segunda-feira, novembro 02, 2009

Projeto Atlanta 2010: Venezuela (parte 3)

Depois das maravilhas ocorridas em Cúpira e do primeiro encontro com o Mar do Caribe, só me resta seguir em frente, com um sentimento no fundo da alma de que Deus está aqui. Essa sensação da presença do Todo-Poderoso é representada pelos milagres que Ele têm feito em minha vida a cada dia. Não teria como avançar não fosse a bondade infinita de Deus. Ele tem feito com que corações se derretam diante das histórias impossíveis do Atleta da Fé (meu apelido de missionário). Foi assim quando saí de Cúpira rumo a Caracas. Uma distância de 165 km. Fácil para a “gorducha” (minha bike) fazer em um dia. Mesmo com algumas serras e morros altos pelo caminho.

Fui avançando tranquilo e observando os marcos de quilômetros nas estradas. Quando faltavam 65 km, por volta das 17h30, resolvi fazer uma parada para comer e beber algo. Não tinha tanta fome. Estava, na verdade, com um pouco de sede. Na margem da pista, apareceram algumas barracas com pessoas vendendo frutas. Todas eram muito simples e vendiam quase as mesmas coisas. Eu passava por elas na esperança de que meus olhos se agradassem de algum produto. Até que o letreiro colocado em um pequeno barril me atraiu. Dizia assim: “Papellon con Lemon!”

Imaginei ser um suco diferente e fiz a volta com a “gorducha” na intenção de tomar um refrescante suco de “papelão com limão”. No entanto, quando perguntei pelo atraente anúncio, tratava-se de rapadura moída com suco de limão. O nome papellon vem de “panela”, ou seja, rapadura, por aqui. Quando fui chegando ao pequeno quiosque, cansado e com muita sede, o dono, um senhor magro, moreno queimado, sorridente, me pediu para sentar. Assim que me recostei sobre uma caixa de engradados de cerveja, ele me trouxe uma garrafa de água. Mas eu não lhe havia pedido água. Isso é que chamo do milagre de Deus “derreter” um coração para me ajudar. Veja, o homem não me conhecia e me ofereceu um abrigo do sol, um lugar para descansar e água fresca para beber... Por isso tenho certeza de que Deus estava entre nós. Alguma coisa maravilhosamente bela deve ter se passado ali. O Espírito Santo de Deus Se moveu naquele lugar. Seus anjos trabalharam por algo que só fui saber depois. Isso ocorreu em Puerto Piritu e em Las Claritas.

A seguir o homem me perguntou de onde venho e qual meu destino. Quando lhe falei que vinha de Cúpira e seguia rumo a Caracas, ele ficou muito surpreso e no mesmo instante seu rosto estampou uma expressão de preocupação. Admirou-se pela distancia de 100 km que eu já havia percorrido e se mostrou apreensivo pelo destino que eu pensava alcançar ainda naquele dia: a capital de seu país.

Disse-me que por ser já tarde, seria muito difícil eu chegar a Caracas antes do pôr do sol. Melhor seria descansar, dormir por ali e avançar no dia seguinte. Inocentemente fiz a pergunta sobre o porquê de não poder chegar a Caracas tarde da noite. A resposta direta e certa foi que Caracas, como toda cidade grande, é repleta de ladrões, delinquentes e outros desocupados de plantão. E ele acrescentou com ênfase: “Se você chegar a Caracas sozinho, com essa bicicleta atraente, é certo que ficara sem ela.”

Então respondi: “Mas, amigo, preciso completar esta viagem. Ainda vou para muito longe e necessito chegar nessa capital ainda hoje. Deus me guardará. Ele terá compaixão de mim e enviará Seus anjos para que me livrem de todo perigo.”

“Certo, concordo”, disse-me o homem. “Porém já falei com minha esposa e você não avançará nem mais um quilometro. Você é estrangeiro e seria um prato perfeito para os ‘ratos de viadutos’ [referindo-se aos grupos de desocupados que moram embaixo de pontes e abrigos das pistas elevadas] na entrada de Caracas. Você vai dormir aqui, em nossa humilde choupana. Amanhã cedo, seguirá seu destino.”

Diante desse “convite ordem”, não tive como recusar. Suas palavras seguras me fizeram entender que ele falava da parte de Deus. É certo que se insistisse em continuar esta viajem depois de tantos conselhos, não saberia como agir diante de um possível imprevisto e a culpa recairia sobre mim.

Aprendi de Deus uma coisa útil: na multidão de conselhos há sabedoria. Por isso, encostei a “gorducha” num canto e fiquei a espera do casal fechar o comércio de frutas que mantém na beira da pista para então terminar aquele dia. Isso veio a acontecer depois de meia-hora.

A hospitalidade do casal me fez acreditar que ainda existem pessoas solidárias e naturalmente hospitaleiras neste mundo. Eles moram em uma casinha de dois cômodos, teto de zinco, sem reboco e sem banheiro. Para as necessidades básicas, usa-se um vão sem cobertura de quatro estacas e um plástico. O banho toma-se de cuia com água que desce de uma mangueira da serra e é despejada dentro de um pequeno barril de plástico. Ali não se paga luz, água ou impostos. Também, por que pagar para viver num lugar assim, sem nenhum tipo de serviço público disponível? Ali parece que a vida apenas se tem por empréstimo.

