Humanismo exclusivo é desumano |
1º
– “A civilização do ano 2000 é ateia. O fato de ainda falar de Deus, Alá, Iavé
ou outros não muda nada, porque o conteúdo do discurso não é mais religioso,
mas político, sociológico, psicológico. O próprio sagrado deixou de existir;
nem o homem, que era visto no século 19 como o sucessor de Deus, tomou o seu
lugar. Basta ver como ele é tratado, como é manipulado, como é martirizado,
para se convencer de que a humanidade não foi divinizada. No naufrágio
generalizado dos valores, resta apenas um sagrado irredutível: eu [...]. A
humanidade moderna é ávida consumidora de divindades. Experimentados, perdemos
as ilusões, tornamo-nos receosos, desconfiados. O homem multiplicou os deuses,
e os deuses morreram por causa disso. Agora, é o homem que prolifera, e quanto
mais prolifera, menos tem valor. Ele se tornou tão comum que cada exemplar não
vale mais grande coisa. E a questão não é saber se o século 21 será crente ou
ateu, religioso ou descrente, mas se o formigueiro humano ainda tem a vontade e
os meios de inventar um futuro para ele.” (George Minois, historiador das
mentalidades religiosas, em A História do
Ateísmo, p. 730)
2º
– “De fato, o antropocentrismo é característico da cultura moderna. Esta, como
enfatizou Hegel, representa a ‘era do sujeito’, na medida em que gira ao redor
de um ‘novo sol’: a subjetividade [...]. É um fato histórico: a modernidade se
afirmou em contraste com a cultura anterior, a cultura medieval, profundamente
religiosa [...]. Embora na história tenha prevalecido a modernidade
secularista, esta, contudo, não passa de uma forma de modernidade: a
modernidade fechada, extremizada, radicalizada. Poderíamos chamá-la também com
outros epítetos, como imanentista, secularista, naturalista, incrédula,
desencantada, laicista, finalmente ateia. Trata-se aqui sempre de uma
modernidade fechada em sua autossuficiência. Mas não se pode ignorar que, ao
lado dessa forma de modernidade, existe outra: aquela que permanece aberta ao
Transcendente. Esta não deixa, por isso, de ser moderna, e tanto quanto a
primeira. Ela também afirma os valores imanentes: o mundo, o homem, a razão, a
liberdade. Mas o faz não contra a fé, mas com a fé. Ademais, para ela, é a
própria fé que postula tais valores e também os funda, preservando-os da
degeneração e do niilismo. Trata-se, pois, de uma modernidade objetivamente
fundada. Esta modernidade seria até mais moderna que a primeira, não menos,
pois, convicta de que as realidades imanentes estão fundadas no Transcendente,
vê-as dotadas de mais consistência e valor, e por isso as encarece ainda mais.
Por sua parte, a modernidade fechada se funda em quê? Ela se quer fundada no
homem, em sua razão secular e em sua decisão livre. É, de fato, em torno do
exercício dessas duas faculdades que se constrói, na modernidade, o consenso
político e cultural. Ela se funda, portanto, em instâncias internas, à exclusão
de toda referência exterior. Isso equivale a dizer que ela se funda em si
mesma. É, pois, uma modernidade autofundada e autolegitimada. Mas o que
significa isso? Significa, a rigor de lógica, que, entendendo-se como
essencialmente relativa, ela carece de um fundamento absoluto. Mas, assim, fica
permanentemente exposta à dissolução. [...]. Seja como for, é inegável, do
ponto de vista histórico, que, se a pars
potior da modernidade se fechou à religião, foi, em boa parte, porque a pars potior da religião se fechou a ela
[...]. Os modernos, porém, não previram as consequências catastróficas do
desprezo pela causa final. Na medida em que privilegiaram a explicação
empírico-científica do mundo a ponto de desprezar a causa final, estavam, sem
saber, abrindo as portas ao niilismo. Não se davam conta do que vira claramente
Aristóteles: sem causa final, é o fim de tudo. [...] Com efeito, o ateísmo,
como, de resto, a própria fé, constitui uma postura mais voluntária do que
intelectual. [...]. A cultura dominante, protagonizada pela intelligentsia, isto é, os agentes da
chamada ‘alta cultura’, tem na academia e na mídia seus lugares privilegiados
de produção e difusão, e pensa a existência se desenvolvendo sob o signo da ‘morte
de Deus’ [...]. Efetivamente para uma sadia mente filosófica, e não apenas
teológica, a dimensão religiosa não é somente uma variável histórica, mas é um
invariante antropológico. O homem não está religioso, mas é religioso, de
qualquer forma que o seja. Por dizer respeito essencialmente ao campo do
espírito, a religiosidade é uma realidade que está, sim, no tempo, mas que não
é simplesmente do tempo. A questão da presença da religião na história concerne
apenas às suas formas sociais, sempre transitórias, e não ao seu conteúdo
antropológico, que é permanente [...] Seja como for, os ‘modernos’ querem se
libertar de qualquer tipo de absoluto, que sentem como jugo [...] Se o Mistério
se retraiu, é porque foi humilhado e ofendido; se silenciou, é porque foi
calado; se partiu, é porque foi expulso. Mesmo assim, ele não fica de todo
ausente. Permanece à espreita do menor sinal, para se reaproximar, como o pai
misericordioso, sondando o horizonte, na espera do filho transviado. De fato, o
‘sentido de Deus’ é tão conatural ao coração humano que só pode ser reprimido e
enfraquecido, mas não destruído. ‘Morte de Deus’ jamais pode significar a
explosão do sol de todos os valores, mas apenas seu eclipse passageiro, como
fizeram notar M. Buber, A. Del Noce e S. Acquaviva [...]. O ateísmo é
essencialmente uma postura do livre-arbítrio, portanto, um comportamento
literalmente arbitrário, embora se cubra com todo o aparato da racionalidade,
que, nesse caso, só pode ser sofística. Além disso, a doutrina ateia é
antinatural, pois contradiz o tecido ontológico do ser humano em sua
constitutiva abertura para o infinito [...]. Daí a sentença lapidar de H. De
Lubac: ‘O homem pode organizar a terra, sem Deus, mas sem Deus só a pode
organizar contra o homem. Humanismo exclusivo é humanismo desumano.’” (Clodovis
Boff, em O Livro do Sentido, v. 1, p.
394-447)
(Colaboração: Frank de
Souza Mangabeira)