"O Nascimento de Vênus" |
Em
um mundo trágico, rodeado por desgraças, um verdadeiro “vale de lágrimas”, a
busca do belo tem sido uma constante para a humanidade. Eis onde entram as
artes, as diferentes expressões individuais no afã de capturar de alguma forma
esse transcendental, universal e atemporal que nos retira um pouco do efêmero,
do aqui e agora. Roger Scruton tem sido uma das vozes mais importantes na luta
pela resistência desse ideal, e em Beauty: A Very Short Introduction, ele desenvolve sua
visão acerca da importância da beleza em nossas vidas. Tentarei, a seguir,
resumir seu ponto de vista, que julgo instigante, mesmo para quem não
compartilha de seus sentimentos religiosos. Aliás, diria que para ateus a busca
do eterno nas artes se torna ainda mais relevante. Scruton entende que o
julgamento artístico é subjetivo, mas ao mesmo tempo depende do suporte de
motivos racionais. Mas estes não podem se limitar a algum argumento dedutivo,
pois se fosse o caso, qualquer opinião de segunda mão sobre beleza valeria.
Haveria especialistas em beleza que nunca a experimentaram, e isso não faz
sentido.
O
julgamento estético não é uma simples afirmação de preferências, pois demanda
um ato de atenção. Nós chamamos algo de belo quando extraímos prazer ao
contemplá-lo como um objeto individual, por si mesmo. Para tanto, é preciso
deixar de lado outros interesses, como os utilitaristas e funcionais, e focar
na coisa em si. Em outras palavras, exige uma atitude desinteressada, que não
lida com o objeto como apenas um entre vários substitutos, mas como o foco
exclusivo da atenção.
Esse
prazer desinteressado é uma forma de prazer também, mas sua diferença está
nesse foco no objeto que depende também de pensamento, reflexão. Há uma
“intencionalidade” específica envolvida, é parte de uma vida cognitiva. Somente
criaturas como nós, com linguagem, autoconsciência, razão prática e julgamento
moral, podem observar o mundo desta forma alerta e desinteressada, de modo a
capturar o objeto apresentado e extrair prazer dele por meio da contemplação,
não apenas do desejo.
Segundo
Scruton, essa é uma maneira de se aspirar à imortalidade, que seria a demanda
mais elevada da alma humana. Apesar de existirem modismos na beleza humana, e
de cada cultura lidar com o corpo de forma diferente, os olhos, a boca e as
mãos têm um apelo universal. Para o filósofo britânico, isso ocorre pois eles
são os meios pelos quais a alma do outro brilha sobre nós, e torna-se
conhecida.
Uma
analogia feita por Scruton ajuda a compreender a importância do bom gosto nas
artes. A arte seria como o humor, como piadas que possuem uma função dominante,
que são objetos de interesse estético. O que nos faz rir diz muito sobre quem
somos. “Nada revela tanto o caráter de uma pessoa quanto as coisas que a fazem
rir”, disse Goethe. Parece evidente que existem boas e más piadas, refinadas e
inteligentes ou grosseiras e superficiais, e que tal divisão não é somente algo
subjetivo. Da mesma forma, a arte pode atingir sua função de uma maneira
recompensadora, oferecendo alimento para a alma e um espírito mais elevado,
inspirando seu público. Caso contrário, sequer merece o conceito de arte, pois
se tudo é arte, então nada é arte.
O
objetivo da arte seria nos apresentar mundos imaginários, nos quais podemos
adotar, como atitude estética, uma postura de preocupação imparcial. Nas artes
vemos a comunicação de experiências individuais, que buscam dar significado ao
mundo e à nossa existência. Para ser bela, ela precisa ter significado,
fornecer um sentido de pertencimento a uma empreitada comum. Claro que o conflito
e a dor podem fazer parte da aventura artística, mas eles também podem
transmitir essa sensação de pertencimento. Isso em nada se assemelha à
tentativa de chocar por chocar, de mexer com as emoções de forma banal,
sentimentalista.
Implícito
no sentido da beleza estaria nosso pensamento sobre a comunidade, sobre a
concordância acerca de julgamentos que tornam a vida em sociedade possível e
valiosa. Mesmo com diferenças culturais, há a possibilidade de denominadores
universais, de cruzamento cultural, caso contrário Homero ou Shakespeare não
seriam admirados por séculos e séculos em diversas culturas diferentes.
Simetria e ordem, proporção, harmonia, convenção, tudo isso parece enraizado em
nossa natureza, como valores permanentes em nossa psique. A beleza, nesse
aspecto, seria como o bem: ela nos fala, como a virtude nos fala, sobre os
potenciais humanos; não sobre o que desejamos apenas, mas sobre o que
deveríamos desejar, porque nossa natureza requer isso.
A
distinção entre uma obra de arte erótica e a pornografia deixa mais claro esse
papel. São dois tipos diferentes de interesse em jogo, incompatíveis entre si.
Na arte erótica não se pode simplesmente substituir o objeto envolvido, pois há
um sujeito a ser contemplado; já na pornografia há uma total “despersonificação”
do objeto, cujo único papel é despertar o interesse sexual, o desejo imediato.
Um fala à nossa imaginação, o outro à fantasia. A pornografia, ao contrário da
arte erótica, trata o objeto como uma commodity,
separa o corpo da alma. Em vez de ser um tributo à beleza humana, representa
sua dessacralização, transformando a pessoa em objeto, pedaço de carne, um mero
animal.
A
apreciação da beleza nos exige um afastamento intelectual de nós mesmos, do
aqui e agora, de nossos interesses narcísicos. Uma renúncia que torna possível
reverenciar o mundo e o que nele há de belo. Para Scruton, a necessidade que
temos da beleza é parte de nossa condição metafísica, como indivíduos livres,
em busca de nosso lugar em um mundo público e compartilhado. Podemos escolher a
alienação, o ressentimento, a desconfiança e o niilismo, ou podemos encontrar
um lar aqui, que nos forneça um descanso em harmonia com os demais e com nós
mesmos. A experiência da beleza nos guiaria nesta segunda direção, surgindo a
partir de uma postura de humildade diante do mundo, uma aceitação de nossas
imperfeições, enquanto aspiramos a uma unidade mais elevada e transcendental.
A
cultura pós-moderna, ao negar a beleza, ao atacar tudo que é sagrado, pretende
destruir isso que nos julga e nos “acusa”, justamente por ser mais elevado. Ela
procura destruir o amor e a liberdade, profana tudo que é reverenciado como
superior, universal e atemporal, como uma criança que deseja rejeitar toda
autoridade. Em seu lugar, coloca o vício dos apetites, o aqui e agora
hedonista, as fáceis recompensas dos interesses imediatos. Tal atitude estaria
em evidente confronto com a busca pela beleza conforme descrita por Scruton,
que demanda sacrifício, distanciamento, atenção canalizada para o objeto a ser
contemplado. E o ser humano jamais seria o mesmo sem o enaltecimento do belo,
que existe para elevar nosso espírito acima da existência meramente animal,
efêmera, trágica.
(Rodrigo Constantino,
Veja)
Nota:
Para mim, o resumo implícito de tudo é: o Deus que ama o belo nos criou para
amá-lo também. [MB]