A
revista Veja desta semana traz de
volta a polêmica em torno do Santo Sudário, o manto que supostamente teria
envolvido o corpo de Jesus. O “gancho” é o lançamento do livro O Sinal, da Cia. das Letras. O autor é
Thomas de Wesselow, “historiador de arte inglês agnóstico e obcecado”, segundo
a descrição da revista. A conclusão de Wesselow é a seguinte: “Se não é
possível provar que o manto de Turim é a mortalha do corpo de Cristo, também
não existem provas conclusivas de que não seja.” E a semanal ainda afirma que
essa conclusão do historiador é “extraordinária”. Resumindo: é mais do mesmo
numa reportagem que tem cara de matéria paga.
Mas,
antes que você pense que Wesselow e a Veja
estão defendendo a ressurreição de Jesus, leia
isto: “O autor ainda afirma que foi o Sudário, e não Jesus Cristo ressuscitado,
que apareceu para seus seguidores nas passagens bíblicas da ressurreição. [...]
Tomé, segundo o historiador inglês, não esteve diante do corpo de Jesus
ressurrecto, como creem os cristãos, mas das manchas vermelhas estampadas no
linho de Turim.” Muito esperto o autor agnóstico (e a Veja também, claro): ganha uma grana com o assunto que sempre gerou
polêmica, não deixa de se render à constatação de que Jesus é um personagem
histórico (quase ninguém nega isso), mas, ao mesmo tempo, usa o Sudário para
dar a entender que a ressurreição (ou pelo menos as aparições de Jesus depois
dela) seria mito.
A
propósito dessa reportagem de Veja,
Rodrigo Pereira da Silva (professor do Unasp, doutor em teologia, doutorando em
arqueologia pela USP e apresentador do programa “Evidências”, da TV Novo Tempo)
partilhou conosco o material abaixo.[MB]
O
Sudário de Turim é um pano que, segundo creem alguns, teria impressa de maneira
miraculosa a imagem de Jesus. Há anos está guardado numa igreja em Turim e o
tecido só é apresentado ao publico a cada dez anos. O tempo da exposição pode
variar entre poucos dias até um mês e meio, e gente do mundo inteiro vai até a
Itália para ver de perto a tão valiosa relíquia. Os que defendem a veracidade
do pano e do milagre que supostamente teria impresso a face de Jesus no tecido
entendem que essa teria sido a mortalha original ou o sudário que cobriu o
corpo do Senhor quando Seus discípulos o retiraram da Cruz. Talvez a palavra “sudário”
seja estranha ao vocabulário de muitos porque caiu em desuso e necessita ser
explicada.
Então
vamos lá: a palavra “sudário” vem do latim Sudor
que quer dizer “suor”; era, portanto, um antigo lenço para enxugar o suor do
corpo. Frequentemente, nos tempos antigos – especialmente na época da Roma
imperial –, sudários eram também usados para envolver corpos de pessoas mortas
antes de serem depositados no túmulo. De fato, de acordo com os evangelhos,
José de Arimateia, juntamente com outros discípulos, envolveu o corpo sem vida
de Jesus num pano limpo de linho e o colocou no sepulcro de sua família. Mas,
na manhã do domingo, Cristo voltou à vida deixando para trás os lençóis que o
cobriram como prova de Sua ressurreição.
E
então? Seria o Sudário de Turim esse pano? Estamos diante de um objeto
autêntico? Bem, deixe-me em primeiro lugar dizer que, como pesquisador e ao
mesmo tempo seguidor de Jesus Cristo, eu não teria dificuldade em acreditar que
Deus poderia preservar uma relíquia como prova da ressurreição de Seu Filho. Por
outro lado, porém, minha fé no cristianismo não depende da autenticidade do Sudário
de Turim. Em outras palavras, não creio que meu cristianismo seja abalado se
amanhã a igreja anunciar oficialmente que essa peça não é real. Mas uma coisa
devemos admitir: a afirmação por detrás desse objeto é tão forte que, se ele
for verdadeiro, estaremos diante do maior achado de todos os tempos, comparável
ao Santo Graal ou à Arca da Aliança. Porém, se for falso, é a pior demonstração
de má fé da história do cristianismo.
Antes,
porém, de examinarmos os fatos, é bom esclarecer que, embora muitos teólogos e
líderes religiosos tenham defendido com veemência a veracidade dessa relíquia,
a própria hierarquia da Igreja Católica em Roma tem procurado assumir uma
postura mais moderada nesse sentido. Num pronunciamento feito em 24 de maio de
1998, o falecido papa João Paulo II disse o seguinte acerca do Santo Sudário:
“Uma vez que isso não representa um assunto de fé, a Igreja não tem nenhuma
competência específica para se pronunciar sobre essas questões. Ela prefere
confiar aos cientistas a contínua tarefa de investigar, de modo que algumas
respostas mais satisfatórias possam ser obtidas em relação a esse lençol.”
