“O corpo dos animais funciona como uma sociedade ou ecossistema cujos integrantes são as células, que se reproduzem por divisão celular e organizam-se em conjuntos que colaboram entre si (os tecidos). Esse sistema pode até ser visto sob o ponto de vista de um ecologista: nascimento das células, morte, habitat, limitações territoriais e manutenção do tamanho das populações. O único ponto da ecologia que pode ser deliberadamente evitado é o da seleção natural. Nada se pode dizer sobre a ocorrência de mutações ou sobre a competição entre as células somáticas. Isso porque o organismo sadio, no que concerne a esses dois aspectos, é uma sociedade muito particular onde o auto-sacrifício, em contraposição à sobrevivência do mais forte, é a regra geral. Essencialmente, todas as células das linhagens somáticas estão determinadas a morrer. Elas não deixam descendentes: toda sua existência é dedicada a manter as células germinativas, que são as únicas com chance de sobrevivência. Não há mistério algum nisso, pois o organismo é um clone, e o genoma das células somáticas é o mesmo daquele das células germinativas. Graças a essa autoimolação em benefício das células germinativas, as células somáticas contribuem para a propagação das cópias de seus próprios genes.
“Desse modo, ao contrário de células de vida livre, como as bactérias, que competem pela sobrevivência, as células de um organismo multicelular têm o compromisso de colaborar entre si. Para coordenarem esse comportamento, as células enviam, recebem e interpretam um conjunto muito sofisticado de sinais que servem para o controle social que diz a cada uma como deve atuar. Disso resulta que cada célula se comporta de uma maneira socialmente responsável, repousando, dividindo-se, diferenciando-se ou morrendo, quando necessário, para o bem-estar do organismo. As alterações moleculares que perturbam essa harmonia são problemáticas para a sociedade multicelular. A cada dia, em cada corpo humano com mais de 10 elevado a 14 células, bilhões delas sofrem mutações que podem desregular os controles sociais. Mais perigoso ainda, uma mutação pode dar certa vantagem seletiva para uma célula, possibilitando que ela se divida mais vigorosamente que suas vizinhas e venha a se tornar a fundadora de um clone mutante que passe a crescer. Uma mutação que leve um dos indivíduos que participam da cooperação a ter esse tipo de comportamento egoísta pode comprometer o futuro de todo o conjunto. Os ciclos repetidos de mutação, de competição e de seleção natural, ocorrendo em populações de células somáticas só pioram a situação. Esses são os ingredientes básicos do câncer, uma doença na qual certos clones mutantes de algumas células passam a prosperar às custas das células vizinhas e, ao fim, leva à completa destruição da sociedade celular.”
(Bruce Albert et al, Biologia Molecular da Célula. Editora Artmed)
Comentário de Ana Carolina, aluna adventista do curso de Medicina da PUC-SP: O surgimento dos seres pluricelulares só foi possível pois, em algum momento da suposta evolução, uma célula quebrou todos os princípios de disputa e seleção natural pré-existentes para colaborar com outra célula vizinha e, dessa forma, possibilitar a vida em sociedade. Isso é no mínimo paradoxal. Como explicar, por meio da seleção natural, a incrível cooperação das células nos seres multicelulares? Partindo do princípio da evolução, no qual o mais simples veio primeiro, em algum momento uma célula isolada precisou se unir a outra e conviver harmoniosamente com ela. Pela lei do mais forte, isso é praticamente impossível. O texto acima deixa claro que os princípios que norteiam a evolução e seleção natural não são válidos para as células dos seres multicelulares, que abdicando da lei do mais forte, colaboram com suas vizinhas em favor do conjunto. Tudo que foge a essa colaboração recíproca condena o ser vivo à destruição. Se o princípio evolutivo não se aplica às nossas próprias células, será que ele se aplica ao restante do planeta e seres vivos?