Como entender o que o Gênesis diz? |
Têm
sido propostos dois modelos para a criação do Universo:
Modelo da Terra Jovem:
o primeiro modelo, em geral, defende a criação da Terra – incluindo a sua
modelagem para ter as condições necessárias para a existência da vida, bem como
a própria vida em todas as suas manifestações – em seis dias, na semana da
Criação, juntamente com a criação do Universo e do nosso Sistema Solar. Nesse
primeiro caso, a semana da Criação corresponde, portanto, ao período da criação
do Universo, juntamente com a modelagem da Terra para abrigar a vida, tendo os
demais planetas e luas do Sistema Solar (criados nessa semana simultaneamente
com a Terra) permanecido sem forma e vazios.[1: p. 23]
Modelo do intervalo
passivo: em seu livro Origens,
o zoólogo e paleontólogo Dr. Ariel Roth, ex-diretor do Geoscience Research
Institute, nos informa que esse modelo é considerado uma variação do criacionismo
da Terra Jovem.[2: p. 330] O modelo defende que Deus criou o Universo (espaço-tempo), estrelas e sistemas planetários,
incluso a matéria da Terra (partículas elementares) em eras anteriores (época
indeterminada), mas preparou a Terra para a vida e criou a vida somente poucos
milhares de anos atrás, em seis dias (note a semelhança com o modelo geral da
Terra Jovem).[3]
Nesse
segundo caso, a semana da Criação relatada em Gênesis corresponde, portanto,
somente ao período de modelagem da Terra (que sucedeu o período indeterminado
desde a criação do Universo) para ter as condições necessárias para a
existência da vida, bem como a própria vida em todas as suas manifestações.[4,
5] Nesse segundo caso, ainda, os demais planetas e luas do Sistema Solar teriam
permanecido em seu estado original, sem forma e vazios, como eram desde o
início da época indeterminada que precedeu a semana da Criação.[1: p. 23]
Richard
Davidson, professor de Antigo Testamento da Universidade Adventista de Andrews,
afirmou em artigo publicado na Revista da
Sociedade Teológica Adventista que “várias considerações [o] levam a
preferir o ‘intervalo passivo’ em relação ao modelo ‘sem intervalo’ [Terra
jovem].”[6: p. 21; 7] Ademais, outros teólogos adventistas também concordam que
um padrão de criação divina em dois estágios emerge de uma análise
escriturística.[3, 5, 8, 9]
Dr. Ruben Aguillar, professor de
Antigo Testamento da Faculdade Adventista de Teologia do Centro Universitário Adventista de São Paulo (UNASP)
comenta sobre a relação do verso 1 de Gênesis com o modelo do intervalo
passivo: “uma das palavras da Bíblia Hebraica
bem estudadas e que ao mesmo tempo provoca interpretações polemicas é aquela
com a qual começa o relato do Gênesis: bereshith,
‘no princípio’. A primeira sílaba é uma preposição inseparável traduzida sem
dificuldades como ‘em’. Na língua portuguesa aparece acrescido com o artigo ‘o’
e que resulta em “no”. O termo reshith,
traduzido como ‘principio’, encontra sua raiz no vocábulo r’osh, ‘cabeça’. Segundo o léxico hebraico, esse termo significa
também: ‘começo’, ‘tempo primordial’, ‘estado primordial’, ‘tempo remoto’,
‘primeiro da sua classe’ em relação a tempo. Auxiliado pelas alternativas de
tradução que o léxico apresenta o primeiro verso de Gênesis pode ser assim
traduzido: ‘no tempo primordial Deus criou’, ou também ‘no tempo remoto Deus
criou’; que concede ao verso um sentido de antiguidade de maior profundidade em
termos de expressão temporal.”[10: p.15]
Professor Aguillar acrescenta que a
análise do verso 2 de Gênesis reforça um entendimento coerente acerca da
criação em dois estágios: “a ideia do intervalo passivo se
fortalece ao analisar o verso 2 no texto hebraico, onde aparecem as palavras tohu vabohu, ‘sem forma e vazia’, sobre
as quais está inserido o acento gramatical rebi’a.
