No editorial “Darwin, 200” (Folha de S. Paulo, 10/02/2009), Darwin foi mencionado como sendo o único dentre os pensadores mais influentes dos séculos 19 e 20, como sendo o único que sobreviveu incólume ao teste do tempo. Nada mais falso. Marx e Freud já foram para a lata do lixo da História. Darwin não se sente muito bem, e só sobrevive porque é blindado de quaisquer críticas pela Nomenklatura científica e a Grande Mídia Internacional e Tupiniquim.
Ao contrário do afirmado no editorial, os 200 anos de seu nascimento comemorados nesta semana encontram sua reputação em excelente forma somente nos arraiais darwinistas onde Darwin apenas será louvado. O editorial da FSP denuncia seu lado folhetim ao aceitar sem nenhum ceticismo (condição sine qua non para se fazer ciência) que nunca foi tão válido o mantra surrado de Theodosius Dobzhansky (1900-1975): “Nada em biologia faz sentido a não ser sob a luz da evolução.” Contrariando Dobzhansky e o editorial da FSP: “Nada em biologia faz sentido a não ser sob a luz das evidências.”
O editorial afirmou que a teoria darwiniana sofreu aperfeiçoamentos, mas que a seleção natural, seu cerne principal permanece intacto. Ninguém discute o fato de a teoria darwiniana ter sofrido aperfeiçoamentos e nem que o mecanismo foi exposto em obra clássica, Origem das Espécies (150 anos em novembro) como sendo a diversidade observável nos organismos fruto da acumulação de incontáveis e discretas características hereditárias que tenham contribuído para a sobrevivência e a reprodução de seus portadores. O que se discute, e a Nomenklatura científica, a FSP e a Grande Mídia se recusam discutir publicamente, é a robustez da seleção natural como mecanismo evolutivo em explicar a diversidade e a complexidade dos objetos bióticos. A seleção natural de Darwin, como mecanismo evolutivo, está em baixa entre os cientistas desde 1859.
Eu não sei quem orientou o editorial da FSP nas questões científicas (Marcelo Leite? Cláudio Ângelo?), mas afirmar que o outro pilar da teoria darwiniana da ancestralidade comum (os milhões de espécies de plantas, animais e micro-organismos que vivem e já viveram sobre a Terra descendem todos de um ancestral comum, que surgiu há mais de 3 bilhões de anos) e que durante um século e meio reuniram-se inúmeras comprovações empíricas desses princípios, é ser encontrado em flagrante descompasso com a verdade científica dessas “inúmeras comprovações empíricas”. A hipótese do LUCA já foi por água baixo em Down há muito tempo. A Árvore da Vida está mais para gramado do que outra coisa.
Não se discute a universalidade do DNA como sendo a substância presente no núcleo das células portadora de hereditariedade, mas Darwin esta nu até hoje porque não sabemos a origem do DNA, código digital de informação par excellence que não é apenas um, mas vários. O editorial da FSP revela ignorância primária nessas questões científicas.
A afirmação de que a teoria da evolução é “uma ideia poderosa, em sua simplicidade” é retórica vazia. Em ciência o que vale é uma teoria ser corroborada em um contexto de justificação teórica. O mais novo aperfeiçoamento da teoria da evolução de Darwin – a Síntese Evolutiva Ampliada (2010) – dará um papel inferior à seleção natural. Daniel Dennett, retoricamente afirmou que essa foi a maior ideia que toda a humanidade já teve. É, parece que está mais para pífia do que poderosa ideia.
O editorial da FSP revela onisciência ao afirmar que “os organismos não são como são em obediência a um desígnio superior” e que “sua diversificação resulta do entrechoque de eventos inteiramente naturais – sobretudo mutações genéticas e modificações no ambiente – ao longo de um tempo muito profundo”.
Engraçado, a teoria da evolução é uma teoria de longo alcance histórico, e o editorial da FSP sequer menciona as dificuldades epistêmicas de teorias assim. Será que ninguém na Folha de S. Paulo sabe a respeito do “Dilema de Haldane”? Em quantas gerações essas mutações genéticas aleatórias se instalariam nas populações? Umas 300.000? E a relação custo-benefício dessa pressão seletiva “ao longo de um tempo muito profundo” nessas populações? Nada disso a FSP discute em suas páginas sobre ciência.
O editorial da FSP destaca que esse modo de encarar a biosfera torne problemáticas outras explicações para a miríade de formas que povoam o mundo, como as inspiradas na literalidade de textos religiosos, mas, e aí vem o Cavalo de Tróia para cooptar os de concepções religiosas: “é possível conciliar o mecanismo da seleção natural com a noção de um Deus que o tenha criado.”
Parem o mundo da Lógica que eu quero descer! Os crentes de subjetividades religiosas afirmam: Deus criou ex-nihilo. Os crentes de subjetividade naturalista afirmam: “Se eu precisar de alguma ajuda externa, a minha teoria seria ‘bulshit’ (Darwin). Ora, a seleção natural é um processo cego e aleatório, que nem Deus pode guiá-lo. Como que agora, em pleno declínio heurístico da seleção natural explicar a evolução, Deus entra em cena e pode guiar o processo? Evolução guiada (Argh, isso é como cometer um assassinato!) é heresia para Darwin e seus atuais discípulos.
O editorial da FSP acerta sobre “Darwin, ateu ou agnóstico, jamais fez de sua teoria uma arma antirreligião”, mas erra ao afirmar que é uma caricatura dele construída nos últimos 150 anos: St. George Jackson Mivart, protegido de Thomas Huxley, do círculo de Darwin, foi expulso e perseguido academicamente por Huxley e Hooker com o aval de Darwin (existem cartas sobre este affair, mas elas ainda não estão disponibilizadas online) por ter criticado a seleção natural no seu livro Genesis of Species (1872).
O editorial da FSP pede aos crentes de subjetividade religiosa que digam amém para Darwin e que aceitem a insignificância do ser humano: “Deixar-se arrastar por ela não faz jus à grandiosidade de sua visão da vida, que está na raiz do enorme avanço da biologia nas últimas décadas e que tanto fez para dissipar ilusões sobre o lugar da espécie humana no universo.”
O editorial da FSP não diz quem promove e a quem interessa essa “Kulturkampf”, mas isso fica bem nítido nos artigos de jornalistas da FSP e nas entrevistas de cientistas que defendem um naturalismo filosófico como se fosse ciência e os de concepções religiosas são atacados em suas crenças. Quanto às ilusões sobre o lugar da espécie humana no universo, aqueles crentes não precisam de Darwin, pois um texto sagrado oriental milenar, se não me engano, afirma: “pulvis es et in pulverem reverteris”.
Fui, nem sei por que, pensando: a Folha de S. Paulo não é mais aquele jornal em que se possa confiar intelectualmente.
(Desafiando a Nomenklatura Científica)