha, você vai trabalhar, mas como sou livre, não tenho o comprometimento de lhe pagar no fim do mês”? Ninguém. Quem compraria algo pela internet se lesse o aviso: “Você compra, mas não nos comprometemos em entregar”? Acho que ninguém mesmo. Seria radicalismo pensar assim? Acho que não. As chamadas Virtudes não são “condicionáveis” só para certas circunstâncias, ou por acaso temos compromisso com algumas situações e com outras não precisa? “Não suponha esse homem que alcançará do Senhor alguma coisa; homem de ânimo dobre, inconstante em todos os seus caminhos” (Tiago 1:7, 8).
O compromisso nos dá a leveza e a paz de que precisamos. É o comprometimento com Deus e com o próximo que permite ao ser humano a tranquilidade, a certeza de que não será abandonado, a certeza de que será respeitado, amado e cuidado pelo Senhor e pelos irmãos em Cristo. A aliança é o símbolo maior do compromisso, não tem começo nem fim. É eterna. Ela é um círculo mostrando que, mesmo que o mundo dê voltas, toparemos com nós mesmos e a nossa necessidade de comprometimento. Todos nós somos livres para escolher entre a insustentável leveza do ser e o sustentável amor de Deus.
(Elisabete Ferraz Sanches, professora graduada em Letras pela USP, pós-graduada em Português: Língua e Literatura pela UniSant’Anna, mestranda em Literatura Brasileira pela USP e membro da Igreja Internacional da Graça)