“Num período futuro, não muito
distante se formos medir em séculos, as raças humanas civilizadas irão, com
quase certeza, exterminar e substituir, ao redor do mundo, as raças mais
selvagens” (Charles Darwin, 1809-1882).
A
citação acima nos causa estranheza, e o leitor não a encontrará na obra mais
famosa de Darwin, A Origem das Espécies. Ela pertence a outra, menos
conhecida, A Descendência do Homem (1871),
que poderia ser considerado a continuação do tema do A Origem, só que voltado para os seres humanos, com implicações que
já podemos imaginar, e que veremos adiante.
A “eugenia” era a teoria predileta
dos nazistas, segundo a qual apenas os homens e as mulheres mais saudáveis,
inteligentes e fortes deveriam ter filhos, de forma a criarem uma raça
perfeita; os que não estivessem dentro dos padrões exigidos deveriam ser
eliminados.
A
Descendência... e outras obras cujas ideias trouxeram consequências
nefastas para a humanidade são analisadas no ótimo 10 Livros que Estragaram o Mundo, de Benjamin Wicker, publicado no
Brasil pela Vide Editorial. O capítulo 7 é todo dedicado a Darwin e ao seu A Descendência do Homem.
Sem exageros, esse outro livro de
Charles Darwin força até seu maior defensor a encarar um fato desagradável: se
é verdade tudo o que ele disse em seu livro mais conhecido, então, por
consequência, os seres humanos devem garantir que os mais aptos entre eles se
reproduzam, e os inaptos sejam eliminados. As tentativas de dissociar o nome de
Darwin dos movimentos eugênicos datam de um pouco depois da Segunda Guerra
Mundial, quando Hitler já havia legado uma péssima reputação à teoria da
seleção natural aplicada aos seres humanos. “Mas é impossível desligar Darwin
da eugenia”, afirma John Wiker. “Trata-se de uma conexão direta e lógica entre
ela e seus argumentos sobre a evolução.”
É senso comum que os argumentos de
Darwin a respeito da seleção natural, expostos no A Origem das Espécies (1859), podem ser resumidos como “a
sobrevivência do mais apto” – ainda que tal termo não apareça na primeira
edição do livro; Darwin tomou-o posteriormente de Herbert Spencer, um dos
primeiros e mais ferrenhos defensores do darwinismo social.
Curiosamente, Darwin não escreveu
nada a respeito dos seres humanos no A
Origem das Espécies. Ele esperou quase uma década e aí então o escreveu sobre
isso em A Descendência do Homem. Por
que ele omitira os seres humanos na discussão sobre a evolução em seu best-seller? Nele, Darwin evita a
questão: “E quanto a nós, seres humanos, que também apresentamos variações e
também nos reproduzimos, como os animais, isso tudo não se aplica a nós?”
Bem prudentemente (no sentido
grosseiro do termo, assinala Wiker), Darwin evitou misturar os seres humanos ao
seu argumento em A Origem das Espécies.
Ele sabia que, se fizesse isso, sua teoria seria rejeitada; ela já era
controversa o bastante. Havia 50 anos, ou mais, que a evolução vinha sendo
associada a partidários políticos radicais, bradada por revolucionários
franceses e ateus de sarjeta (você leu corretamente: Darwin não “descobriu” a
evolução; ela já era uma opinião que corria pelos círculos mais radicais há
pelo menos um século – se não dois – antes de Darwin, e pode-se traçar suas
origens em Epicuro, filósofo da Grécia antiga). Mas Darwin não estava pregando
para a assembleia dos radicais; ele queria que sua teoria fosse ouvida pelos
baluartes conservadores da elite científica da Inglaterra.
Foi o próprio primo de Darwin,
Francis Galton, quem primeiro esclareceu as óbvias conclusões do Origem para a raça humana, num artigo em
duas partes na revista Macmillan’s Magazine,
em 1865, e depois de modo mais completo, em seu livro Hereditary Genius (1869). Darwin o seguiu imediatamente com o seu A Descendência do Homem. A conclusão
mais óbvia foi a eugenia. Galton cunha esse termo,* mas é Darwin quem
estabelece seus fundamentos e tira dele suas implicações nefastas.