Todavia, tenho percorrido milhares de quilômetros e fazia tempo que não contemplava tamanho desprendimento para se ajudar o próximo. Já estive diante de pessoas com gorda conta bancária e morando em verdadeiras mansões, porém, não foram capazes de oferecer-me voluntariamente um copo d’água.

No entanto, senti que aquele cidadão estava sendo usado por Deus. Não fosse sua intercessão, eu teria prosseguido a viagem. Quando chegou a escuridão da noite, eu estava abrigado da chuva, do frio e do vento no rústico lar.

Logo que o sol se pôs, a mulher estendeu um colchão surrado no chão de um dos cômodos que também é cozinha e sala de visitas, cobrindo-o com um lençol desgastado e me avisou de que minha cama já estava pronta. O outro cômodo abrigava o casal e dois filhos. Para dormir nessa “cama” seria necessário disputar o espaço com um cachorro velho e uma galinha com pintinhos.

Tudo isso pode ser muito penoso para alguém acostumado só a luxo, limpeza e ordem. Claro que isso seria o ideal para toda a raça humana. Porém, nunca acontecerá neste planeta em que vivemos. Apenas no Céu não haverá divisão de classe social. Jesus Cristo subiu para nos preparar mansões, independentemente de eu ter vivido aqui como carente ou passado os dias cercado de toda a pompa que o dinheiro pode dar.

Os pobres, disse Jesus, sempre existirão em todas as gerações e estão aqui para provar-nos em quanto podemos ser solidários com nossos semelhantes. Se nos estendem a mão em busca de auxílio e nos negamos a socorrê-los, deixamos de fazer ao próprio Cristo. Necessitamos meditar sobre isso.

Senti que a família estava feliz em encontrar alguém mais carente do que eles e poderem dar-me apoio.

Dormi ouvindo o som carinhoso da mamãe galinha envolvendo seus pintinhos sob suas asas. Elas fazem um barulhinho agradável. Um sonzinho com notas melodiosas capaz de trazer a paz a qualquer mortal. Você só saberá que som é esse se for passar uma noite no campo onde haja galinhas e pintinhos novos.

Pela madrugada, antes dos primeiros raios de sol surgirem, o papai galo cantou cocoricó, cocoricó, acordando toda a família e a mim também.

Logo que levantei, recebi um bom dia do casal e disseram-me para seguir viagem agora, pois o dia começava a clarear.

Não tinha palavras que dizer para me despedir. Deixei um short da seleção brasileira e um boné que havia comprado em Pacaraima. Ainda lhes dei um exemplar do Novo Testamento em português.

A seguir, tendo arrumado minha pequena mochila na garupa da gorducha, peguei a rodovia em direção a Caracas, acenando com a mão até que desapareci na primeira curva.

Quando não mais os vi, veio em minha alma um sentimento de alegria profunda, incontida, que me fez chorar. Chorei e orei a Deus pela família a fim de que Suas bênçãos sem limites possam alcançá-los. Mas as lágrimas estavam sendo derramadas por descobrir que ainda existem seres humanos solidários espalhados por este mundo de pecado, corrupção e violência. Sou grato a Deus por ter estado algumas horas com essa família.

Despertando para a realidade de minha missão evangelística, apertei o ritmo para chegar a Caracas. Após umas quatro horas pedalando, avistei os primeiros edifícios altos, comuns em toda grande cidade. São símbolos da prosperidade de um país. Quando mais perto chegam do céu as construções dos homens e em maior número existem, mais desenvolvido é o povoado, a cidade ou a nação. Acompanhando esse progresso, existe outra marca indesejável e que aparece como símbolo de criminalidade, pobreza e desajuste social: as favelas.

Infelizmente, ao me aproximar do centro da capital da Venezuela, encontrei-a sitiada por casas amontoadas umas sobre as outras. Vendo essas imagens e o corre-corre desesperado das pessoas, lembrei-me do casal campesino. É certo que ao chegar onde estou agora, em meio a viadutos e conjuntos residenciais pouco ordenados (favelas), não seria difícil topar com os “gaviões da noite” (delinquentes), ávidos por prender e destroçar suas presas.

Deus me livrou de tudo e consegui atravessar a cidade em paz.

Após Caracas, segui para Nirgua, onde estive pregando e fazendo palestra na Universidade Adventista localizada ali. Depois fui para Barquesimeto, Guanare, Barinas e Santa Barbara. A última cidade que visitei na Venezuela foi San Cristoban, na fronteira com a Colômbia.

No dia 15 de setembro, depois de percorrer 2.732 km em um mês de viagem, finalmente cheguei a Cucutá, primeira cidade do país das cordilheiras e das guerrilhas.

Obrigado por me acompanhar neste giro. Estou fazendo um resumo do que tenho passado. Não posso contar tudo por falta de tempo. Mas continue comigo, porque Deus está aqui e vejo Sua face por meio dos milagres que Ele tem feito por mim.

Abraços e até a próxima.

(George Silva de Souza, atleta e autor livro Conquistando o Brasil)