terça-feira, dezembro 09, 2014

Por que vivemos como incrédulos?

Como se Ele não existisse
Você já se perguntou por que tantas vezes parece tão difícil para você ou outras pessoas trazer o Cristo vivo para o cotidiano fora da igreja? Um dos principais motivos disso é que a maioria dos cristãos vive tal qual o incrédulo: precisando dar o que Francis Schaeffer denomina de “salto místico”, a fim de cruzar a “linha do desespero”. Segundo Schaeffer, o homem secularizado vive em um universo de dois pavimentos. O primeiro pavimento é o mundo sem Deus. Nele, a vida é absurda, pois, destituída de Deus, é também inteiramente destituída do tripé: significado, valor e propósito. Com o intuito de livrar-se da completa desesperança natural do mundo em que vive, o homem secularizado precisa dar “saltos de fé” para o segundo pavimento, a fim de encontrar o mencionado tripé, sem o qual a vida é insuportável. Conforme argumenta o referido filósofo e apologeta cristão, sentido, valor e propósito são logicamente impossíveis num mundo em que Deus inexiste, mas o incrédulo precisa dar esse salto ao pavimento superior, praticando a incoerência e o autoengano, a fim de tornar sua existência viável na opacidade do mundo sem Deus.[1] Como assumiu o filósofo ateu Nietzsche, um mundo em que Deus está morto inevitavelmente cai no mais completo niilismo e desamparo.[2]

O universo de dois pavimentos pode ser usado não apenas para falar dos incrédulos confessos, mas também da maioria dos cristãos. Saltos místicos para cruzar a linha do desespero também são dados pelo cristão atual com assustadora frequência. Assim, o crente vai à igreja, “sente a presença de Deus” nos hinos, na oração, no sermão, e, nesse momento, tudo parece ter sentido, valor e propósito. Todavia, quando sai desse mundo e volta para o “mundo lá fora” (no qual, necessariamente, passamos a esmagadora maioria do tempo), vive na insalubridade do mundo sem Deus, pois não consegue enxergar conexão entre a fé e esferas como trabalho, entretenimento, política, economia... Precisando, portanto, dar esse “salto” a cada reunião da igreja ou momento de devoção particular.

Tal salto, porém, deveria ser prerrogativa exclusiva do incrédulo. É ele quem precisa saltar para o pavimento de cima a fim de compensar o vazio, que é a implicação lógica do mundo em que vive. O cristão não precisaria partir para esse salto caso não estivesse vivendo nesse mesmo mundo do incrédulo. Não precisaria partir para esse salto caso já vivesse em um mundo repleto de significado, valor e propósito ao reconhecer o senhorio de Cristo em todas as áreas da existência (trabalho, entretenimento, ciências, artes, política, etc.). Como o cristão, seguindo o ímpio, expulsou Deus do mundo em que passamos a maior parte da vida – a chamada “vida secular” – e o confinou a prédios religiosos, dias específicos na semana e a uma microética relacionada a vestuário e outros comportamentos, o dia a dia de grande parte dos cristãos é igual ao dos não cristãos. Na igreja, ele canta, ora e é um adorador fervoroso; fora dela, na melhor das hipóteses, é um cidadão gentil, honesto e socialmente aceitável, porém é tão somente um engenheiro, uma dona de casa, um fotógrafo, um estudante, um advogado, um corretor, um pedreiro, um comerciante, um desenvolvedor de softwares ou um recepcionista que não faz ideia de como o senhorio de Cristo pode se manifestar no próprio exercício de sua profissão em si, dos seus hobbies ou de sua cidadania.

Certo dia, um sapateiro chegou a Lutero indagando o que poderia fazer para trabalhar para Deus, ao que lhe respondeu o reformador alemão: “Faça um bom sapato e o venda por um preço justo.” Infelizmente, porém, todas essas coisas são atribuídas ao âmbito secular, e o cristianismo permanece intacto em um cativeiro que os próprios cristãos têm ajudado a construir. Dividimos nossa existência entre “vida espiritual” e “vida secular”, numa dicotomia completamente estranha às Escrituras.

É porque o cristão se esqueceu do conceito bíblico de que o homem é um todo indivisível e que, se ele pertence a Deus, absolutamente tudo o que faz é para Deus, em nome de Deus e na presença de Deus (Êx 31:1-5; At 17:28; 1Co 10:31; Cl 3:17, 22-24), é porque o cristão comprou o discurso grego e iluminista de segmentar a vida em compartimentos herméticos, que ele vive tendo de cruzar a linha do desespero a fim de sair do mundo opaco em que vive juntamente com o incrédulo. Somente numa cosmovisão (ou visão de mundo) em que Cristo é a referência universal é que há sentido nos pontos particulares. Somente com os pontos particulares interligados por um ponto de referência universal é que se desfaz essa ruptura que equipara o cristão moderno ao incrédulo, a ruptura entre a busca subjetiva de sentido, valor e propósito para este mundo e a crença de que, objetivamente, ele não possui sentido, valor e propósito algum.

