Os absolutos bíblicos são mais do que nunca desacreditados. Se muitas pessoas negam a existência de um Deus, maior é o números daqueles que negam a existência do diabo. Em sua edição desta semana, a revista Veja comenta o lançamento de dois livros que desacreditam a imagem tradicional de um diabo expulso do Céu por iniciar uma rebelião.[1]
Para Henry Ansgar Kelly, autor de Satã – uma biografia, os trechos bíblicos que aludem a Satanás seriam equivocadamente interpretados pela tradição cristã. Para Kelly, o diabo não estava no Éden; o que existia ali era uma serpente “muito, muito esperta”.[2]
Na verdade, a palavra Nahash (cobra, serpente), que aparece cinco vezes em Gênesis 3 (vs. 1, 2, 4, 13, 14), só poderia se referir estritamente a um animal, caso partíssemos de uma “teologia naturalista”, e, assim, seria forçoso admitir que há em Gênesis uma fábula, não a Verdade que a Bíblia diz ser (Jo 17:17). No entanto, o que está implícito em Gênesis é esclarecido no Novo Testamento: Satanás é o responsável pelo engano, e a serpente, seu mero agente (2Co 11:3; Ap 12:3).[3]
Kelly também discorda do entendimento de que Satanás seja o sujeito da profecia de Isaías 14. Basta nos lembrarmos de que o nome Lúcifer significa “portador de Luz”, e o profeta se refere à queda da estrela da manhã.
É claro que temos aí uma profecia de dupla aplicação: o texto é um prenúncio da derrocada da Babilônia, em primeira instância; mas Babilônia serve para simbolizar o seu instigador, Satanás, assim como o rei de Tiro, em Ezequiel 28, passa a representar igualmente Satanás. Os elementos de ambos os capítulos extravasam a descrição de meros reis mundanos – ou como explicar como o rei de Tiro estava no Éden e era um “querubim da guarda ungido” (Ez 28:13, 14), ou que o rei da Babilônia pudesse assentar-se no trono de Deus (Is 14:13)?
Outro engano de Kelly é afirmar que o poder do diabo seria “instigado por Deus”. Ele parece desconhecer a mentalidade hebraica que atribui a Deus o que Ele permite, como se Ele fosse o responsável. Para ele, um Satanás caído do Céu devido ao orgulho e rebelião teria sido uma invenção do teólogo Orígenes. Nada mais longe dos fatos.
Quem quer que analise o que os escritores bíblicos dizem sobre Satanás reconhecerá que ele era um anjo caído, que se afastou de sua posição por orgulho, instigou outros anjos a fazerem o mesmo e hoje vive com o propósito de desvincular os homens de seu Criador, mesmo sabendo que para si mesmo o fim está próximo (cf. Zc 3:1, 2; Lc 10:18; Jo 16:11; 2Co 11:14; Ef 6:11, 12; 1Pe 5:8, 9; Jd 6, Ap 12; 20).
Além do livro de Kelly, as páginas de Veja dão destaque a outro lançamento – Anjos Caídos, do afamado crítico literário Harold Bloom. Autor do polêmico Cânone ocidental, Bloom é um obcecado pela superioridade de Shakespeare entre os autores ocidentais, que conquistam seu lugar ao sol se impondo através de sua “individualidade realizada”, na forma de seu produto final, o “valor estético”. Para entrar no Cânone, um autor tem que se impor pelo “domínio da linguagem figurada, originalidade, poder cognitivo, conhecimento, dicção exuberante”. Não há uma ideologia por trás desses escritores, para concepção de Bloom, nem é possível “formar nossos valores morais, sociais, políticos ou pessoais” a partir da Literatura, muito menos “salvar algum indivíduo” ou “melhorar qualquer sociedade”; isso porque o valor estético não pode ser transmitido aos ineptos, tão somente aos iniciados e com propensão à arte.[4]
Ocorre que, para Bloom, a Bíblia é literatura como qualquer outra. Javé seria apenas uma personagem egoísta, Mateus teria inventado Jesus e coisas do gênero. Na sua visão crítica, Bloom segue sua interpretação peculiar dos textos bíblicos, sem levar em conta os estudos críticos mais recentes sobre a matéria bíblica, além de ignorar o que a Bíblia afirma ser seu propósito maior: salvar e não fazer parte de uma lista de grandes obras literárias (Rm 15:4; 2Tm 3:16, 17; 1Pe 1:10-12; 2Pe 1:19).
O que de mais positivo aparece na matéria de Veja é uma citação do simbolista francês Charles Baudelaire, para quem “o maior truque do diabo” seria “nos convencer de que ele não existe”. Enquanto as idéias sobre a figura de Satanás são revistas e os conceitos bíblicos descartados, podemos estar certos de que há alguém diabolicamente feliz por toda essa confusão a camuflar sua intensa atividade...
(Do blog Questão de Confiança)
[1] Jerônimo Teixeira, “Quem diabos é o diabo?”, publicado em Veja, ed. 2.078, ano 41, nº 37, 17 de setembro de 2008, p. 140, 141.
[2] Idem, p. 141. Daqui por diante, as demais citações se reportam à mesma página.
[3] R. Laird Harris, Gleason L. Archer, Jr. e Bruce K. Waltike, Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento (São Paulo, SP: Vida Nova, 2005), 4ª reimpressão, p. 952.
[4] Harold Bloom, O cânone ocidental (Rio de Janeiro, RJ: Editora Objetiva, 1994), p. 31, 36, 38 e 25.