Sejamos claros quanto a isso. O
aspecto pernicioso do A Descendência do Homem,
de Darwin, a sordidez mais profunda desse livro, é a eugenia: a ideia de que a
“sobrevivência do mais apto” deveria ser aplicada aos seres humanos. A eugenia
é uma ciência prática, que aplica a noção de que os seres humanos deveriam ser
criados como cavalos de corrida – ou, mais precisamente, animais de fazenda. Os
melhores podem se reproduzir; os piores (ou “inaptos”) devem ser eliminados.
Uma ideia que os nazistas aplicariam de modo particularmente efetivo. Da
maneira como eles entendiam, a própria natureza favorece os mais fortes e
renega os mais fracos; a sociedade não deveria proteger artificialmente os mais
fracos de sua própria destruição, e sim colaborar com a seleção natural,
varrendo os mais fracos da existência por meios mais eficazes ainda.
Não é uma acusação abstrata que
Darwin seja o pai dessa noção maligna. Atenção para as palavras do próprio na
parte 1, capítulo 5, página 168 de A
Descendência, ao descrever os efeitos prejudiciais da caridade civilizada.
Segundo Darwin, ao contrário de nós, civilizados, os selvagens curvam-se ao
princípio da sobrevivência do mais forte – e é melhor para eles:
“Entre os selvagens, os mais fracos
física ou mentalmente são logo eliminados; e aqueles que sobrevivem geralmente
são portadores de um estado vigoroso de saúde [...]. Nós homens civilizados,
por outro lado, fazemos o máximo que podemos para reprimir esse processo de
eliminação; construímos asilos para os imbecis, os mutilados e os doentes;
instituímos leis para beneficiar os pobres; e nossos médicos gastam suas
habilidades mais extremas para salvar a vida de qualquer um, até o último
instante. [...] E eis que os membros mais fracos de uma civilização propagaram
suas crias. Ninguém que já tenha se dedicado à criação de animais domésticos
pode duvidar que isso é extremamente ofensivo à raça humana. É surpreendente o
quão cedo a ausência de cuidados, ou o mau direcionamento dos cuidados pode
degenerar a raça de um animal doméstico; mas, exceto no caso da procriação da
própria espécie, raramente um homem é tão ignorante ao ponto de permitir que
seus piores animais se reproduzam.”
Darwin não poderia ter sido mais
direto. “O mau direcionamento dos cuidados” é a causa da recaída evolucionária
da civilização (Ibid., Parte 1, cap. 5, p. 177):
“Se [...] várias limitações [...]
não forem capazes de prevenir que os desocupados, os viciados e outros membros
inferiores da sociedade cresçam em maior escala e rapidez que a classe dos
melhores homens, a nação irá regredir, como já ocorreu várias vezes ao longo da
história do mundo. Devemos nos lembrar de que o progresso não é uma lei invariável.”
Aqui Wiker faz um leve desvio
histórico e assinala que, embora os atuais livros de biologia do ensino médio
deixem de fora as implicações eugênicas do darwinismo, em sua seção sobre a
evolução, nem sempre foi esse o caso. Veja um texto de Biologia do ensino médio
de 1917:
“O APERFEIÇOAMENTO DO HOMEM – Se o
estoque de animais domésticos pode ser aperfeiçoado, não é de todo injusto que
nos perguntemos se a saúde e a vitalidade do homem e da mulher das futuras
gerações não poderiam ser aperfeiçoadas se eles se submetessem às leis da
seleção natural.”
“EUGENIA – Quando duas pessoas se
casam, há certas coisas que não só os esposos como também todos da sociedade
devem exigir. A mais importante delas é a imunidade quanto a doenças
embriológicas que podem ser transmitidas às futuras gerações. A tuberculose,
aquela peste branca pavorosa que ainda é responsável por quase um sétimo das
mortes, a epilepsia e a debilidade mental são obstáculos não só injustos como
também criminosos demais para serem repassados para a posteridade. A ciência de
ser bem-nascido chama-se eugenia.”
O livro continua, alertando os
alunos a respeito da família Jukes, cujos notórios defeitos mentais e morais
foram passados por gerações em um estado de degradação ainda mais notório. Dos
480 descendentes do par original, “33 eram sexualmente imorais, 24 foram
confirmados como bêbados, três eram epilépticos e 143 eram débeis mentais”. O
livro segue:
“O PARASITISMO E SEU CUSTO PARA A
SOCIEDADE – Centenas de famílias como essa descrita acima existem hoje, ainda
espalhando suas doenças, imoralidades e crimes por todas as partes do país. O
custo dessas famílias para a sociedade é bem severo. Assim como certos animais
ou plantas tornam-se parasitas de outros animais ou outras plantas, essas
famílias tornaram-se parasitas da sociedade. Eles não só ameaçam a sociedade
porque corrompem, roubam ou espalham doenças, mas eles são ainda protegidos e
cuidados pelo estado com o dinheiro público. [...] Eles tomam muito da
sociedade, mas não dão nada em troca.”
