quarta-feira, novembro 16, 2011

A dura vida de uma cristã “fundamentalista”

Ellen havia acabado de chegar ao aeroporto de Congonhas, na capital paulista. Cansada e com vontade de chegar logo em casa, entrou no táxi e pediu ao motorista que a levasse até a Estação São Judas, onde pegaria o metrô que a deixaria no terminal Tietê. De lá, encararia mais de uma hora de ônibus até Jacareí, onde mora e trabalha como jornalista da TV Novo Tempo. Infelizmente, o que ela temia aconteceu: o trânsito estava completamente parado naquele fim de tarde. Pelo visto, o bom banho quente e o descanso merecido teriam que esperar um pouco mais.

– Não tem jeito – o motorista quebra o silêncio, falando com ar de indignação. – Hora do pico, com chuva, aqui em São Paulo, quase sempre é assim: a gente não consegue andar. Isto está cada vez mais caótico.

– Tudo neste mundo está ficando caótico. Mas isso não deveria ser surpresa – Ellen diz, enquanto vasculha a bolsa em busca do bilhete do metrô.

– Viagem a trabalho? – pergunta o taxista.

– Sim, sou jornalista.

– Ah, então é por isso que disse não se surpreender com o caos. Qualquer pessoa bem informada sabe que as coisas vão de mal a pior nas grandes cidades. E não é apenas com o trânsito. Tem a violência, as injustiças, a miséria...

– Sim, basta estar “antenado” para saber dessas coisas. Mas, quando disse que não me surpreendo com o caos, não me referi apenas às informações recentes a respeito disso. Quis dizer que essas informações já estavam disponíveis há muito tempo. Na verdade, muitas pessoas que viveram antes de nós, antes deste caos todo, já sabiam que o mundo chegaria a este ponto.

O taxista olha para Ellen pelo retrovisor com ar de estranhamento.

– Como assim? Você, por acaso, é fã de Nostradamus? – ele esboça um sorrisinho.

– Pelo contrário – diz Ellen. – Não creio em falsos profetas. Creio nos verdadeiros profetas que nos deixaram mensagens edificantes e anunciaram o futuro com precisão.

– Ah, sei. Pela sua conversa, imagino que você seja “crente”.

– Isso mesmo, sou cristã. E você, no que crê?

– Sou ateu. E agora imagino que você vai querer me convencer de que Deus existe e de que sua fé na Bíblia é a única verdadeira, e que se eu não aceitar tudo isso vou queimar no fogo do inferno. Depois, você vai me convidar para ir à sua igreja participar de uma sessão de milagres e dar dez por cento do meu suado dinheiro para o seu pastor – diz o motorista carregando cada palavra com sarcasmo.

Assim que terminou de falar, José (esse é o nome dele) se arrependeu da rudeza de suas palavras. Ellen não sabia, mas experiências passadas o deixaram meio traumatizado com o cristianismo – pelo menos com o cristianismo que ele conhecia.

– Perdoe-me. Não quis ser indelicado... – ele vira a cabeça na direção de Ellen e depois novamente para a estrada.

– Tudo bem. Compreendo sua indignação. Também conheço alguns cristãos que não merecem ostentar esse nome. O ex-ateu C. S. Lewis escreveu, certa vez: “De todos os homens maus, os homens maus religiosos são os piores.” E eu concordo com ele. Imagino que cristãos, para você, são pessoas com pouca cultura, seguidores cegos de líderes com moral duvidosa, que ficam gritando nas igrejas e barganhando com Deus a fim de enriquecer. Claro que há muitas pessoas sinceras em todas as igrejas, mas a Bíblia apresenta uma imagem bem diferente do cristianismo.

– Verdade? – pergunta, com falso interesse e na intenção de se redimir das agressões iniciais.

– Sim. Em primeiro lugar, o apóstolo Paulo, que era um intelectual, afirma que o culto deve ser racional (Rm 12:1), e Pedro diz que os cristãos devem sempre estar preparados para responder “com mansidão e temor” a todo aquele que lhes pedir a razão da esperança que eles têm (1Pe 3:15).

– Sinceramente, não consigo ver razão para o sofrimento e para a condenação de tanta gente inocente. Vocês não dizem que Deus é amor?

– Sim, Deus é amor e, justamente por isso, Ele respeita nossa liberdade de escolha. Pode ter certeza de que Ele jamais condenaria um inocente sem lhe tornar suficientemente claras as condições para habitar em Seu reino. Na verdade, os que não quiserem viver com Deus simplesmente não viverão com Ele. Essa história de inferno eterno para os pecadores não está na Bíblia. O contrário de vida eterna é morte eterna. Esse assunto dá pano pra manga.

– Sei... O problema é mesmo a Bíblia. A gente tem que saber interpretá-la – diz José, arriscando um olhar de soslaio pelo retrovisor interno.

– Se tivesse escrito um livro, o que você acharia se eu quisesse interpretá-lo da minha maneira e não segundo a mensagem que você quis transmitir? – pergunta Ellen.

– Bem, eu não ficaria muito contente com isso.

– Pois é. A Bíblia tem uma mensagem e deve ser estudada à luz dessa mensagem, levando-se em conta o contexto em que foi escrita e o objetivo para qual foi escrita.

– Sabe, embora eu seja ateu, não deixo de reconhecer que a Bíblia foi escrita por pessoas sábias – José tenta amenizar seu discurso.

– Eu já não acredito nisso.

– Por quê?

– Você aceitaria como sábia uma pessoa que afirma escrever em nome de Deus? – José simplesmente balança a cabeça negativamente, enquanto mantém os olhos no trânsito. Ellen prossegue:

– Nem eu. Consideraríamos essa pessoa louca ou mentirosa, não é mesmo? Portanto, com respeito aos autores bíblicos, temos apenas duas opções: ou os consideramos loucos ou impostores, ou aceitamos o que eles disseram: que escreveram inspirados por Deus.

