As capas das duas revistas mais populares de divulgação científica do Brasil – Superinteressante e Gallileu – deste mês são emblemáticas e reveladoras de uma tendência midiática que vem se confirmando e ampliando nos últimos anos: a crítica da Bíblia e seus seguidores e a simpatia pelo espiritualismo.
A matéria da Galileu tem como título “A nova era do espiritismo”, e é assinada por Pablo Nogueira (que tem posição claramente contrária ao criacionismo). O texto é respeitoso e informativo. O foco são as novas influências que “estão reinventando a doutrina [espírita] no Brasil”. Em seguida, vem a reportagem “O homem de Abadiânia”, sobre o médium João de Deus. Nogueira tenta ser neutro, de início, usando palavras como “supostamente”, mas logo deixa evidente que ficou impressionado com tudo. “João não sabe dizer quantas entidades incorpora. Estima-se que sejam de 20 a 30. Os voluntários não sabem sequer os nomes de muitas, já que elas nem sempre se identificam. ... Para um olhar destreinado como o meu, com pouco tempo de observação, fica difícil enxergar personalidades diferentes”, escreve Pablo, que ainda testemunha: “Assisti a cinco dessas intervenções [cirúrgicas] em três dias e pude observar que, embora houvesse pequenos sangramentos em alguns casos, ninguém se queixou de dor, mesmo quando a entidade passou a faca sobre o olho de um homem sem o uso de anestésicos.” Note que o repórter assume que se trata de uma “entidade” e em momento algum põe em dúvida as tais “cirurgias visíveis” espirituais. As 16 páginas ocupadas pelas duas matérias não questionam, apenas exaltam o espiritismo e as novas influências que lutam para ganhar espaço e aceitação do kardecismo tradicional.
Mas o posicionamento favorável ao espiritismo por parte da Galileu fica mesmo evidente no artigo “A sabedoria da fé”, na página 90. Ali o repórter Arthur Veríssimo também conta sua experiência de encontro com João de Deus. “Quando entrei na primeira sala de atendimento, vi mais de 80 médiuns auxiliares sentados, de olhos fechados, em completa sintonia com os trabalhos da entidade [Veríssimo também assume que se trata de uma “entidade”]. ... Um hálito cósmico-espiritual permeava o lugar. ... Espalhados por três salas interligadas, 280 médiuns formam uma corrente energética que auxilia os trabalhos da entidade.”
No parágrafo seguinte, a linguagem do repórter se torna quase a de um seguidor: “Minha vez se aproxima, e um turbilhão de idéias e pensamentos absorve minhas entranhas. O véu de trevas que cobre minha consciência é dissipado. Um perfume divino paira no ar. Estava conectado, e a entidade me chamou. Olhou para mim e disse que eu era bem-vindo na casa e tinha a autorização de fotografar e conhecer todas as dependências. Rapidamente afirmou que eu deveria trabalhar e entrar na corrente. Numa completa unidade, comigo mesmo e com o grupo.”
Mais para o fim, Veríssimo arremata com palavras que são puro marketing gratuito: “É impressionante observar um homem simples e sem nenhuma formação médica como João Teixeira executar tantas cirurgias com sucesso e sem anestesia. Minhas dúvidas foram esmagadas pela sabedoria da fé. ... O médium João é um instrumento de Deus.”
Agora só falta a Galileu começar a publicar matérias psicografadas.
Superconfusão
Na sua já tradicional matéria religiosa de dezembro, idealizada para alavancar as vendas, a Superinteressante se sai com esta, já na capa: “A religião diz que ela [a Bíblia] veio de Deus. Mas novas evidências revelam como os textos sagrados foram escritos – e manipulados – pelos homens. Conheça os verdadeiros autores da Bíblia. E o real significado do que eles disseram.”
Não é necessário que “novas evidências” nos digam o que o apóstolo Pedro já havia deixado claro há muito tempo: “Porque nunca jamais qualquer profecia foi dada por vontade humana; entretanto, homens santos falaram da parte de Deus, movidos pelo Espírito Santo” (2Pe 1:21). A Bíblia jamais esconde o fato de ter sido escrita por seres humanos, mas deixa claro que eles foram inspirados pelo Espírito Santo (a palavra traduzida por “inspirado” no Novo Testamento vem do grego theopneustos, que significa literalmente “soprado por Deus”).
Como sempre ocorre nas reportagens desse tipo publicadas na Superinteressante, o tom jocoso e contestatório e a superficialidade estão presentes do começo ao fim. Prova disso são as seções “Top 5 pragas”, “Top 5 matanças” e “Top 5 sacanagens” (!). Sobre as pragas e matanças, trata-se do velho desconhecimento do contexto histórico em que essas atitudes extremas de Deus foram tomadas (leia “Por que Deus mandou matar”). Mas o que dizer das tais “sacanagens”? Super considera “sacanagem” a linguagem sensualmente pura e franca de Cantares (leia “Sensualidade pura”). Comete o erro crasso de afirmar, como o fazem certas seitas, que Gênesis 6:2 menciona anjos tendo relações sexuais com mulheres. Segundo o Comentário Bíblico Adventista, “deve-se rejeitar esse ponto de vista porque o castigo que cedo sobreviria se deveu aos pecados de seres humanos (v. 3) e não de anjos. Ademais, os anjos não se casam (Mt 22:30). Os ‘filhos de Deus’ não foram outros senão os descendentes de Set, e as ‘filhas dos homens’ as descendentes dos cainitas ímpios (PP 67)”.
