Não falar das enchentes a essa altura, ou cota, seria atitude estranha de um colunista. Impossível não abordá-las. O Vale, incomodamente habituado a elas, a cada evento vive novas histórias. A maioria é triste, algumas pitorescas. Numa combinação de estupefação e contrariedade, desde criança vejo a cidade ser tomada por um silêncio peculiar, permeado por sons incomuns como a batida dos remos nas canoas e conversas à distância, inimagináveis em dias normais. Ainda há a histeria dos alarmes e o rodopiar dos helicópteros, ingredientes mais recentes do caos. Algumas tevês e quase todas as rádios substituem a programação por plantões ao vivo. Também emergem os clichês sobre a solidariedade do blumenauense, “inexistente quando a cidade voltar ao normal”, mas isso é lá com os sociólogos.
Este ano tivemos como nunca a participação ágil e eficiente das redes sociais. Com informações preciosas – intercaladas por tiradas espirituosas (“comportas, comportem-se!”), críticas mordazes (contra o governo e em particular à igreja que negou abrigo porque estava sendo decorada para uma festa), “malas” relatando o que estavam comendo (“torradas fresquinhas com geleia e chá de jasmim”) e até piadas de gosto duvidoso (“Blumenau está liquidada”) – o Twitter, principalmente, trouxe solução para muita gente em apuros, divulgando telefones e endereços onde havia água, alimentos, abrigos e serviços imprescindíveis para o momento.
Mas quero relatar uma situação inesperada e gratificante. Participei da limpeza e reorganização da Setting Psicoterapias, cujas instalações também foram solenemente ignoradas pelo lamaçal. O clima ainda era aquele de não saber por onde começar, quando, de repente, um pelotão de jovens voluntários uniformizados, surgidos do nada, enviados pelo simples ato de ajudar a quem precisa, uniu-se ao grupo. Com rodos, vassouras, lava a jato e músculos, sem muito perguntar e movidos por uma determinação férrea, puseram mãos à obra, da manhã ao anoitecer, até a aparência da clínica devolver a seus profissionais a esperança de um breve recomeço.
Adra – [Agência Adventista de] Desenvolvimento de Recursos Assistenciais e Everest – Clube de Desbravadores, eram estas as siglas dos coletes envergados pela valente rapaziada. Leio no Wikipedia: Desbravadores e Aventureiros. Um departamento de jovens da Igreja Adventista do Sétimo Dia, semelhante aos escoteiros. Desenvolvem talentos, habilidades, percepções e o gosto pela natureza. Estão presentes em mais de 160 países, com 90 mil sedes e mais de dois milhões de participantes desde 1950. Mesmo sendo um programa oficial da Igreja Adventista do Sétimo Dia, meninos e meninas de qualquer fé religiosa são convidados a participar.
Ao anoitecer, deixaram discretamente o local. Os comentários sobre o advento da preciosa ajuda refluem constantemente e a clínica, mesmo com a precariedade natural à situação, já voltou a atender os pacientes. No Santa da terça: “40 anos de espera. Sistema de contenção de cheias do Vale do Itajaí esbarra há quatro décadas na falta de verbas e coragem política. Estado previa cinco barragens que nunca saíram do papel.” Nossos representantes em Brasília dispensam apresentações: arrogantes em seus locais, coitadinhos lá. As catástrofes são recorrentes, o que pouco se lhes dá. De colarinhos impecáveis e fichas sujas, seguem fustigando a paciência nacional, como a da jornalista Adriana Vasconcelos (O Globo) em seu Twitter: “É mole? A promotora Deborah Guerner, acusada de envolvimento no mensalão do DEM, quer a restituição de R$ 280 mil confiscados na Operação...”
Vê aí, politicalha, a coisa está transbordando. Quando acontecer, não haverá voluntário, desbravador, aventureiro nem escoteiro pra secar a pele de vocês.
(Cao Hering, Jornal de Santa Catarina)