Quando
o Sudário foi pela primeira vez exposto ao público, em 1357, o Bispo de Troyes
Henri de Poitiers afirmou que o pano era uma fraude e que ele mesmo conhecera o
artista que havia feito a pintura. Trinta anos depois, o sucessor de Henri,
Pierre d’Arcis, escreveu uma longa carta ao papa Clemente VII, na qual repete a
mesma posição de seu antecessor quando ao Santo Sudário. Ele também afirma que
o pano era manifactus, isto é, feito
por obra humana e artificialiter depictus,
artificialmente desenhado ou pintado.
O
papa decidiu então não proibir a exibição da relíquia, mas ordenou que o bispo
alertasse o povo de que não se tratava do corpo de Cristo e, sim, de uma
representação artística dele.
É
claro que também houve simpatia eclesiástica para com a relíquia. Em 1578, o
arcebispo de Milão, Charles Borromeo, peregrinou a pé até Turim apenas para
reverenciar o tecido. Depois, em 1670, um ofício papal garantiu indulgência,
isto é, perdão, a quem fosse orar diante do Sudário. Mas note que em momento
algum, desde aqueles dias até hoje, nem o magistério da igreja ou mesmo o papa
oficialmente se pronunciaram declarando a autenticidade do tecido, e isso mesmo
se mostrando simpáticos à veneração da relíquia.
Aliás,
o próprio papa Bento 16 foi pessoalmente a Turim em maio de 2010 para ver o
pano e o descreveu como um extraordinário ícone. Seu antecessor, o papa João
Paulo II, também esteve lá e venerou a relíquia.
Mas,
se é assim, por que eles nunca o declararam oficialmente verdadeiro? Na época
em que Bento 16 visitou Turim, alguns jornalistas publicaram: “O papa bento 16
endossou o Sudário de Turim, mas se esquivou de declará-lo oficialmente como
sendo a mortalha que cobriu Jesus.”
Por
que esse silêncio eclesiástico de séculos acerca do assunto? É algo em que se pensar.
A igreja nunca se mostrou tão tímida a oficializar algo milagroso que ela
considerava verdadeiro, como foi o caso da aparição de Fátima. Por que, então,
essa timidez em relação ao Santo Sudário?
Bem,
seja como for, podemos estar certos de que até o presente momento não há
nenhuma orientação oficial católica no sentido de que seus fiéis tenham de
acreditar na autenticidade do medallion,
como o pano foi apelidado pelos franceses.
Mas, conforme já mencionamos, a tradição apregoada por alguns diz que
essa seria a mortalha original que cobriu o corpo de Jesus durante Seu
sepultamento; contudo, a história desse pano só pode ser traçada com segurança
até o ano 1357, quando ele foi pela primeira vez exposto ao público em Lirey,
uma vila perto de Troyes, no norte da França. Fora disso, qualquer tentativa de
traçar uma “caminhada” do pano desde a Palestina até a Europa é altamente
romanceada e especulativa.
Mesmo
entre os historiadores que defendem a autenticidade do Sudário, não há harmonia
de opiniões. Uns, como Ian Wilson, dizem que o Sudário de Turim foi a mesma
relíquia conhecida como Imagem de Edessa; outros, como Averil Cameron, negam
completamente essa hipótese. O fato é que mesmo os mais ardorosos autores
católicos admitem que há duas fases da história do pano, e ambas são divididas
pelo ano 1357, aproximadamente. Daquele ano para trás, o que se diz tem alta
dose de conjectura e nenhuma evidência factual. São autores católicos que
admitem isso.
De
acordo com o site oficial da Associação para Educação e Pesquisa do Sudário de
Turin, criada em defesa da relíquia: “Embora haja significativa coleção de
evidências sustentando a existência do Sudário antes do ano 1300, a maioria
delas é, de fato, ‘circunstancial’ e permaneceu em sua maioria sem nenhuma
comprovação.”
E
agora se prepare para uma informação no mínimo curiosa: a própria Enciclopédia
Católica, linkada na página do New
Advent, traz na versão inglesa do verbete “O santo Sudário de Turim” um artigo
no qual assume a posição de que o pano não é a imagem real de Jesus, mas uma
pintura feita na Idade Média. Surpreendente, não é mesmo?
