sexta-feira, agosto 29, 2008

Galileu tenta reconstruir Jesus (do jeito dela)

Tava demorando... Volta e meia, como os leitores deste blog bem sabem, as ditas revistas de divulgação científica populares do nosso país se aventuram por um terreno que não lhes pertence e dão lá seus escorregões. No afã de produzir capas vendedoras, não passa um ano sem que se aproveitem da pessoa de Jesus ou do cristianismo para produzir matérias tremendamente especulativas e tendenciosas.

Em sua edição de setembro, a revista Galileu trouxe como matéria principal a reportagem “CSI de Jesus”. Desta vez, foram mais amenos do que quando publicaram a matéria “Distorceram as palavras de Jesus?” (a qual comentei na postagem Galileu distorce fatos sobre a Bíblia”, mas esse novo texto também tem lá suas incoerências e inverdades.

Logo de cara, a matéria afirma que Jesus “não tem data de nascimento ou morte registrada com segurança... Não deixou nada escrito de próprio punho (há até quem argumente que ele provavelmente era analfabeto). Não restou um único artefato do qual se possa dizer com certeza que pertenceu a ele. Os relatos de seus seguidores, escritos entre duas e seis décadas após a morte na cruz, falam com riqueza de detalhes de um período curtíssimo de sua vida adulta, elencando seus atos e ensinamentos, mas nos deixam no escuro sobre a maior parte de sua infância e adolescência, suas angústias pessoais e seu relacionamento com amigos e familiares”.

A verdade é que, para os que estudam a fundo a vida de Jesus e a cronologia bíblica, a data da morte do Mestre é bem conhecida (confira aqui). Quanto à alegação de que Ele poderia ser analfabeto, basta lembrar que Jesus escreveu com Seu dedo na areia os pecados dos homens que queriam apedrejar a mulher adúltera. Se esse pessoal lesse a Bíblia com mais atenção... Outra coisa: é bom lembrar que os evangelhos não são a biografia completa de Jesus (João mesmo admite isso no fim do seu evangelho [cf. João 21:25]). Eles tratam do que é essencial à salvação de todo aquele que aceita Jesus, portanto, focalizam o nascimento sobrenatural, o ministério, a morte e a ressurreição de Cristo.

A matéria de Galileu prossegue: “O chamado Jesus histórico é uma figura humilde, que coloca sua mensagem – o anúncio da chegada do Reino de Deus – acima de qualquer preocupação com sua própria importância. Não se comporta como uma entidade superpoderosa ou onisciente. E coloca em primeiro lugar a história e o destino do povo de Israel, ao qual pertence. É um Jesus que pode ajudar os cristãos a repensarem a origem de sua própria fé – mas dificilmente é uma ameaça a ela, a menos que se acredite que todo versículo dos Evangelhos é verdade literal, como se fosse um filme do que aconteceu no ano 30 d.C.”

Jesus Se tornou humilde, sim, para alcançar os humildes. Velou Sua divindade para andar com os pecadores e oferecer-lhes a salvação. Com isso, revelou o caráter misericordioso do Deus todo-poderoso. A afirmação de que os evangelhos não se tratam de “verdade literal” fica por conta da Galileu, que, no entanto, não pode provar isso.

Um dos principais entrevistados na matéria de Galileu é (pra variar) André Leonardo Chevitarese, historiador da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Chevitarese, figura sempre presente nesse tipo de reportagem (será que é porque diz o que esse tipo de mídia quer ouvir?), afirma: “Em todo o mundo romano, o costume era abandonar o cadáver na cruz, para ser comido por abutres ou cães.” Ele também diz ser suspeita a figura de José de Arimatéia, judeu rico e simpatizante de Jesus que teria obtido Seu corpo e organizado o sepultamento, segundo os Evangelhos. “Camponeses como os seguidores de Jesus não teriam como se dirigir a Pilatos para exigir o corpo. Assim, os evangelistas têm o problema de explicar o sepultamento de Jesus e usam a figura de Arimatéia, que praticamente cai de pára-quedas na narrativa”, diz o historiador, que não explica o fato de que seria muito fácil para os judeus da época e mesmo para Pilatos contradizerem o relato dos discípulos, caso Arimatéia fosse mesmo um mito. Os evangelistas teriam armado uma armadilha para si mesmos e o cristianismo seria facilmente desmentido em sua origem. Mas não foi o que aconteceu porque ninguém pôde desmentir o relato histórico das testemunhas oculares de Jesus.

Aspectos positivos da reportagem

Como disse no início, essa reportagem é um tanto mais amena que outras publicadas pela Galileu e tem aspectos positivos, como a divulgação do registro de um crucificado judeu que teve um sepultamento digno – Yehohanan (João), filho de Hagakol, cujo ossuário foi descoberto por arqueólogos israelenses em 1968 (detalhe: o osso do calcanhar de Yehohanan ainda continha o cravo usado para pregá-lo na cruz). Essa descoberta mostra que era perfeitamente possível que Jesus também tivesse um sepultamento digno, apesar de Sua origem humilde e da morte humilhante na cruz.

Outra admissão interessante, nem sempre vista nesse tipo de reportagem: “Viciados em teorias da conspiração adoram a idéia: Jesus nunca teria existido. As histórias sobre sua vida, morte e ressurreição seriam mera colagem de mitos egípcios e babilônicos, com pitadas do Antigo Testamento para dar um saborzinho judaico. Na prática, Cristo não seria mais real do que Osíris ou Baal, deuses mitológicos que também morreram e ressuscitaram. No entanto, para a esmagadora maioria dos estudiosos, sejam eles homens de fé ou ateus, a tese não passa de bobagem. A figura de Jesus pode até ter ‘atraído’ elementos de mitos antigos para sua história, mas temos uma quantidade razoável de informações historicamente confiáveis, englobando pistas de fontes cristãs, judaicas e pagãs.

