A imagem que você vê ao lado é a mais nítida representação já obtida para a distribuição de cromossomos dentro de um núcleo celular. Seus autores a compararam com um nenúfar, a flor aquática imortalizada nos quadros do impressionista Claude Monet. Pode não ser tão bonita quanto as dele, mas tem lá sua beleza. Para admirar a flor do genoma plenamente, é preciso contemplá-la com os olhos do intelecto - armados com os binóculos da história da ciência. Alguns conceitos e descrições também ajudarão a entendê-la. Os genes se compõem de DNA, uma substância em que a sequência de componentes (“letras”) especifica o conteúdo de cada gene, ou seja, que proteínas a célula pode produzir com base neles. Genoma é a coleção de genes de um indivíduo, que varia muito entre exemplares da mesma espécie. O genoma humano, por exemplo, apresenta menos de 1% de variação entre duas pessoas quaisquer.
Os genes se enfileiram nos cromossomos, quase sempre desenhados na forma de X ou Y, como bastonetes listrados unidos por uma espécie de cintura (os centrômeros). Mas essa é uma imagem enganosa, porque os cromossomos só assumem essa conformação durante uma curta fase da divisão celular. São poucos minutos, contra muitas horas em que os bastonetes desaparecem.
Nesse período, os cromossomos ficam num estado menos compactado. A fita de DNA, que pode ter metros de comprimento se esticada, em lugar de se enrolar sucessivas vezes sobre si mesma para formar os bastonetes, fica “solta” dentro do núcleo. Quer dizer, mais ou menos solta.
A imagem de uma fita desenrolável combina bem com uma representação ultrapassada do genoma e do DNA - eles seriam meros dispositivos de armazenamento de uma sequência de letras. Como nos computadores antigos, que usavam rolos de fita para gravar bits de dados. Hoje se sabe que a informação biológica não fica toda no DNA, mas se distribui por vários outros sistemas.
Um determinado gene, por exemplo, pode ficar inacessível para a célula se o trecho correspondente do cromossomo não se desenrolar, de modo que as letras que o compõem possam ser “lidas”. O rolo é controlado por um sistema de proteínas cuja mecânica não se encontra sob influência do DNA - é o que se chama de “epigenética”.
Tampouco é aleatória a distribuição dos cromossomos dentro da célula, mesmo na fase mais relaxada. O núcleo celular, onde se alojam os cromossomos, não é uma bolsa amorfa. Tem uma arquitetura, com recintos próprios para cada um deles. Supõe-se que não seja por acaso, e que essa espacialização esteja associada com determinadas funções, mas seu estudo mal começa a engatinhar.
Essa estrutura doméstica e misteriosa do núcleo é o que se pode vislumbrar na “flor” da imagem mais acima. Cada filamento colorido representa um dos 16 cromossomos de células de levedura Saccharomyces cerevisiae (micro-organismo do fermento).
Todos estão ancorados pelo centrômero (a “cintura” do X ou Y), no centro da imagem. Para ele convergem todas as cores, como as pétalas de uma flor se reúnem no pedúnculo. A exceção é o cromossomo de número 12, que se projeta para fora da flor em direção ao nucléolo, uma estrutura específica do núcleo, sem que se atine ainda por quê.
Nem é o caso de tentar descrever o método usado pela equipe de William S. Noble, da Universidade de Washington (Costa Oeste dos EUA), para reconstituir essa organização floral. Complicado demais. Basta dizer que mapearam mais de 2 milhões de interações entre partes de cromossomos. O resultado foi publicado em maio em um artigo pelo periódico científico Nature.
Cabe assinalar que essa é a flor característica de uma espécie particular de levedura. Outros organismos, com genomas de sequências e arranjos cromossômicos diversos, engendrarão estruturas muito diferentes. Quando essas estruturas estiverem todas decifradas, poderão ser comparadas em busca de princípios gerais de organização e relações com processos fisiológicos importantes - um pouco como se faz com os espécimes de um herbário.
Esta coluna tomou conhecimento do belo trabalho graças a uma reportagem na revista The Scientist. Cristina Luiggi entrevistou o biólogo Tom Misteli, do Instituto Nacional do Câncer dos EUA, sobre a importância da flor de Washington e de visualizar a estrutura tridimensional do DNA dentro do núcleo. Ele respondeu:
“É uma propriedade fundamental do genoma se organizar, dobrar-se de alguma maneira dentro do núcleo. Agora está ficando claro que há mais coisas no genoma que a sua sequência. Temos de descrever como o genoma se organiza, desvendar os mecanismos envolvidos na organização, e aí descobrir como a organização contribui para a função. Estamos ainda desenvolvendo as ferramentas para realmente enfrentar essas questões de modo sistemático.”
A metáfora dos genes como códigos digitais a desvendar para entender e dominar a saúde e a doença foi base da retórica que garantiu os 2 ou 3 bilhões de dólares do Projeto Genoma Humano, completado em 2001. Dez anos depois, ele ainda não produziu os frutos então prometidos, como a cura do câncer. Para colhê-los, se é que de fato amadurecerão, será preciso desmontar antes os espinhos da epigenética e a flor da arquitetura nuclear.
(Marcelo Leite, Folha)
Nota: Grifei as palavras “organiza”, “organizar” e “organizado” por uma simples razão: chamar atenção para o fato de que na natureza, segundo uma das leis da Termodinâmica, os sistemas tendem à desordem e não o contrário. Que história é essa de que é uma “propriedade fundamental do genoma se organizar”. Como essa propriedade simplesmente surgiu numa natureza caótica primordial? Como explicar essa capacidade genômica de armazenar informação de maneira ultracompacta? Os sistemas celulares são tão complexos que mesmo o ser humano dotado de grande inteligência e munido de equipamentos sofisticados e muito dinheiro ainda não conseguiu decifrar todos os seus mistérios. E querem que creiamos que o acaso cego fez surgir tudo isso... Não dá![MB]