Metáfora da vida de pecado |
Há
alguns anos, quando do lançamento do filme “O Leitor”, escrevi nesta coluna um
microconto que se chamava “O Quarto”. Nesse microconto eu descrevia uma
situação em que um homem escondia judias (mãe e filhas) em sua casa durante a
Segunda Guerra, e sua família (mulher, filhos e sogra) acabam por entregá-los
(marido e judias) aos nazistas, por medo, desprezo e interesses comuns como “ter
uma vida tranquila” durante a ocupação. Ao final da invasão, sua mesma família
se juntava a outros cidadãos “honestos” na humilhação pública de mulheres
colaboracionistas. Eu sustentava que hoje em dia faríamos a mesma coisa. Na
época, recebi dezenas de e-mails furiosos com minha descrença na capacidade
ética da humanidade de aprender com os erros. Alguns “psicanalistas de esquerda”
(um caso a ser estudado em consultório), em especial, me odiaram.
De
fato, não acredito que a humanidade aprenda muito em determinadas áreas, entre
elas, romper a cegueira com a própria falha moral: dificilmente somos capazes
de ver as coisas de modo claro quando está em jogo nossa autoestima e nossos
interesses cotidianos.
E
quando (como no caso de “psicanalistas de esquerda”) se afirma que existe uma “clínica
política” para questões como essas, o ridículo da coisa é maior ainda. Como
alguém pode ser psicanalista e crer numa bobagem como “a verdadeira clínica é a
política”?
O
engano quanto à própria disposição moral em enfrentar riscos, como o descrito
por mim naquele microconto (o caso de judeus x nazistas é fácil citar porque é
um clichê histórico, outros casos podem ser pensados em situações semelhantes),
não se atém apenas ao fato de que não judeus esconderem judeus implicava riscos
para a família como um todo.
A
primeira questão que muitos se fazem sobre aquela época é: Por que homens e
mulheres escolheriam colocar seus filhos em risco para esconder pessoas com as
quais nada tinham a ver? Muitos filhos se sentiam mal amados e preteridos por
conta da atitude dos pais.
Mas
há outra questão que normalmente escapa nesse experimento moral hipotético que
descrevi. Questão mais difícil de ser encarada, porque não toca apenas na
oposição entre coragem e covardia, mas também na minha própria avaliação moral
das vítimas em jogo.
Qual
é essa questão? Simples: os nazistas haviam feito um excelente trabalho de
propaganda ideológica na época (que se somava ao atávico antissemitismo,
existente até hoje, mas travestido de antissionismo, que facilitava o trabalho
dos seus marqueteiros). Esse trabalho consistia em deixar claro para a
população que os judeus eram maus. Eles eram interesseiros, gostavam de deixar
os pobres mais pobres, eram desleais com seus países, só pensavam em si mesmos
e em grana. Enfim, “gente ruim”. E essa propaganda pegou.
Alguma
dúvida que pegou? Não era apenas o medo dos nazistas que fez quase todo mundo
colaborar, era o fato de que a maioria esmagadora das pessoas concordava que os
judeus não eram gente legal. Por isso, os desprezavam. Logo, quando se
perguntar “você seria capaz de esconder judeus durante a guerra?”, você deve
pensar em algum tipo de gente que você considere “gente ruim” no lugar dos “judeus”.
Gente,
talvez, que você concordasse, não com o extermínio em si, mas que não era “gente
legal”, gente que você não convidaria para jantar em casa, ou que queimaria seu
filme caso fossem vistas com você. Candidatos? Fala a verdade...
Pense
bem antes de responder com bravatas morais, porque deve existir alguma
categoria de gente que você despreza. Ideias são baratas. Enfrentar situações
reais é que custa caro.
Sem
acessar essa capacidade humana, demasiado humana, de sentir ódio ou desprezo
por quem você acha que não seja gente legal (e todo mundo acha que algum tipo
de gente merece algum tipo de desprezo), você não entende o que estava em jogo
na defesa dos judeus naquela época. Era correr riscos por alguém que você
achava que não merecia todo esse investimento.
No
microconto em questão, elas ficavam escondidas num quarto. A vida moral íntima
é sempre um quarto escuro.
(Luis Felipe Pondé,
Folha.com)
Comentário do amigo
Marco Dourado: Este artigo exterminador escrito pelo
Pondé toca numa ferida exposta há mais de 30 séculos pelos oráculos divinos: o homem
não merece nada e não vale nada - a menos, é claro, que o Altíssimo o recrie a
partir do zero.
“Enganoso
é o coração, mais do que todas as coisas, e perverso; quem o poderá conhecer?
Eu, o Senhor, esquadrinho a mente, Eu provo o coração; e isso para dar a cada
um segundo os seus caminhos e segundo o fruto das suas ações.” Jeremias 17:9-10
“Você
pode pensar que tudo o que faz é certo, mas o Senhor julga as suas intenções.”
Provérbios 12:2
“De
fato, tenho sido mau desde que nasci; tenho sido pecador desde o dia em que fui
concebido.” Salmo 51:5