A revista Veja desta semana traz um artigo de André Petry sobre o ensino do criacionismo nas escolas. Depois de tanta discussão sobre o assunto, era de se esperar que o editor trouxesse alguma contribuição nova à polêmica, mas não. O que ele faz é repetir argumentos surrados e evidenciar sua opinião “petryficada” sobre o tema.
Ele começa assim: “É assustador que, às vésperas do bicentenário do nascimento de Charles Darwin, pai da teoria da evolução, escolas brasileiras estejam ensinando criacionismo nas aulas de ciências. Já se sabia que as escolas adventistas fazem isso. A novidade é que o negócio está se propagando. Em instituições tradicionais de São Paulo, como o Mackenzie, inventou-se até um método próprio para o ensino.”
Depois, Petry diz que o relato bíblico da Criação é “uma fábula encantadora, mas não é ciência”. No entanto, afirma que “em biologia, vale o evolucionismo de Darwin, segundo o qual todos viemos de um ancestral comum, há bilhões de anos, e chegamos até aqui porque passamos no teste da seleção natural”.
Alguém precisa dizer para o Petry que seleção natural tem base factual e explica relativamente bem a biodiversidade (microevolução) em nosso planeta, mas a história de que “todos viemos de um ancestral comum” (macroevolução), essa, sim, é uma fábula, e nem um pouco “encantadora”. A tal origem da vida numa “sopa primordial” ainda é alvo de discussões e há cientistas que discordam desse cenário. Um deles é o professor emérito de Química David Deamer, que chefiou um equipe de pesquisadores da Universidade da Califórnia. Deamer disse: “Já faz [150] anos desde que Darwin sugeriu que a vida pode ter começado em uma ‘poça morna’. Estamos testando a ideia dele, em pequenas poças em regiões vulcânicas em Kamchatka, na Rússia, e Mount Lassen, na Califórnia. Os resultados são surpreendentes e, de certa forma, desapontadores. Parece que as águas ácidas quentes da lama não fornecem as condições adequadas para que componentes químicos se transformem em ‘organismos pioneiros’.”
Deamer disse ainda que aminoácidos e DNA, dois componentes básicos na formação da vida, e fosfato, outro ingrediente essencial, se prendem à superfície de partículas do barro nas poças vulcânicas. “Isso é significativo porque havia a pressuposição de que barro promove interessantes reações químicas ligadas à origem da vida”, explicou. “Entretanto, nos nossos experimentos, os componentes orgânicos ficaram tão grudados às partículas de barro que não poderiam fazer parte de qualquer reação química.”
O experimento de Urey-Miller já vinha sendo desacreditado (embora os livros didáticos não tratem disso); agora a teoria da “sopa morna” também enfrenta problemas levantados pela ciência experimental. Mas Veja parece não saber disso...
Petry vai além e afirma que ensinar darwinismo e criacionismo “embrutece” o educando. “Embrutece porque ensina o aluno, desde cedo, a confundir crença e superstição com razão e ciência”, diz ele; e pergunta: “Que cientistas saem de escolas que embrulham o racional com o místico? Também é cascata, porque, fosse verdade, a turma estaria ensinando numerologia em matemática. Ensinaria alquimia em química, dizendo, em nome da ‘liberdade de pensamento’, que é possível transformar zinco em ouro e encontrar o elixir da longa vida...”
Quem disse que o que está além dos domínios do naturalismo metodológico se trata de algo irracional? Por que somente o conteúdo abrangido pelo método científico pode ser qualificado como racional? Estudar a teoria da matéria escura também é irracional? (Com o perdão da comparação um tanto “forçada”.) Correndo o risco de apelar para o argumento da autoridade, quero deixar claro que há grandes nomes da ciência que transitam bem nos universos da teologia, da filosofia e da ciência, integrando bem essas áreas. Cientistas como Marcos Eberlin, do Laboratório Thomson de Espectrometria de Massas (Unicamp); Ruy Carlos de Camargo Vieira, professor emérito da Escola de Engenharia de São Carlos da Universidade de São Paulo, autor de livros didáticos e inúmeros artigos científicos e membro da Academia Panamericana de Engenharia; para ficar com dois. Esse é o tipo de cientista que pode sair de escolas que “embrulham o racional com o místico”, Petry. Desafio-o a entrevistá-los a fim de conhecer suas ideias. Veja tem espaço para isso?
