segunda-feira, novembro 14, 2016

Camille Paglia e a ideologia de gênero

Sociedade doente
“Há todas essas pessoas com ideias estúpidas, que derivam de Michel Foucault (1926-1984), negando a existência dos gêneros. Dizem que o gênero é algo imposto pela sociedade, que não há base biológica para a ideia de gênero. Essas pessoas estão malucas? Elas não sabem que toda e qualquer pessoa que está na face da Terra nasceu do corpo feminino? [...] Eu estou muito preocupada com essa tendência cirúrgica para mudança do corpo. Isso está por toda parte nos EUA. Dizem que a criança nasceu no corpo errado e já começam com hormônios até chegar à intervenção cirúrgica. Se essa ideia estivesse no ar quando eu era jovem, teria me tornado obcecada com isso. Eu teria sido convencida de que essa seria a resposta para todos os meus problemas com a sociedade contemporânea e sua rigidez sexual. E eu teria cometido um engano terrível.

“Transformar o corpo cirurgicamente é uma ilusão. Há um número muito pequeno de pessoas realmente intersexuais. É uma anormalidade congênita. A maioria dos casos não é assim. Intervir no corpo, removendo o pênis ou os seios, é uma ilusão porque todas as células do seu corpo permanecem sendo o que elas sempre foram. Simplesmente não é verdade que você mudou de gênero.

“Eu acredito que é preciso respeitar o desejo das pessoas de transformar seus corpos, seja por motivos cosméticos, médicos ou de gênero. Cada um tem poder sobre o próprio corpo e eu sou uma libertária nesse sentido. Por outro lado, ninguém vai me convencer de que a Chaz Bono, a filha transgênero da atriz Cher, é um homem. Ele precisa tomar uma injeção de hormônios todos os dias para ser o que é, um transgênero, nunca um homem. Cada célula daquele corpo é uma célula feminina.

“As pessoas que olham para esse debate e pensam que estamos caminhando para um futuro progressista estão enganadas. Nós vivemos em um período em que os gêneros são fluidos e ninguém se identifica com os papeis de cada um dos gêneros no passado. Mas a ideia de que isso é um sintoma de saúde social está errada. É o caos.

“Estamos numa fase tardia da cultura, como ocorreu com outras civilizações, em que as definições dos sexos começam a se borrar e a se dissolver e surgem todos os tipos de androginia e de brincadeiras com trocas de papéis entre feminino e masculino. Eu adoro tudo isso, mas acho que não pode ser confundido com um sintoma de saúde e de progresso. Sinto muito. É um sintoma de declínio histórico da nossa cultura. E deveríamos nos preocupar porque isso indica ansiedade e algo errado.

“Eu não noto, a propósito, nenhum avanço no campo das artes. Ninguém está em um período especialmente fértil. Pelo contrário, todos estão obcecados consigo próprios. O ego se tornou um trabalho artístico. As pessoas têm dez conceitos diferentes sobre o que elas são. Acho que a obsessão com gênero e com orientação sexual se tornou uma doença.

“Eu sou ateia, mas acredito no poder da religião e de sua visão do universo. Vivemos essa transição da perspectiva religiosa para essa horrível perspectiva centrada no indivíduo, com o apoio da mídia. Isso não são os anos 60, quando se pregou o poder do indivíduo contra a autoridade, mas a destruição dessa ideia cósmica do lugar de cada um no universo. E isso tudo convergiu para a obsessão por gênero e orientação sexual. Isso virou uma loucura. É o novo narcisismo.”

(Fernanda Mena, “Mulher deve ser maternal e parar de culpar o homem, diz Camille Paglia”, Folha de S. Paulo, 24/4/2015)