De vez em quando a mídia popular traz à tona assuntos há muito debatidos entre teólogos e historiadores, alguns dos quais já foram até resolvidos. No dia 7, foi a vez de o site G1 polemizar com a matéria “Livros bíblicos podem ter autoria ‘falsa’, afirmam especialistas”. A matéria começa assim: “Trito-Isaías? Deutero-Zacarias? Epístolas Pastorais? A nomenclatura é complicada, mas se refere a um fato [fato?] simples e, para as sensibilidades modernas, um tanto embaraçoso: é praticamente certo [não era ‘fato’?] que os autores presumidos de uma série de livros bíblicos não sejam bem quem eles dizem ser. A chamada pseudoepigrafia, ou seja, o uso de uma identidade mais famosa e antiga para embasar a autoria de um novo texto, é um fenômeno relativamente comum no Antigo e no Novo Testamento.
“Basta dizer que o livro do profeta Isaías provavelmente foi escrito por três (ou mais) autores (o Isaías histórico, o Deutero-Isaías e o Trito-Isaías); que cerca de metade das cartas de São Paulo tenham sua origem colocada sob suspeita por estudiosos atuais [sim, os liberais]; e que nenhuma das chamadas cartas de São Pedro, também no Novo Testamento, possa ser atribuída a ele com segurança.”
Sem entrar em detalhes sobre os pormenores da matéria (muitos volumes já foram escritos sobre cada aspecto dessa discussão), gostaria apenas de dizer que foi apenas em 1920 que surgiu a idéia do “trino Isaías” ou “trito Isaías”, por causa das diferenças no estilo literário. Assim, o “Proto” abrangeria os capítulos 1 a 39, o “Dêutero” os capítulos 40 a 55, e o “Trino” os capítulos 56 a 66.
A despeito disso, há muitas evidências de unidade no livro de Isaías. Por exemplo:
1. Deve-se considerar o caráter tradicional. Os judeus nunca colocaram em cheque a autoria do livro.
2. Uso de expressões próprias (“Santo de Israel” aparece 12 vezes nos capítulos 1 a 39 e 13 vezes do 40 ao 66. No restante do Antigo Testamento (AT) aparece apenas seis vezes. “O Poderoso de Israel” aparece em Isaías 1:24 e no “Deutero” 49:26 [“Poderoso de Jacó”]).
3. Semelhança nos estilos
4. Tema geral: salvação do povo de Deus
5. Testemunho de Jesus (Mt 13:14, 15 – Is 6:9; Mt 12:17-19 – Is 42, “Deutero”). Se houvesse dois Isaías, Jesus mencionaria isso. Mas Ele menciona Isaías como sendo um único livro.
6. Nos Manuscritos do Mar Morto o livro de Isaías foi descoberto integralmente, em dois rolos, mas não dividido, como propõem os defensores dos dois os três Isaías.
No mais, a matéria do G1 segue o esquema usual nesse tipo de reportagem: entrevistam poucos especialistas (no caso dessa matéria, especificamente, ficam apenas com Bart D. Ehrman, quando o assunto é Novo Testamento), geralmente liberais que duvidam da inspiração do texto bíblico.
Ehrman gosta de destacar as “contradições” da Bíblia. Lembro-me de ter lido a respeito disso um tempo atrás e quero apresentar aqui três dessas supostas contradições que podem, com alguma disposição e boa vontade, ser harmonizadas.
Segundo o doutor em Teologia Ozeas Caldas Moura, “de vez em quando aparece algum escritor sensacionalista abordando pretensas contradições na Bíblia ou questionando aspectos da vida de Cristo e de outros personagens bíblicos”. E ele explica as três “contradições” de Ehrman:
1. Marcos 15:25 e João 19:14. O texto de Marcos 15:25 diz: “Era a hora terceira (9 horas) quando o crucificaram.” No grego, está assim: “Era a hora terceira, e o crucificaram.” O problema é que traduziram a conjunção aditiva kai (= e) como um advérbio de tempo quando (o que complica o entendimento do verso). A explicação para Marcos 15:25 é que (1) houve um erro do copista (em vez de hora “sexta”, como está em João 19:14, o copista colocou hora “terceira”), ou (2) Marcos está falando sobre o processo da crucificação como um todo, ou seja, desde que Jesus apanha dos soldados, carrega a cruz em direção ao Gólgota e é finalmente cravado nela. Assim, o açoitamento de Jesus, os murros recebidos e a zombaria sofrida teriam começado por volta da hora “terceira” (9 h da manhã). Ao meio-dia (hora sexta = 12h), Jesus teve as mãos cravadas na cruz (conforme o relato de João, que fala desse momento específico e não de todo o processo).
2. Lucas 2:39 e Mateus 2:19, 22. O texto de Lucas menciona que após o nascimento de Jesus em Belém, Seus pais O levaram ao Templo, em Jerusalém. Lá Ele foi circuncidado e, após isso, voltaram para Nazaré. Lucas omite a fuga para o Egito. Já Mateus fala que antes de Herodes mandar matar as crianças de Belém, um anjo avisou José e pediu-lhe que fugisse para o Egito com Maria e o menino Jesus. Olhando superficialmente o texto de Mateus, parece que tão logo Jesus nasceu, José e família fugiram para o Egito. Mas não foi assim. Lucas e Mateus se completam. Foi após a volta para Nazaré que houve a fuga para o Egito (Herodes talvez pensasse que Jesus ainda estivesse em Belém. Daí ter mandado matar os meninos dessa cidade “de dois anos para baixo” (Mt 2:16). Dois anos é tempo suficiente para Jesus ter nascido, ter sido levado ao Templo em Jerusalém para ser circuncidado e Ele e família terem fugido para o Egito.
3. Gálatas 1:16, 17 e Atos 9:26. Gálatas menciona Paulo dizendo que “nem subi a Jerusalém, para os que já eram apóstolos” (mas isso tão logo se converteu, no caminho para Damasco). Já Atos 9:26 fala que Paulo foi a Jerusalém e “procurou juntar-se com os discípulos”. O texto de Gálatas 1:18 esclarece a questão: “decorridos três anos” (após sua conversão), Paulo foi a Jerusalém. Portanto, não há contradição entre os textos.
(G1 Notícias)