A visão estreita de Petry acerca da religião bíblica mais parece fruto do preconceito; da opinião “petryficada” de quem não quer se esforçar para entender e separar as coisas; da mania de colocar todas as crenças no mesmo saco do desrespeito. Por esse pensamento, Petry condenaria Isaac Newton e Blaise Pascal, por exemplo, cientistas que conseguiram conciliar a visão teológica com a científica e que, muito provavelmente, enxergaram mais longe justamente por causa dessa visão mais ampla da realidade – sem mencionar que ajudaram a fundar o próprio método científico ao qual os cientistas de hoje devem seus empregos e salários. A Bíblia nada tem a ver com alquimia e numerologia, mas coaduna bem com física, astronomia, história, cronologia, arqueologia, linguística, matemática... Grandes homens e mulheres de ontem e de hoje, cuja mente está aberta, cujos neurônios não se “petryficaram”, reconhecem isso.
Petry finaliza seu texto entrando no barco da darwinlatria 2009: “Darwin foi um gênio. Em seu tempo, não se sabia como as características hereditárias eram transmitidas de pai para filho. Nem que a Terra tem 4,5 bilhões de anos e que os continentes flutuam sobre o magma. No entanto, a teoria da evolução se encaixa à perfeição nas descobertas da genética, da datação radioativa, da geologia moderna. Só um cérebro poderosamente equipado [isso não é design inteligente?], conjugado com muito estudo [por que deveríamos confiar nos estudos realizados pelo cérebro de um macaco evoluído? O que garante que o ajuntamento casual de moléculas ao longo de bilhões de anos nos legou um cérebro capaz de interpretar corretamente a realidade?], pode ir tão longe. Confundido com criacionismo, Darwin parece um macaco tolo. É assustador.”
Assustador é perceber como a “petryficação” intelectual tem impedido a muitos de pensar objetiva e honestamente. Nenhum criacionista esclarecido nega as contribuições do darwinismo, desde que se entenda e defina bem o que vem a ser “evolução” e dentro de que limitações e parâmetros ela deve ser colocada. O fato é que na época de Darwin os microscópios eram extremamente rudimentares, incapazes de revelar a complexidade de uma “simples” célula. Quando essa “caixa preta” foi aberta pelos estudos da biologia molecular, um universo de máquinas moleculares ultra-complexas foi descortinado.
Se Darwin tivesse acesso à tecnologia de que dispomos hoje, teria elaborado a teoria geral da evolução que elaborou? Só nos resta especular... A verdade é que Darwin era um homem inteligente e em muitos aspectos mais mente aberta que seus seguidores fundamentalistas de hoje. Em 1859, ele tinha uma política educacional idêntica à esposada pela Educação Adventista e pela Mackenzie: “Estou bem a par do fato de existirem neste volume [A Origem das Espécies] pouquíssimas afirmativas acerca das quais não se possam invocar diversos fatos passíveis de levar a conclusões diametralmente opostas àquelas às quais cheguei. Uma conclusão satisfatória só poderá ser alcançada através do exame e confronto dos fatos e argumentos em prol deste ou daquele ponto de vista, e tal coisa seria impossível de se fazer na presente obra” (Charles Darwin, A Origem das Espécies, Belo Horizonte, Villa Rica, 1994, p. 36 – itálico acrescentado).
Concordo com William Hurlbut, em texto publicado na Folha de S. Paulo de janeiro de 2006: “A ciência ultimamente lembra mais a religião do que qualquer outra coisa. Como consequência, ela sofre dos mesmos problemas que historicamente afetaram a religião: triunfalismo, arrogância e falta de autocrítica.”
Michelson Borges
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