Os acentos na língua hebraica tem a função de relacionar uma palavra com as
outras. Essa relação pode ser de união ou de separação. O acento rebi’a, que
aparece nas palavras mencionadas é disjuntivo, da segunda classe superior, ou
seja, a sua função é fazer separação ou indicar pausa. Observando através dessa
lente, pode-se ver que a frase ‘estava sem forma e vazia’ faz separação entre
as frases ‘no princípio criou Deus os céus e a terra’ do verso 1, com as que
descrevem a semana da criação.”[10: p.13]
Para
fins de esclarecimento, é importante mencionar que o modelo do intervalo
passivo, citado acima, não deve ser confundido com o modelo do intervalo ativo (também
chamado de Ruína-Restauração), proposto por Thomas Chalmers (1780-1847), famoso
teólogo escocês, o qual defendia – sem qualquer evidência direta, científica ou
escriturística – que a vida teria sido criada por Deus na Terra em passado
distante pré-adâmico.[2: p. 330; 11] Segundo a página ADVindicate, editada pelo
geólogo Monte Fleming, doutorando em Geologia pela Universidade de Loma Linda,
esse modelo ainda diz que, após Satanás ter sido julgado, ele teria sido
arremessado à Terra e destruído essa vida pré-adâmica supostamente existente. Essa
destruição teria finalmente sido seguida pela criação descrita em Gênesis 1 e
2.[11]
Um
problema frequentemente associado a ambos os modelos criacionistas (Terra Jovem
e Intervalo Passivo) devido à ignorância, primeiro por parte de seus defensores
leigos; depois, por parte de seus opositores, diz respeito à questão da criação
da “luz” durante a semana da Criação.[2: p. 308] Muitas pessoas se utilizam do
argumento de que Deus teria “criado” os luminares somente no quarto dia
(Gênesis 1:14). Mas uma análise alternativa nos mostra que
Deus poderia já ter criado a luz no primeiro dia (Gênesis 1:3); portanto, nesse
sentido, o sistema solar já existia.
O erguimento parcial de uma densa nuvem no
primeiro dia da semana da criação iluminou a Terra, porém, o Sol, a Lua e as
estrelas, embora presentes, não eram visíveis a partir da Terra. A luz era
semelhante à de um dia muito nublado. Uma retirada completa da cobertura de
nuvens, no quarto dia, fez com que o Sol, a Lua e as estrelas, preexistentes,
se tornassem plenamente visíveis da superfície da Terra. Daí os luminares serem
mencionados somente no quarto dia. Ou então o Sol e a Lua podem ter sido
criados no quarto dia, ao contrário das demais estrelas, que são mencionadas de
forma parentética por Moisés, indicando que elas já existiam.
Os dois primeiros versos do livro de
Gênesis também possibilitam uma segunda interpretação aceita, diga-se de
passagem. por uma parcela significativa de adventistas criacionistas.[2: p.
309-310] A ideia aqui é a de que a declaração “Deus criou os céus e a Terra”,
no verso 1 de Gênesis, diz respeito a um pequeno resumo ou introdução sobre o
relato da criação da Terra e arredores que viria a seguir, acompanhada pela
descrição, no versículo 2, de que “a Terra era sem forma e vazia e o Espírito
de Deus pairava por sobre as águas”. Isto indicaria materialidade anterior à
semana da Criação, embora não estivesse diretamente relacionado a questões
sobre o Universo (espaço-tempo). Essa descrição se aplica coerentemente a uma
Terra pré-existente, sinalizando, indiretamente, que o Universo foi criado
antes da semana da criação, juntamente com o tempo.
A
maioria das traduções bíblicas propicia, de fato, uma afirmação ambígua, em
vista de que o hebraico dos manuscritos bíblicos dá margem a mais de uma
interpretação. No entanto, a descrição de uma Terra vazia, envolvida em trevas
originais, é reforçada por descrições semelhantes em outras passagens bíblicas
que falam de uma Terra original envolvida em “escuridão” (Jó 38:9) com uma
veste de nuvens, e de uma Terra que “surgiu da água” (2 Pedro 3:5).