“A SOLUÇÃO – Se tais pessoas fossem
animais inferiores, provavelmente poderíamos matá-los e assim prevenir que se
proliferassem. A humanidade não irá permitir que isso aconteça, mas nós temos a
saída de colocá-los em asilos separados por sexo, ou em outros lugares, e de
várias formas podemos prevenir que se casem entre si e continuem perpetuando
uma raça tão baixa e degenerada. Soluções como essas foram testadas com sucesso
em países da Europa e agora estão obtendo sucesso aqui nos Estados Unidos
também.”
Parece um texto escrito por um
biólogo proto-nazista... mas os trechos são do livro A Civic Biology,[1] de George William Hunter (p. 261-263). Esse era
o livro de biologia de ensino médio que estava em questão no famoso Julgamento
de Scopes, em 1925.[2] Era o livro pró-evolucionista que as forças
progressistas lideradas pelo advogado Clarence Darrow defendiam contra os
“fundamentalistas” representados pelo advogado William Jennings Bryan. Seria
esclarecedor ouvir esses trechos acima sendo ditos pelo ator Spencer Tracy (no
papel que faz referência a Clarence Darrow, o advogado progressista) naquela
megapeça de propaganda hollywoodiana, O Vento Será Tua Herança.[3] Pena que
foram cortados!
O ponto aqui é que o pensamento
pró-eugenia não foi algo anexado a Darwin por brutamontes alemães fardados da
década de 1930; ao contrário, era e é uma implicação direta da teoria
evolucionista de Darwin, que ele mesmo enfatiza em seu livro A Descendência do Homem. Na segunda
metade do século 19 e na primeira metade do século 20, a eugenia era famosa não
apenas na Alemanha, como também em muitas partes da Europa e da América,
considerada uma implicação legítima dos estudos de Darwin, porque ele próprio
fez essa dedução e, portanto, constava nos livros e materiais didáticos de
biologia – inclusive na América.
Para sermos justos com Darwin, ele
recuou e não sugeriu explicitamente o extermínio direto (como fez Hunter em A
Civic Biology, ainda que relutantemente), mas não porque a misericórdia seja
algo incondicionalmente bom. Afinal de contas, a misericórdia é nada mais que
um subproduto de forças evolutivas cegas, meramente um “resultado acidental do
instinto de compaixão, originalmente adquirido como parte dos instintos
sociais” (The Descent of Men, parte I, cap. 5, p. 168).
Traduzindo: Darwin acreditava que a
moralidade não era nem algo natural, nem dado por Deus, mas resultado da
seleção natural. Quaisquer ações, atitudes ou paixões que contribuíssem para a
sobrevivência de um indivíduo ou grupo eram naturalmente selecionadas. Como os
que andam em bando podem facilmente sobrepujar os solitários, o “instinto
social” é naturalmente selecionado. Dentro do instinto social, há um
“subtraço”: a compaixão, que nos faz ficar tristes ou desconfortáveis com o
sofrimento ou o extermínio alheio. Segundo Darwin, em algum lugar do mundo a
compaixão contribuiu mais para a sobrevivência do que a selvageria e, conforme
a lei da seleção natural, “aquelas comunidades, nas quais se via um grande
número de membros dotados de compaixão, eram [portanto] as que floresciam
melhor e carregavam o maior número de crias” (Ibid., parte I, cap. 3, p. 82).
Mas lembre-se de que a compaixão
não é considerada algo essencialmente bom; veio de variações genéticas
aleatórias e indiferentes, tão moral quanto ser ruivo, ter olhos azuis ou
mandíbula proeminente. Para Darwin, aquilo que chamamos de “moral” são simples
traços que, de algum modo, contribuíram para a sobrevivência dos nossos
antepassados. O estranho é: Darwin chegou a dizer que não podemos “restringir
nossa compaixão, se a isso formos forçados pela dura racionalização, sem que
deterioremos a parte mais nobre de nossa natureza”. Estranho, porque a evolução
não visava a nenhum fim nobre, mas ao uso de traços específicos em
circunstâncias específicas; ainda que a compaixão tenha ajudado a unir certo
grupo de pessoas, poderia se tornar um perigo para eles quando a carga de
“inaptos” suportada se torna tão pesada que os prejudique seriamente num
conflito com outro grupo de pessoas que não carrega esse fardo da compaixão.
