Em 2007, um grupo de estudantes de jornalismo do Unasp (Centro Universitário Adventista de São Paulo) decidiu levar a sério seu trabalho de conclusão de curso. Impressionados com as histórias terríveis do genocídio de Ruanda, mas sem medo do que iriam encontrar, partiram para o pequeno país da África central que tenta se reconstruir 15 anos após uma das maiores matanças do século 20. Lá, entrevistaram sobreviventes, visitaram locais de massacres e conversaram com autoridades, ongueiros e especialistas. O resultado é um belíssimo documentário que recebi num DVD chamado “Memórias Feridas, o renascer de uma nação”. São 50 minutos de entrevistas caprichadas, técnica apurada e uma narrativa histórica muito correta. Quem assina o trabalho são os estudantes Joelmir Mello, Larissa Jansson e Paulo Mondego.
Ruanda é um país minúsculo, de lindas colinas verdes e uma impressionante história de superação. Há uma década era um país arruinado. Hoje, é um dos Estados africanos mais organizados, com crianças indo à escola, estradas bem cuidadas, respeito ao cinto de segurança e clínicas surgindo em todo lugar. Se há uma crítica a ser feita é à falta de liberdade da nação, governada como se fosse uma escola militar pelo presidente Paul Kagame. Mas Kagame comporta-se como um déspota benigno: não há tortura nem desaparecimento de adversários políticos. Talvez a maior surpresa seja a segurança. Em Ruanda, caminha-se tranquilamente na rua durante a noite.
Por email, conversei com Larissa e Paulo. Ele, aliás, deu uma boa definição sobre os ruandeses: é um povo que fala com os olhos. É verdade. Há dezenas de expressões com os olhos, boca e sobrancelhas que sempre querem dizer alguma coisa. Custa até um forasteiro se acostumar.
Se alguém se interessar em comprar o DVD, é só entrar em contato com Larissa no tel. (47) 9965-6627 ou email larissa.jansson@uol.com.br
Quantas pessoas foram para Ruanda? Quanto tempo vocês passaram lá?
Larissa: Ficamos entre 31 de julho e 15 de agosto de 2007 – 16 dias em Ruanda. Fomos eu, Joelmir Melo, Paulo Mondego e o cinegrafista Jean Gabriel, que já foi nosso professor em períodos anteriores.
Foram para onde?
Larissa: Nosso roteiro incluiu a capital Kigali, onde fizemos a maior parte das entrevistas. Lá visitamos o Memorial de Kigali, a ONG Hope After Rape e as “gacacas” (tribunais tradicionais para julgar criminosos do genocídio) que são mostradas no documentário. Entrevistamos as autoridades políticas – entre elas o ministro da Cultura Joseph Habineza – e a antropóloga americana Kristin Doughty. Visitamos, na Província Sul, o memorial de Murambi, que era uma antiga escola técnica protegida pelos franceses. Milhares de tutsis (etnia que foi a maior vítima do genocídio) tentaram se proteger na escola, mas os franceses os abandonaram nas mãos dos hutus (etnia rival, que estava no poder).
Paulo: A ONG Hope After Rape trata de mulheres estupradas durante ou após o genocídio. Ali, elas aprendem atividades manuais e convivem com muitas dificuldades de moradia, higiene e saúde. Muitas delas possuem o vírus HIV. A gagaca é o sistema judiciário com origem no período pre-colonial que foi resgatado após o genocídio para julgar e condenar os criminosos do massacre. Com exceção dos mandantes que foram e ainda estão sendo julgados pelos tribunais internacionais.
Como surgiu a ideia desse documentário?
Larissa: Um dos nossos orientadores, o jornalista Ruben Holdorf, deu a ideia. Contudo, a ideia original era produzir um material contendo entrevistas com brasileiros que estiveram em Ruanda antes, durante e depois do genocídio e contar como foi essa experiência. Mas encontramos dificuldades, daí mudamos a pauta para irmos visitar a própria Ruanda.