Pois
bem, quando o Sudário foi exibido ao público em 1978 – para comemorar os 400
anos de sua chegada a Turin –, uma multidão de aproximadamente três milhões de
pessoas correu para poder vê-lo pessoalmente. Mas, na verdade, o que essas
pessoas enxergaram foi apenas um pano amarelado pelo tempo, pois a imagem é
extremamente difícil de ser detectada a olho nu. Ela só fica visível numa
fotografia, como se fosse um negativo.
Em
4 de outubro de 1973, um grupo de cientistas Europeus concluiu alguns estudos
sobre o pano, graças a uma autorização especial concedida para examinar o
tecido – não a fim de verificar sua autenticidade, mas para cuidar de sua
preservação, principalmente porque em poucas semanas ele seria pela primeira
vez exibido na TV em cores, com uma introdução feita pelo papa Paulo VI:
temia-se que as luzes ou a gravação pudessem danificar a imagem. Um relatório
foi feito e nele algumas evidências pareciam favoráveis à autenticidade do pano,
outras não.
Então,
um segundo grupo, composto de 24 cientistas, foi formado e eles puderam, em
1978, passar cinco dias examinando o tecido e fotografando suas partes. Esse
grupo ficou conhecido pela sigla STURP, abreviação em inglês de Projeto de
Pesquisa do Sudário de Turim. Entre os que fizeram parte do time havia
especialistas de diversas áreas e de diversos laboratórios. Como muitos
esperavam, seria uma excelente oportunidade de demonstrar cientificamente uma
prova miraculosa da fé cristã. Mas isso não ocorreu. O grupo tinha decidido que
gastaria dois anos examinando cientificamente o Sudário e apresentaria um
relatório final em 1980. Mas controvérsias dentro do grupo e situações ainda
nebulosas impediram que tal relatório fosse publicado e o grupo foi
oficialmente extinto em outubro de 1981.
A
situação ficou muito delicada depois que o pesquisador Walter McCrone revelou
publicamente sua posição, em setembro de 1980. McCrone, que faleceu em 2002,
era um químico americano considerado um dos maiores especialistas em
microscopia analítica. Por isso mesmo, foi convidado para integrar o time de
pesquisadores em 1978 e liderar as pesquisas microscópicas em torno do tecido.
A declaração do cientista foi feita num congresso realizado em Londres pela
Sociedade Britânica do Sudário de Turim, uma agremiação católica a favor da
relíquia.
O
Dr. McCrone apresentou diante do auditório suas inequívocas conclusões de que o
Sudário seria uma obra de arte medieval pintada com óxido de ferro, usando uma
têmpera bastante diluída como veículo aglutinante. Nessa mesma época, o Dr. McCrone
previu que se o Carbono 14 fosse usado no tecido demonstraria que ele estava
certo, pois não daria uma datação mais antiga que a Idade Média ou o século 14,
para ser mais exato.
Em
1988, a análise foi feita e comprovou-se o que McCrone havia dito oito anos
antes. O tecido era realmente uma produção medieval. Ele foi fabricado em algum
tempo entre 1260 e 1390 e não antes disso. Não era, definitivamente, um pano
dos tempos de Jesus.
Curiosamente,
mesmo outros especialistas da equipe que eram mais tendentes a considerar o Sudário legítimo também não puderam ser conclusivos em sua
opinião científica. É o caso, por exemplo, de Ian Wilson, que escreveu inúmeros
artigos e livros a respeito do assunto.
Jacques
Evin, outro membro oficial do grupo de pesquisadores, especializado em técnicas
de radiocarbono e fervoroso católico romano, afirmou a conclusão de que o Sudário
teria sido um pano que cobrira um homem crucificado na Idade Média.
E
por falar em radiocarbono, alguns tentaram desacreditar as análises feitas com
o Carbono 14 dizendo que as amostras estariam contaminadas ou que o trabalho
não fora bem executado. Aventou-se até a teoria de uma fraude, mas o Dr. Luigi
Gonella, professor de física em Turim e consultor politécnico do grupo,
desmentiu logo qualquer suspeita. As amostras, afirmou ele, foram bem coletadas
e examinadas por três diferentes laboratórios, em Zurich, Oxford e Arizona.
A
mesma afirmação foi feita pelo Dr. Douglas Danhue, coordenador do laboratório
de aceleração e radiocarbono da Universidade do Arizona, que também participou
da pesquisa. Segundo ele, “não houve nenhuma contaminação das amostras
retiradas do tecido”.
Essa
opinião também foi expressa formalmente pelo laboratório de Oxford, que recebeu
uma das amostras. Todos os laboratórios confirmaram a mesma data e isso é um
forte argumento a favor da afirmação de que o tecido fora elaborado na Idade
Média.