Por alguma razão, Darwin não estava
disposto a arcar com as consequências da própria teoria. “Portanto, devemos
suportar sem reclamar”, ele escreve, com um ar melancólico, “os efeitos sem
dúvida maléficos da sobrevivência e da propagação dos mais fracos.” No entanto,
sugere que “os membros mais fracos e inferiores da sociedade” poderiam pelo
menos se conter e não “se casarem livremente como o vento”, ou melhor ainda,
poderiam “abster-se do casamento” completamente.
Como qualquer um familiarizado com
a história do movimento pró-eugenia sabe, o encanto de Darwin com a compaixão
foi logo abandonado, e a dura racionalização prevaleceu. Em todo caso, isso não
significa que Darwin saiu de moda. Os argumentos pró-eugenia, ferrenhos o
quanto fossem, continuaram bem conformados aos princípios darwinistas e eram
defendidos por algumas das mentes mais celebradas da Europa e da América.[4]
A eugenia darwiniana guarda outra
reviravolta interessante. Nós frequentemente ouvimos falar de sua antipatia
quanto à escravidão, e portanto assumimos que ele jamais assumiria posições
racistas. De fato, parecia que o racismo seria anulado pelo avanço evolutivo da
compaixão. Nas inspiradoras palavras de Darwin (The Descent of Men, parte I,
cap. 3, p. 103):
“Conforme o homem vem avançando
gradualmente em poder intelectual, tornando-se capaz de traçar as consequências
mais remotas de suas ações; conforme vem adquirindo o conhecimento suficiente
para rejeitar costumes nocivos e superstições; conforme vem respeitando mais e
mais não apenas o bem-estar, como também a felicidade de seus colegas de
espécie; conforme vem se habituando, através de boas experiências, boa
instrução e bons exemplos, a tornar sua compaixão ainda mais tenra e difundida,
o bastante para abarcar todas as raças humanas, os deficientes físicos e
mentais e outros membros inúteis da sociedade, até finalmente alcançar os
animais inferiores – assim aumenta mais e mais o padrão de sua moralidade.”
Por mais belas que soem tais
palavras, há dois poréns. Primeiro: há poucos conceitos morais tão
escorregadios quanto o de compaixão. No melhor dos casos, pode substituir a
bondade nas ações humanas pela mera simpatia (“mas mesmo um ladrão pode ser bem
educado”, lembra Wiker). No pior dos casos, ele apaga todos os limites entre os
seres humanos e todos os outros seres viventes. Ao tentar tratar todos os seres
vivos como partes de um todo moral, acaba invertendo toda a ordem moral e ainda
arrasta junto dela a ordem natural. O resultado é o ativista dos direitos dos
animais que, transbordando de compaixão pelos chimpanzés, destrói clínicas e
clínicas de pesquisa médica.
Esse aspecto escorregadio da
compaixão escora-se no argumento central do livro A Descendência do Homem: o
pressuposto de que os seres humanos não são senão mais uma espécie animal
dentro do espectro evolutivo. Se somos apenas mais uma espécie animal e nossos
traços “morais” são como qualquer outro traço evolutivo, então não somos
moralmente diferentes de nenhuma outra espécie animal. E, de fato, conforme o
argumento de Darwin em inúmeras passagens, os animais possuiriam algo como
traços morais também, que difeririam dos nossos em grau, mas não em natureza.
Seja considerando-nos amorais ou
considerando os animais como sujeitos morais, a diferença moral entre os seres
humanos e o restante dos animais torna-se esfumaçada, se não completamente
apagada. É o que levou os ativistas dos direitos animais à conclusão de que, se
os seres humanos têm direitos, os animais também têm. A lógica é simples: a
compaixão é o traço moral mais importante; ter compaixão é sentir-se mal com o
sofrimento alheio; animais não só sofrem, como também dão sinais de que sentem
compaixão; portanto, eles são tão morais quanto nós, e se nós temos direitos,
eles também devem tê-los. Bem que alguém poderia pensar que, se nós cometemos
falhas morais, então os animais também devem cometê-las; no entanto, os
ativistas dos direitos animais não estendem a culpa moral ao resto do reino
animal. Wiker jocosamente lamenta que nem ao menos um desses ativistas vá às
fazendas para protestar contra o tratamento brutal que os galos dão às suas
companheiras galinhas...