Em artigo publicado
na Revista Adventista pelo pastor e mestre em Ciências da Religião
Glauber Araújo vemos
a explicação de que “acreditar que o Universo seja mais antigo do que a vida em nosso
planeta não tem que ver com o pensamento evolucionista, mas com as evidências
bíblicas”.[12: p.20] Isso corrobora o que ponderou John Lennox, declarado
criacionista e professor de matemática da Universidade de Oxford, no livro Seven Days That Divide the World: “É
logicamente possível crer nos dias de Gênesis como de 24 horas (ou uma semana
terrestre) e crer que o Universo é antigo. E [...] isso não tem nada que ver
com ciência. Tem que ver com o que o texto está de fato nos dizendo” (p. 53).
O
professor Richard Davidson [13: p. 51], no livro He Spoke and It Was, afirma ainda que as “análises recentes do
discurso de Gênesis 1 [...] indicam que a gramática do discurso desses
versículos aponta para uma criação em dois estágios. A história principal não
começa antes do versículo 3. Isso implica uma condição anterior dos ‘céus e
Terra’ em seu estado ‘sem forma e vazio’, antes do início da semana da
criação”.
Partindo
dessa visão, Provérbios 8:26 diz que houve uma época em que nem sequer o
princípio do pó deste mundo existia. O livro de Hebreus 11:3 diz que Deus criou
as eras (tempo, eternidade). Ainda sobre o tempo, o astrofísico Eduardo Lütz
afirma que “o tempo é um dos atributos do Universo. Existe uma profunda conexão
entre a criação do tempo e a criação do Universo, não tem como separá-los. Se o
tempo não teve um início, Deus não criou o que chamamos hoje de
Universo, pois o tempo depende do Universo para existir”. Em outras palavras,
segundo o astrofísico, “tempo pode existir sem matéria, mas matéria não pode
existir sem tempo”.
O
livro de Jó também aponta nessa direção. Ali encontramos dois textos que
claramente sugerem a existência de outros seres criados além de nós (leia mais
sobre isso aqui). Em primeiro lugar, quando Satanás
compareceu perante o Senhor (Jó 1:6, 7), o texto faz referência a outros “filhos
de Deus”, dando a entender que nosso planeta não era o único habitado.[12] É
claro que, como afirma o astrofísico Eduardo Lütz, “a identidade dos ‘filhos de
Deus’ em Jó 38:7 não é relevante para o argumento de que a Bíblia sugere a
existência do Universo antes da criação da Terra. É apenas uma curiosidade
tocada de passagem. Mas o que conta é que alguém criado por Deus comemorava
‘quando’ Ele lançava os fundamentos da Terra”. Em outras palavras, segundo Lütz,
Jó 38:7 contradiz a interpretação de que a Terra tem a mesma idade do Universo,
mas não contradiz Gênesis 1: “Não há qualquer base bíblica para se afirmar que
o Universo tenha cerca de seis mil anos de idade ou que Gênesis 1 se refira à
criação do Universo. Muito pelo contrário. Certos textos bíblicos (como Jó
38:4-7) sugerem que, quando o Criador ‘lançou os fundamentos da Terra’, já
existiam até mesmo seres inteligentes em outras partes do Universo [como plateia].
E, mesmo que não aceitemos isso por alguma razão obscura, pelo menos precisamos
reconhecer que Gênesis 1 não nos dá qualquer informação sobre quando e como o
Universo foi criado.”[14: p. 6, 7]
Ao
longo do meu trabalho de pesquisa e divulgação do criacionismo, tenho percebido
que boa parte dos criacionistas da “Terra jovem” não consegue aceitar a
interpretação de que apenas a “vida no planeta Terra seja jovem”, sendo o Universo
e a matéria (partículas elementares) do planeta antigos. Mas, sem querer ser polêmico,
percebemos que uma análise escriturística em conjunto com os dados atuais do
conhecimento científico nos mostra que essa possibilidade existe, é razoável e
deve ser introduzida na discussão sobre as origens.