Noutra evidência de má-fé e desconhecimento bíblico, Super desconsidera a linguagem profética de Ezequiel 23:20 e se diverte com a afirmação de os egípcios serem “bem-dotados” e “ejacularem como cavalos”. As duas prostitutas desse capítulo representam Israel e Judá, designadas com os nomes das suas respectivas capitais: Samaria e Jerusalém. Ambas se corromperam e apostataram, atitude comparada ao adultério espiritual (esse paralelismo entre a apostasia e a quebra dos votos matrimoniais foi herdado de Oséias 2:2-10 e Jeremias 3:6-13).
A matéria afirma ainda que Davi “teria unificado as tribos hebraicas num pequeno e frágil reino por volta do ano 1000 a.C.” Bastaria ao repórter da revista ter ido à exposição Tesouros da Terra Santa, no Masp, para conhecer a “pedra da vitória”, entalhada por um rei de Aram, contendo uma inscrição que menciona a “Casa de Davi”, referência direta à dinastia fundada pelo Rei Davi. (Leia também “A Cidade de Davi”).
Depois, a reportagem enviezada diz que o Pentateuco não pode ter sido escrito por Moisés pelo fato de o livro narrar a morte do profeta. Chamam de “fundamentalistas” (eles adoram essa palavra) os que defendem a autoria mosaica sem saber (ou sem querer saber) que existe explicação para a redação desse trecho do livro bíblico. Confira aqui.
Super ignora fatos e evidências que corroboram o relato bíblico e, no entanto, faz afirmações sem qualquer base factual, como esta: “Tempos mais tarde, os dois relatos [javista e eloísta] foram misturados por editores anônimos.” Prova que é bom, nada.
Papagueando um velho argumento contra a autenticidade escriturística, a revista afirma que “as raízes da árvore bíblica também remontam aos sumérios” e que “o monoteísmo pode ter surgido pelo contato com os persas”. O especialista em Arqueologia e autor do livro Escavando a Verdade, Dr. Rodrigo Silva, sugere que essas semelhanças nas culturas antigas (semelhanças que dizem respeito inclusive aos relatos da Criação e do Dilúvio) apontam para uma matriz histórica comum. No entanto, o relato bíblico é mais “enxuto” e desprovido dos elementos míticos das outras narrativas.
Mais adiante, a matéria da Super(ficial) diz que “gerações e gerações de copiadores já haviam introduzido alterações nos textos originais – seja por descuido, seja de propósito”, mas não dedicam uma linha sequer para falar dos Manuscritos do Mar Morto, que confirmaram a confiabilidade do texto do Antigo Testamento, com manuscritos que datavam de até 250 a.C.
Não falam dos Manuscritos do Mar Morto, mas trazem novamente à tona os duvidosos e polêmicos apócrifos encontrados no Egito em 1886, um dos quais assinado por “Maria Madalena”. Dão mais importância ao duvidoso do que ao certo. Em agosto, a Galileu publicou uma matéria sobre Jesus na qual diz que “para especialistas, esses escritos perdem importância quando se constata que eles tiveram como base os Evangelhos canônicos e seguiram o gnosticismo. ... Há pesquisadores que vasculham esses livros, muitos dos quais em estado fragmentário, em busca de informações valiosas que não teriam sido preservadas (ou teriam sido deliberadamente varridas para debaixo do tapete) pelos evangelistas oficiais. O esforço vale a pena? O mais provável é que não. ... é praticamente impossível demonstrar que os evangelhos apócrifos mais populares entre os historiadores, como o de Tomás e o de Pedro, não tenham, na verdade, usado como base os Evangelhos canônicos, os bons e velhos Mateus, Marcos, Lucas e João. Estruturas literárias básicas, como a ordem dos ditos de Jesus, parecem seguir de perto os textos canônicos. Além disso, a datação dos apócrifos aponta para uma composição décadas ou até séculos depois dos Evangelhos oficiais. E há alguns detalhes teológicos suspeitos nas narrativas apócrifas: muitos deles seguem o chamado gnosticismo, uma vertente esotérica do cristianismo primitivo que considerava o mundo material uma esfera corrompida e naturalmente ruim da existência e pregava o acesso a um conhecimento secreto para se libertar dele. A importância do apóstolo Tomé ou de Maria Madalena nos textos gnósticos provavelmente não tem a ver com o papel histórico desses personagens, mas com o uso deles como contraponto aos sucessores de apóstolos como Pedro e Paulo, principais líderes das comunidades cristãs após a morte de Jesus”.
A despeito de tudo isso, para a Super(tendenciosa) os apócrifos gnósticos são mais importantes e confiáveis que os Evangelhos e os Manuscritos do Mar Morto. Dá pra confiar numa reportagem dessas? Dá pra levar a sério uma revista dessas?
E numa atitude totalmente fora de contexto (mas previsível), a reportagem arremata: “Em pleno século 21, pastores fundamentalistas tentam proibir o ensino da Teoria da Evolução nas escolas dos EUA, sendo que a própria Igreja [não dizem que é a Católica] aceita as teorias de Darwin desde a década de 1950."
Se os cristãos bíblicos são fundamentalistas (pois têm a Bíblia como seu fundamento), a Super é superfundamentalista. Qual o fundamento? O materialismo filosófico.
Michelson Borges
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bíblia, espiritualismo, mídia, religião