O segundo porém vem do próprio
Darwin. No esquema darwiniano, a compaixão é apenas um dos variados efeitos da
seleção natural. A raça é outro deles. As diferentes raças de homens são como
as diferentes raças de cachorro. Elas são o resultado de desenvolvimentos
evolutivos divergentes. Compreende-se de modo mais adequado as distintas raças
humanas – Darwin nos informa – considerando-as como “subespécies”, ou seja, em
algum lugar da transição entre raças distintas e espécies distintas (Ibid., parte I, cap. 7, p. 235).
Para Darwin, conforme o tempo
passar, a diferença entre as raças humanas levará à evolução de espécies
totalmente diferentes. Não que isso vá ocorrer quando os chineses tornarem-se
uma nova espécie, enquanto os ingleses e os africanos se tornarão outras, mas
sim quando houver a eliminação de algumas raças pelas mãos de outras, de acordo
com a lei da sobrevivência do mais forte. É uma das leis da evolução a de que
espécies e subespécies mais parecidas entre si são as mais propensas a entrarem
em conflito, e, portanto, numa série de espécies ou subespécies parecidas que
se tome de um espectro maior – composto, digamos, das espécies A, B, C, D, E,
F, G e H –, as “do meio” serão espremidas para fora do combate pelas duas mais
distantes e distintas (no caso, A e H), que sobreviverão como as mais aptas.
Essa mesma regra aplica-se às raças humanas também, e devemos nos lembrar de
que, para Darwin, as raças humanas existem dentro de um espectro evolutivo mais
amplo, no qual se incluem os gorilas, os orangotangos, os chimpanzés e cia.
Aí vem a pior parte. A evolução se
dá através da competição, e a competição traz a extinção. De fato, Darwin nota
que “a extinção segue-se prioritariamente à competição de tribo com tribo, raça
com raça [...]. Quando nações civilizadas entram em choque com bárbaros, o
combate é curto, exceto quando uma condição climática favorece a raça dos
nativos” (Ibid., parte I, cap. 7, p. 238). Não é uma reclamação moralista; é
uma descrição científica notável, pronunciada sem o menor traço de exaltação. E
é também uma profecia (Ibid., parte I, cap. 6, p. 201):
“Num período futuro, não muito
distante se formos medir em séculos, as raças humanas civilizadas irão, com
quase certeza, exterminar e substituir, ao redor do mundo, as raças mais
selvagens. Ao mesmo tempo, os macacos antropomórficos [ou seja, os que mais se
parecem com homens] [...] sem dúvida serão exterminados. O intervalo será
maior, então, pois que se estenderá entre o homem num estado mais civilizado
ainda – esperamos – do que o caucasiano de hoje e, no outro extremo, algum
macaco inferior, como um babuíno, ao invés de, como é hoje, o negro, o
aborígene australiano e o gorila.”
Entendeu? No ranking das raças humanas, encontramos no topo o caucasiano, e na
extremidade inferior, pendendo no limite da humanidade, “o negro, o aborígene
australiano”, que, na escala evolucionária, estão a um fio de cabelo do gorila
antropomórfico. Ao puxar para cima o supercaucasiano, a evolução também
extermina todas as “espécies intermediárias”, e então a seleção natural dará
conta do negro, do aborígene australiano e do gorila.
“O problema com as profecias
científicas, especialmente as pseudoprofecias científicas” – alerta John Wiker
– “é que elas são muito frequentemente tomadas como destino inevitável.” Não é
bom apoiar-se na opinião de Darwin a respeito da compaixão para tentar
isentá-lo da culpa pela eugenia atroz e racista praticada pelos nazistas. Após
ler A Descendência do Homem, não se pode dizer que Darwin não tinha a intenção
de que a teoria biológica da evolução fosse aplicada aos seres humanos.
Tampouco se pode desconsiderar suas palavras maliciosas, e dizer: “Ele foi
apenas um homem de seu tempo”; foi Darwin quem moldou o seu tempo – e, como
podemos ver nos capítulos seguintes do 10 Livros, moldou também o tempo
daqueles que o sucederam.