Essa
posição está em consonância com a declaração emitida pela Sociedade
Criacionista Brasileira (SCB), órgão máximo sobre criacionismo no Brasil, em
sua análise editorial, como se segue: “À luz dos conhecimentos atuais, a
criação dos céus e da Terra é algo posterior à criação do Universo.” [1: p. 18] Logo, a SCB conclui:
“A criação de nossa Terra de maneira nenhuma deve ser confundida com a criação
do Universo.”[1: p. 23]
Em
suma, portanto, a principal distinção entre a interpretação do “intervalo
passivo” e a interpretação “sem intervalo” é devida à questão de quando se deu
o início absoluto dos “céus e da Terra” (Gênesis 1:1).[3] Enquanto o último
interpreta Gênesis 1:1, 2 como parte do primeiro dia da criação de sete dias, o
primeiro interpreta Gênesis 1:1, 2 como uma unidade cronológica separada por
uma lacuna no tempo do primeiro dia da criação, como descrito em Gênesis 1:3. Segundo o que nos diz o astrofísico Lütz, “não tem como provar pela Bíblia que o Universo seja
jovem. Também não tentamos provar pela Bíblia que o Universo seja ‘muito’
antigo. Apenas mostramos fortes indicações de que o Universo é mais velho do
que a Terra”.
Diante
do exposto, a pergunta que fica é a seguinte: Você se considera um criacionista
da Terra jovem convencional ou um criacionista do intervalo passivo?
Obs: o NUMAR-SCB não tem uma posição definitiva sobre o assunto, e nem poderia bater o martelo sobre a questão de o universo ser antigo (conforme apontam as evidências escriturísticas) ou jovem (também apoiado em evidências tanto científicas quanto escriturísticas), uma vez que não se tem um consenso na comunidade teológica e, mais especificamente, na criacionista. O objetivo do texto é o de apenas apresentar ao nosso público esse modelo criacionista da Terra jovem, mas que aceita um "intervalo passivo" antes da semana da Criação literal descrita em Gênesis, e que já vem sendo discutido e aceito há décadas em outros países. Achei válido, de igual modo, inseri-lo nas discussões sobre as nossas origens aqui no Brasil. Mas é válido frisar que essa é uma área em que ainda são necessários mais estudos.
(Everton Alves)
Referências:
[1]
Editores. Antes da semana da criação: vida em outros planetas do sistema solar?
Revista Criacionista 2003; 32(69):18-23.
[2]
Roth AA. Alternativas entre a Criação e a Evolução. Capítulo 21, pp.328-41. In: Roth AA. Origens.
2. Ed. Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2016.
[3]
Sanghoon J. Interpretations of Genesis 1:1. Journal of Asia Adventist Seminary 2011; 14(1): 1-14.
[4] Coffin HG. Origin by
Design. Hagerstown, MD: Review and Herald, 1983, 292–293.
[5]
Widmer M. Older than creation week? Adventist Review 1992; 169(4):454-62.
[6] Davidson RM. The Biblical
Account of Origins. Journal of the Adventist Theological Society
2003; 14(1):4-43.
[7] Davidson RM. In the
Beginning: How to Interpret Genesis 1. Dialogue 1994; 6(3):9-12.
[8] Terreros MT. What
is an Adventist? Someone Who Upholds Creation. Journal of the Adventist
Theological Society 1996; 7(2):147–149.
[9]
Moskala J. Interpretation of Bereʼšît in the context of Genesis 1:1-3. Andrews
University Seminary Studies 2011; 49(1):33-44.
[10] Aguilar
R. Os Céus, o Intervalo e a Semana da Criação. Parousia. 2010; 9(1):7-18.
[11]
Brent Shakespeare. Esboço das teorias propostas para Gênesis 1:1-2. Advindicate
(14/03/2013). Disponível em: http://advindicate.com/articles/2996
[12]
Glauber Araújo. A Idade da Terra. Revista Adventista. Abril de 2016, pp. 20-23.
[13] Davidson RM. The Genesis
account of origins. In: Klingbeil G. (Ed.). He spoke and it was: divine
creation in the Old Testament. Oshawa: Pacific Press Publishing
Association, 2015.
[14]
Lütz E. O criacionismo e a grande explosão inicial. Revista Criacionista 2003;
32(69):5-17.