“Começamos, no Novo Testamento, com as cartas de São Paulo, escritas entre 20 e 30 anos após a crucificação do pregador de Nazaré. Cerca de 40 anos depois da morte de Jesus, surge o Evangelho de Marcos, o mais antigo da Bíblia; antes que o século 1 terminasse, os demais Evangelhos alcançaram a forma que conhecemos hoje. A distância temporal, em todos esses casos, é mais ou menos a mesma que separava o historiador Heródoto da época da guerra entre gregos e persas, que aconteceu entre 490 a.C. e 480 a.C. – e ninguém sai por aí dizendo que Heródoto inventou Leônidas, o rei casca-grossa de Esparta.

“Outra fonte crucial é Flávio Josefo, autor de Antiguidades Judaicas, também do século 1. O texto sofreu interferências de copistas cristãos, mas é possível determinar sua forma original, bastante neutra: Jesus seria um ‘mestre’, responsável por ‘feitos extraordinários’, crucificado a mando de Pilatos, cujos seguidores ainda existiam, apesar disso. Duas décadas depois, o historiador romano Tácito conta a mesma história básica, precisando que Jesus tinha morrido na época de Pilatos e do imperador Tibério (duas referências que batem com o Novo Testamento). Esses dados mostram duas coisas: a historicidade de Jesus e também sua relativa desimportância diante das autoridades romanas e judaicas, como um profeta marginal num canto remoto e pobre do Império Romano.”

A matéria cita também John P. Meier, professor da Universidade Notre Dame (EUA) e autor série de livros $sobre o Jesus histórico. Méier diz que Jesus resume e mistura o espiritual, o social e o político na frase-chave de Seu anúncio profético: o “Reino de Deus”. “[Jesus] não estava pregando a reforma do mundo; estava pregando o fim do mundo”, escreve o autor.

Outra escorregada

A certa altura, o texto da Galileu afirma que “é bem mais complicado afirmar se, durante sua vida terrena, Cristo considerava ser Deus encarnado, como defende o dogma cristão, ou mesmo se ele tinha consciência plena de que sua morte na cruz serviria para redimir a humanidade. ... Como judeu, seria impensável para Jesus se colocar publicamente como igual a Deus, afirma Luiz Felipe Ribeiro.”

De fato, seria “impensável”, tanto é que, quando Jesus afirma ser o “Eu Sou” (cf. Êxodo 3:14), os judeus tentam apedrejá-lo por blasfêmia (cf. João 8:56-59). Em diversas ocasiões Jesus deixou claro ou deu a entender que era divino. Por exemplo: “Eu e o Pai somos um” (João 10:30); “Glorifica-Me, ó Pai, contigo mesmo, com a glória que Eu tive junto de Ti, antes que houvesse mundo” (João 17:5). Ele também perdoava pecados, um atributo divino, segundo a Bíblia. Se isso não é afirmação de divindade, o que é?

Apócrifos: muito barulho por nada

A reportagem termina com alguns comentários interessantes sobre textos que a própria mídia já usou muito para vender e especular: os apócrifos. “Para especialistas, esses escritos perdem importância quando se constata que eles tiveram como base os Evangelhos canônicos e seguiram o gnosticismo. ... Há pesquisadores que vasculham esses livros, muitos dos quais em estado fragmentário, em busca de informações valiosas que não teriam sido preservadas (ou teriam sido deliberadamente varridas para debaixo do tapete) pelos evangelistas oficiais. O esforço vale a pena? O mais provável é que não. ... O argumento de Meier é simples: é praticamente impossível demonstrar que os evangelhos apócrifos mais populares entre os historiadores, como o de Tomás e o de Pedro, não tenham, na verdade, usado como base os Evangelhos canônicos, os bons e velhos Mateus, Marcos, Lucas e João. Estruturas literárias básicas, como a ordem dos ditos de Jesus, parecem seguir de perto os textos canônicos. Além disso, a datação dos apócrifos aponta para uma composição décadas ou até séculos depois dos Evangelhos oficiais. E há alguns detalhes teológicos suspeitos nas narrativas apócrifas: muitos deles seguem o chamado gnosticismo, uma vertente esotérica do cristianismo primitivo que considerava o mundo material uma esfera corrompida e naturalmente ruim da existência e pregava o acesso a um conhecimento secreto para se libertar dele. A importância do apóstolo Tomé ou de Maria Madalena nos textos gnósticos provavelmente não tem a ver com o papel histórico desses personagens, mas com o uso deles como contraponto aos sucessores de apóstolos como Pedro e Paulo, principais líderes das comunidades cristãs após a morte de Jesus.”

CSI (sigla usada no título da matéria da Galileu), em inglês, significa Crime Scene Investigation. Creio que o maior “crime” da mídia tem sido o de não reconhecer – embora de vez em quando esbarrem nos fatos – que Jesus foi mais do que um simples judeu marginal: Ele é o Salvador do mundo, que mudou a História e quer fazer mais do que isso – quer mudar o coração das pessoas com Sua mensagem de esperança.

Michelson Borges

Leia também: “Deus consciente ou mero sábio?”