(Adaptado
por Roberto
Felippe Santiago do capítulo 7 de 10 Livros que Estragaram o
Mundo)
[1] G. W. Hunter (1873-1948),
“Biologia civilizacional”, em tradução livre. Foi publicado nos EUA
primeiramente em 1914 (pela American Book Company), mas foi em 1925 que o
estado americano de Tennessee impôs que os professores de ensino médio de suas
escolas públicas utilizassem-no em suas aulas de biologia. O livro ficou
conhecido justamente pelas seções – polêmicas, para dizer o mínimo – em que
tratava do evolucionismo – NT.
[2] Em 1925, meses antes de o estado
americano de Tennessee impor que os professores de ensino médio da rede pública
usassem o livro de G. W. Hunter, A Civic Biology, em suas aulas de biologia (v.
nota anterior), o mesmo estado havia aprovado uma lei, conhecida como The
Butler Act (algo como “a Lei Butler”), pela qual proibia o ensino da Teoria da
Evolução em todas as universidades e escolas públicas de Tennessee que fossem
total ou parcialmente bancadas pelos fundos estatais, e instituía a penalização
dos infratores; em suas seções, a lei especificamente proibia o ensino de
qualquer teoria que negasse o relato bíblico do Gênesis a respeito da criação
do homem e, ao invés disso, ensinasse que o homem evoluiu de espécies animais
inferiores – a penalização para os infratores variaria entre U$100 e U$500 (o
texto integral da lei, em inglês, pode ser conferido aqui,
junto de sua revogação, que veio em 1967). A União Americana pelas Liberdades
Civis (ACLU, em inglês), em resposta à instituição dessa lei (que, diziam,
feria as liberdades dos professores), bancou o professor substituto de biologia
John Scopes para que ele atentasse contra a Lei Butler e usasse o A Civic
Biology em suas aulas sobre evolucionismo, o que ele fez, sendo em seguida
acusado pelo estado, num processo-teste programado mesmo para ser um mega-acontecimento
com transmissão nacional pelo rádio, no qual ele seria representado pela
bancada progressista da ACLU, liderada pelo famoso advogado Clarence Darrow, e
o estado seria representado por outro famoso advogado, três vezes candidato a
Presidente da República, William Jennings Bryan. No fim, o veredicto primeiro
da corte foi que John Scopes era culpado e teria de pagar U$100 pela infração;
no entanto, o veredicto foi logo revisto e, por uma questão técnica menor (a de
que era obrigação do júri, e não da corte, estabelecer o valor da multa),
Scopes foi inocentado. O caso, porém (que ficou conhecido como “The Monkey
Trial”), já tinha atingido seu objetivo de popularizar a questão criacionismo x
evolucionismo em nível nacional e teve repercussões assombrosas, chegando a ser
considerado como um dos maiores responsáveis pelo costume que se criou no país
de se ridicularizar as argumentações religiosas contrárias à Teoria da Evolução
(cf. Edward J. Larson, Summer for the Gods: The Scopes Trialand America’s
Continuing Debate over Science and Religion, New York: Basic Books, 1997) – NT.
[3] O título do filme, em inglês, é
Inherit the Wind (1960), que originalmente é uma peça que representa o
Julgamento de Scopes. Foi escrita em 1955 e ganhou várias adaptações no cinema
e na televisão. Nessa de 1960, o celebrado ator americano Spencer Tracy
interpreta uma personagem chamada Henry Drummond, que é a representação do
advogado Clarence Darrow. O jornalista polêmico H. L. Mencken (v. nota
anterior) também está representado no filme pela personagem E. K. Hornbeck,
interpretada pelo celebrado Gene Kelly (de Cantando na Chuva) – NT.
[4] Aqueles que ainda querem acreditar que a eugenia só foi cozida mais
tarde por Hitler e alguns de seus comparsas simiescos da S.S. devem ler:
Richard Weikart, From Darwin to Hitler: Evolutionary Ethics, Eugenics, and
Racism in Germany, New York: Palgrave Macmillan, 2004; Edwin Black, War Against
the Weak: Eugenics and America’s Campaign to Create a Master Race, New York:
Four Walls Eight Windows, 2003; e Stefan Kühl, The Nazi Connection: Eugenics,
American Racism, and German National Socialism, Oxford: Oxford University
Press, 1994.
Leia também: Darwin e as mulheres, Hitler e Darwin, Darwin influenciou a grande marcha de Mao Tse-Tung e A influência do darwinismo sobre ditadores assassinos
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