Hoje,
cientistas como o Dr. Marvin Rowe, da Universidade do Textas, estão sugerindo
novos testes de datação mais sofisticados, que não danificam a amostra e podem
ser mais precisos que os realizados em 1988. Falta convencer os curadores de
Turim a liberar novamente a peça para análise científica. Por enquanto,
permanece a incerteza entre os que afirmam e os que negam a validade do teste
de datação sobre o tecido.
Existem
ainda vários outros problemas menores em relação ao Sudário e que passarei a
apresentar de modo mais resumido: em primeiro lugar está o completo silêncio do
Novo Testamento em relação a esse fenômeno. Supondo que fosse verdadeiro o
milagre da aparição instantânea da imagem numa mortalha, era de se esperar que
os apóstolos fizessem menção disso; curiosamente, porém, a ênfase material dada
pelos discípulos, inclusive mais tarde por Paulo, é apenas sobre o túmulo vazio
e os lençóis deixados ordenadamente para trás. Não há nada sobre uma imagem
miraculosa.
Outro
problema está com a substância encontrada no tecido. Seriam essas marcas
escuras escorrendo pela testa, membros e especialmente na costela esquerda
produzidas por sangue humano? Os cientistas novamente encontram-se divididos.
Samuel Pellicori, especialista em espectroscopia que também fez parte do time
de pesquisadores de 1978, afirmou que era sangue humano, mas com idade máxima
de 600 anos, não podendo, portanto, ser sangue de Cristo. Já Walter McCrone diz
que se trata de pigmento de pintura. E outros, é claro, dizem ser sangue humano
com a possibilidade de ser o sangue de Cristo.
Mas,
novamente, temos um problema. Ao se analisar a imagem impressa no pano, nota-se
que o sangue continuou estranhamente escorrendo juntamente com o suor. Está
claro que essas manchas se formaram depois que o corpo foi deitado sobre o pano
e sepultado. Ora, até mesmo um leigo em medicina sabe que mortos não suam, nem
sangram. Logo, se aquilo for realmente sangue humano e aquela imagem for a de
Jesus, então o sudário será o maior argumento contra o cristianismo, pois provará que a morte na Cruz foi um
embuste; Jesus estaria plenamente vivo, com febres por causa dos machucados e
tendo Seu aparelho circulatório funcionando com um mínimo de batidas cardíacas
que permitiriam o escorrimento do suor e do sangue sobre o tecido. Sangue em
processo de coagulação, como é o de um defunto, provocaria um borrão no sudário
e não uma imagem tão nítida.
Outro
problema está em que os fortes indícios apontados como prova da veracidade do
pano não são tão conclusivos assim. Por exemplo, a imagem das tais moedas de
Pilatos que Francis Filas disse ter encontrado sobre os olhos da vítima não
possuem nenhum indício de plausibilidade. É necessária muita imaginação para
perceber ali a presença de duas moedas do primeiro século, isso sem contar que
os judeus piedosos não tinham por costume colocar moedas na boca ou nos olhos
de um morto, pois esse era um costume pagão dos gregos para pagar o barqueiro Caronte
no mundo dos mortos. Estranho imaginar que os discípulos de Jesus tivessem esse
costume...
Note
também, ao observar a imagem impressa no Sudário, que a posição do corpo
estaria muito apropriada para os ditames da Idade Média, com as mãos cobrindo a
genitália. Essa situação de decência ou postura comedida para um morto judeu do
primeiro século não faz sentido. A professora Raquel Hachilli, especialista em
arqueologia da Universidade de Haifa, afirma que tanto em Jericó quanto em Jerusalém,
a postura comum dos corpos era com os braços estendidos para os lados. Desconhece-se
nessas duas regiões qualquer evidência de que as pessoas fossem sepultadas
conforme o defunto do Santo Sudário. Isso sem contar que, ainda que a pessoa
fosse colocada naquela posição, seus músculos relaxariam e a gravidade faria os
braços caírem.
Existem
boas teorias de como a imagem poderia ter sido montada na Idade Média. Muitos
acadêmicos acham absurda a ideia de que eles não teriam tecnologia para
produzir uma peça assim; aliás, a própria Enciclopédia Católica relembra que
vários outros sudários circularam pela Europa, também contendo misteriosamente
o rosto de Cristo. Esse era apenas mais um que acabou se tornando mais famoso.
É
exatamente por essas e outras razões que, embora tenhamos fé na historicidade
da ressurreição de Cristo, nutrimos sérias dúvidas quanto à autenticidade do Sudário
de Turim.