– Então, prefiro a primeira opção.

– Por quê?

– Ora, porque o Deus da Bíblia é sanguinário, machista, intolerante...

– Quem lhe disse isso?

– Eu li isso num livro de Richard Dawkins.

– Sei, o biólogo ateu autor de Deus, Um Delírio.

– Esse mesmo – José para num semáforo.

– José, você sabia que logo nas primeiras páginas desse livro Dawkins admite que não pode provar que Deus não existe? O título da obra é pura propaganda enganosa. Deveria ser Eu Acredito que Deus Seja Um Delírio, ou algo assim.

– Dawkins combate os fundamentalistas religiosos.

– Sim, e com base em alguns maus exemplos de religiosos ele julga todos os outros; toma a parte pelo todo. Para Dawkins, o fato de ter existido a Inquisição e haver atentados terroristas provaria que religião não presta. Mas ele ignora os muitos bons exemplos de religiosos que deram a vida por causas nobres e de ateus líderes de regimes políticos que levaram à morte milhões de pessoas. O que você considera “fundamentalista”?

– Acho que são aquelas pessoas ignorantes que levam ao pé da letra o que está escrito em seus livros religiosos.

– Então eu sou uma “fundamentalista” – Ellen faz o sinal de aspas no ar, diante do retrovisor interno do carro –, pois levo a sério a Bíblia e a aceito como Palavra de Deus. Procuro seguir os fundamentos do cristianismo. Você me acha ignorante e intolerante?

– Você não me parece... – José mediu as palavras.

– Pois é. E justamente pelo fato de ler e seguir a Bíblia é que sou motivada a amar e respeitar todas as pessoas. A Bíblia não tem culpa pelo mau uso que fazem dela. E quer saber? Há muitos bons cristãos por aí, assim como há muitos ateus corretos. De igual maneira, há cristãos e ateus “fundamentalistas”, para usar essa expressão que hoje assumiu caráter bem negativo.

– Mesmo assim, permanece o fato de que o Deus da Bíblia e a própria Bíblia são incoerentes.

– Você já leu algum bom livro sobre apologética cristã?

– Não.

– Bem, eu já li o livro de Dawkins e outros, e acho que você somente poderia assumir uma posição quanto a essas questões depois de ler bons livros prós e contra o teísmo e, sobretudo, depois de fazer um estudo aprofundado da Bíblia. Conforme escreveu o cientista e filósofo cristão Blaise Pascal, as pessoas deveriam pelo menos conhecer a fé que rejeitam antes de rejeitá-la.

José fica em silêncio por alguns instantes, tentando digerir aquelas palavras. Depois prossegue, mudando novamente de assunto:

– Você viu o que a filha do Pepeu Gomes e da Baby do Brasil, a Sarah Sheeva, vem fazendo em nome da Bíblia?

– Não. O que ela fez?

– Reuniu um monte de mulheres para pregar que elas devem se preservar para o casamento e toda essa conversa moralista.

– Não conheço o discurso dessa moça, mas e se eu lhe dissesse que existem razões científicas para a fidelidade antes e depois do casamento?

– Como assim?

– Quando homem e mulher se relacionam intimamente, estabelecem vínculos afetivos regidos por neurotransmissores como a oxitocina e a vasopressina. Quando se relacionam com muitas pessoas, o funcionamento desses neurotransmissores é prejudicado, o que favorece a infidelidade e a insatisfação nos relacionamentos. José, acredite: todas as ordens e orientações de Deus mostram a relação de causa e efeito. Se você quiser obedecer às orientações bíblicas com respeito aos relacionamentos, será mais feliz. Se obedecer ao que a Bíblia recomenda com relação ao estilo de vida ideal, terá mais saúde. E se aceitar o oferecimento de salvação da parte de Jesus, mais importante do que tudo, terá a vida eterna. Respeito seu ponto de vista e sua descrença, mas o cristianismo, para mim, é a cosmovisão mais lógica, coerente e digna de aceitação.

– Sua posição é bem desconfortável, não é mesmo? Imagino que, além dos ateus e céticos, religiosos mais liberais também não concordem com sua visão... “fundamentalista” da Bíblia.

– Não busco conforto e aprovação das pessoas, mas, sim, a certeza de estar ao lado da verdade. Não quero simplesmente ter a verdade do meu lado.

– Verdade... Você deve saber que não existem verdades absolutas.

– Existem, sim, José, e você acabou de defender uma.

Vários minutos – e argumentos – depois, José estaciona o automóvel em frente à Estação São Judas. A chuva havia parado. Ellen entrega-lhe o dinheiro e um livro, desce do carro e, antes de se despedir, abaixa-se, olha o homem nos olhos e diz:

– José, seja um bom cético, aquele que duvida até mesmo do próprio ceticismo, e siga as evidências levem aonde levar. Se elas o levarem a Deus, aceite os fatos e dê boas-vindas a Ele. Experimente. Você não tem nada a perder e muito, muito mesmo a ganhar.

José observa a moça descer as escadas da estação enquanto conclui que terá muito o que pensar e repensar no restante desse dia de trânsito lento. Antes de colocar o livro em cima do painel, ele lê o título: A Grande Esperança.

Michelson Borges

Nota: A história acima é fictícia e foi escrita em reação ao artigo/conto da jornalista Eliane Brum, publicado no site da revista Época. O artigo dela revela preconceito generalista, embora tenha muito de verdade. Respeito a jornalista, mas já tive uma experiência um tanto negativa com ela, no passado (confira aqui).

Leia também: "Vida de ateu é uma dureza. Ou não?" e “Truques neoateístas”