Paulo: Há que se considerar que o grupo tinha grande interesse em fazer um trabalho que extrapolasse os limites do óbvio. Depois da orientação do professor Ruben, listamos vários temas que considerávamos desafiadores e tudo que acrescentasse algo novo. Ruanda venceu em ineditismo e dificuldade financeira, e depois de muitas tentativas frustradas de patrocínio, a Larissa abdicou de seu veículo para investir nesse sonho.
Quem patrocinou o projeto?
Larissa: Tivemos muita dificuldade para conseguir dinheiro. Começamos a procurar por patrocínio cerca de um ano antes e até uns três meses antes da viagem não tínhamos conseguido. Daí vendi meu carro, não teve jeito!
Por que falar justamente sobre o genocídio de Ruanda?
Larissa: Acho que embora essa tragédia tenha acontecido há quinze anos, é sempre um tema atual. Penso que o que aconteceu lá é um grande exemplo do que podemos aprender. Quando adotamos uma atitude preconceituosa e discriminatória com uma pessoa ou grupo, nem lembramos do que esse tipo de atitude já foi capaz de causar. Olhar para a história e aprender com tragédias como o Holocausto, Ruanda, Camboja e Darfur é o que cada um de nós precisa fazer para sermos pessoas melhores, mais tolerantes, capazes de ver o ser humano independentemente da etnia, classe social, sexo ou nacionalidade. Precisamos entender melhor o valor da vida humana.
Paulo: Particularmente a história de Ruanda não era nova pra mim, uma vez que eu tinha uma amiga que trabalhou como voluntária em uma ONG em Kigali. Depois disso assisti a uma palestra de outra voluntária que acabara de retornar de sua experiência também como voluntária da mesma ONG. A partir daí comecei a pesquisar ainda em 2006 sobre a história daquele povo que fala com os olhos. Quando finalmente formamos o grupo para realizar o trabalho eu logo citei Ruanda como possibilidade, a aceitação foi geral e depois com a orientação do professor ficou mais clara essa possibilidade. No entanto, creio que o que nos levou a Ruanda foi um desejo muito grande de ver de perto aquilo que antes era visto só em livros de histórias ou filmes de Hollywood. Fomos com tanta intensidade que cada um absorveu de maneira muito própria uma das mazelas da humanidade, a guerra. E depois de terminar o trabalho entendi por que fui lá. Um dos nossos entrevistados disse no final: “Deus nos abençoou, nos deu um trabalho, estamos vivos.” Fomos a Ruanda por causa dessa gente que está viva lá, que carrega história de superação e dor, que conhece muito bem dois extremos do ser humano, a crueldade e o perdão.
Como vocês se sentiram fazendo as entrevistas?
Paulo: Em muitos momentos eu me perguntava o porquê. Qual a razão de tantas mortes em poucos dias. Por que tanto ódio. Depois de ouvir a mesma história em diversas perspectivas, entendi que agora o porquê não era mais importante, mas sim o como superar. Eles vivem em busca da superação, o governo luta por isso, as pessoas almejam isso, todos esperam e sabem a importância da paz, pois só quem viu a morte de frente sabe o quanto vale a vida. Tentei a todo momento analisar os fatos como um cientista social, mas depois de ver fotos e corpos de gente assassinada pelo ódio passei a entender que o homem é capaz de tudo, inclusive de perdoar o imperdoável.
Larissa: Para mim, em particular, foi difícil. Foi uma carga emocional tremenda. Chorei durante a visita ao Memorial de Kigali. Foi doloroso, difícil separar o pessoal do profissional. Estar ali, falando com sobreviventes de algo tão chocante, cruel e de consequências tão profundas foi algo que senti – e acho que ainda sinto, mesmo dois anos depois – profundamente. E ver aquelas pessoas de repente se abrindo, falando de algo tão doloroso para elas, ver que elas confiaram em nós daquela forma foi tocante e gratificante. Por melhor que tivessem sido nossas fontes políticas e contato com os melhores especialistas, por mais confiáveis que pudessem ser as pesquisas que fizemos, esse trabalho não teria sido tão fantástico como foi sem a contribuição daquelas pessoas. São delas as memórias feridas, são elas a nação que vem renascendo todos os dias, desde 1994.
(Pé na África)
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