Hoje li as seguintes palavras: “Hora de desconectar do mundo e conectar [sic] em Deus.” Em pouco tempo, elas geraram, literalmente, milhares de interações nas redes sociais, entre curtidas, compartilhamentos, retweets e comentários (todos positivos). Entendemos a boa vontade de quem concebeu tal frase. Foi uma forma de celebrar o término de mais uma semana e saudar a chegada do sábado; porém, ela pode estar denunciando como costumamos encarar a vida: de forma completamente fragmentada. O estilo de vida cristão é mesmo viver conectado ao mundo durante seis dias e reservar um único dia na semana para se conectar a Deus? A verdadeira espiritualidade possui hora e lugar marcados?

Creio que isso ajuda a explicar por que aquele “brilho nos olhos” por vezes não consegue passar disso. O tal “cristianismo prático” (como se houvesse outro tipo), do qual todos tanto gostamos de falar, torna-se mais uma teoria, pois o ensino de cosmovisão cristã tem sido extremamente incompetente (no mínimo, incipiente). Isso contribui para que vivamos uma religião da sensação. Eu “sinto Deus” quando o pastor fala uma frase impactante no púlpito, meus olhos brilham, mas não consigo enxergar as implicações disso no mundo real.

Precisamos resgatar o ensino de questões como hermenêutica (interpretação bíblica) e apologética (defesa e apresentação racional da fé), mas tudo isso imerso numa firme educação em cosmovisão cristã. Sem ela, por melhor que seja o ensino, o cristão não compreenderá a importância da hermenêutica ou da apologética em seu cotidiano, pois continuará comprando o dualismo platônico, bem como o secularismo iluminista, e, assim, continuará compartimentalizando a própria existência.

Como vivemos numa sociedade da sensação, tudo o que o cristão acha que precisa é sentir algo no culto particular ou congregacional (tradicional ou contemporâneo, cujos participantes geralmente padecem exatamente do mesmo mal. Talvez, um procure “sentir Deus” num solo de guitarra e na atmosfera de modernidade; outro, nos acordes de piano e na liturgia tradicional) – como se o “sentir”, na fé cristã, não estivesse intimamente ligado ao “saber”, e vice-versa. Obviamente, se o indivíduo não sabe ler e estudar a Bíblia, não poderá ter uma cosmovisão cristã. Em contrapartida, sem uma cosmovisão cristã, ele terá sérias dificuldades para compreender de forma apropriada a importância de ler a Bíblia corretamente. E nada disso faz sentido sem a apologética a fim de compreendermos que a fé cristã é (também) racional.

Precisamos aprender e ensinar que o Senhor do espírito é também o Senhor do corpo; que o Senhor da redenção é também o Senhor da criação; que o Senhor do Céu é também o Senhor da Terra. Portanto, não temos o direito de afirmar que aquilo que fazemos na igreja ou em momentos de devoção direta é para Deus e todo o resto é simplesmente nosso trabalho, entretenimento, nossa “vida secular”. Se “nEle vivemos, nos movemos e existimos” (At 17:28), como pode haver algum aspecto de nossa existência, por menor que seja, que não pertença a Cristo? Como afirmou o teólogo holandês Abraham Kuyper: “Não há nenhum milímetro do Universo que Cristo não reivindique dizendo: ‘É Meu.’” Isso é cosmovisão cristã.

Assim, devemos buscar sempre formas mais didáticas de unificar hermenêutica, apologética e cosmovisão, que são áreas interdependentes. (Por isso, acho cada vez mais estranho pretender ensinar a Bíblia e tentar colocar Cristo no centro sem apologética. Em virtude de uma compreensão enviesada, ainda há muito ranço em relação a ela, mas cada dia me surpreende mais a insensatez das pessoas que pretendem ver um reavivamento pregando esse Cristo aleijado, criado à imagem e semelhança de si mesmas.) Pelo que tenho lido na Bíblia e em outros livros, bem como pelo que tenho percebido, na prática, ao trabalhar com as pessoas na igreja, a conclusão inequívoca é que, sem trabalhar as áreas de hermenêutica, apologética e cosmovisão de forma una, torna-se impossível falarmos em centralidade de Cristo e trazê-Lo efetivamente para a vida real; isso continuará sendo mais uma utopia ou frase de efeito. Uma área alimenta a outra. Retire ou minimize uma delas e todo o sistema entra em colapso.

(Vanedja Cândido é graduanda em Filosofia pela UFPB e membro da IASD Funcionários II, João Pessoa, PB)
Referências:
1. Francis Schaeffer, A morte da razão (Viçosa, MG:
Ultimato, 2014). Veja também William Lane Craig, Em guarda: defenda a fé cristã
com razão e precisão (São Paulo: Vida Nova, 2011).
2. Friedrich Nietzsche, “The
Gay Science”, em Walter Kaufmannin (org.), The Portable Nietzsche (Nova York: Viking, 1954).