terça-feira, novembro 11, 2014

Dois pensamentos sobre ateísmo

Humanismo exclusivo é desumano
1º – “A civilização do ano 2000 é ateia. O fato de ainda falar de Deus, Alá, Iavé ou outros não muda nada, porque o conteúdo do discurso não é mais religioso, mas político, sociológico, psicológico. O próprio sagrado deixou de existir; nem o homem, que era visto no século 19 como o sucessor de Deus, tomou o seu lugar. Basta ver como ele é tratado, como é manipulado, como é martirizado, para se convencer de que a humanidade não foi divinizada. No naufrágio generalizado dos valores, resta apenas um sagrado irredutível: eu [...]. A humanidade moderna é ávida consumidora de divindades. Experimentados, perdemos as ilusões, tornamo-nos receosos, desconfiados. O homem multiplicou os deuses, e os deuses morreram por causa disso. Agora, é o homem que prolifera, e quanto mais prolifera, menos tem valor. Ele se tornou tão comum que cada exemplar não vale mais grande coisa. E a questão não é saber se o século 21 será crente ou ateu, religioso ou descrente, mas se o formigueiro humano ainda tem a vontade e os meios de inventar um futuro para ele.” (George Minois, historiador das mentalidades religiosas, em A História do Ateísmo, p. 730)

2º – “De fato, o antropocentrismo é característico da cultura moderna. Esta, como enfatizou Hegel, representa a ‘era do sujeito’, na medida em que gira ao redor de um ‘novo sol’: a subjetividade [...]. É um fato histórico: a modernidade se afirmou em contraste com a cultura anterior, a cultura medieval, profundamente religiosa [...]. Embora na história tenha prevalecido a modernidade secularista, esta, contudo, não passa de uma forma de modernidade: a modernidade fechada, extremizada, radicalizada. Poderíamos chamá-la também com outros epítetos, como imanentista, secularista, naturalista, incrédula, desencantada, laicista, finalmente ateia. Trata-se aqui sempre de uma modernidade fechada em sua autossuficiência. Mas não se pode ignorar que, ao lado dessa forma de modernidade, existe outra: aquela que permanece aberta ao Transcendente. Esta não deixa, por isso, de ser moderna, e tanto quanto a primeira. Ela também afirma os valores imanentes: o mundo, o homem, a razão, a liberdade. Mas o faz não contra a fé, mas com a fé. Ademais, para ela, é a própria fé que postula tais valores e também os funda, preservando-os da degeneração e do niilismo. Trata-se, pois, de uma modernidade objetivamente fundada. Esta modernidade seria até mais moderna que a primeira, não menos, pois, convicta de que as realidades imanentes estão fundadas no Transcendente, vê-as dotadas de mais consistência e valor, e por isso as encarece ainda mais. Por sua parte, a modernidade fechada se funda em quê? Ela se quer fundada no homem, em sua razão secular e em sua decisão livre. É, de fato, em torno do exercício dessas duas faculdades que se constrói, na modernidade, o consenso político e cultural. Ela se funda, portanto, em instâncias internas, à exclusão de toda referência exterior. Isso equivale a dizer que ela se funda em si mesma. É, pois, uma modernidade autofundada e autolegitimada. Mas o que significa isso? Significa, a rigor de lógica, que, entendendo-se como essencialmente relativa, ela carece de um fundamento absoluto. Mas, assim, fica permanentemente exposta à dissolução. [...]. Seja como for, é inegável, do ponto de vista histórico, que, se a pars potior da modernidade se fechou à religião, foi, em boa parte, porque a pars potior da religião se fechou a ela [...]. Os modernos, porém, não previram as consequências catastróficas do desprezo pela causa final. Na medida em que privilegiaram a explicação empírico-científica do mundo a ponto de desprezar a causa final, estavam, sem saber, abrindo as portas ao niilismo. Não se davam conta do que vira claramente Aristóteles: sem causa final, é o fim de tudo. [...] Com efeito, o ateísmo, como, de resto, a própria fé, constitui uma postura mais voluntária do que intelectual. [...]. A cultura dominante, protagonizada pela intelligentsia, isto é, os agentes da chamada ‘alta cultura’, tem na academia e na mídia seus lugares privilegiados de produção e difusão, e pensa a existência se desenvolvendo sob o signo da ‘morte de Deus’ [...]. Efetivamente para uma sadia mente filosófica, e não apenas teológica, a dimensão religiosa não é somente uma variável histórica, mas é um invariante antropológico. O homem não está religioso, mas é religioso, de qualquer forma que o seja. Por dizer respeito essencialmente ao campo do espírito, a religiosidade é uma realidade que está, sim, no tempo, mas que não é simplesmente do tempo. A questão da presença da religião na história concerne apenas às suas formas sociais, sempre transitórias, e não ao seu conteúdo antropológico, que é permanente [...] Seja como for, os ‘modernos’ querem se libertar de qualquer tipo de absoluto, que sentem como jugo [...] Se o Mistério se retraiu, é porque foi humilhado e ofendido; se silenciou, é porque foi calado; se partiu, é porque foi expulso. Mesmo assim, ele não fica de todo ausente. Permanece à espreita do menor sinal, para se reaproximar, como o pai misericordioso, sondando o horizonte, na espera do filho transviado. De fato, o ‘sentido de Deus’ é tão conatural ao coração humano que só pode ser reprimido e enfraquecido, mas não destruído. ‘Morte de Deus’ jamais pode significar a explosão do sol de todos os valores, mas apenas seu eclipse passageiro, como fizeram notar M. Buber, A. Del Noce e S. Acquaviva [...]. O ateísmo é essencialmente uma postura do livre-arbítrio, portanto, um comportamento literalmente arbitrário, embora se cubra com todo o aparato da racionalidade, que, nesse caso, só pode ser sofística. Além disso, a doutrina ateia é antinatural, pois contradiz o tecido ontológico do ser humano em sua constitutiva abertura para o infinito [...]. Daí a sentença lapidar de H. De Lubac: ‘O homem pode organizar a terra, sem Deus, mas sem Deus só a pode organizar contra o homem. Humanismo exclusivo é humanismo desumano.’” (Clodovis Boff, em O Livro do Sentido, v. 1, p. 394-447)

(Colaboração: Frank de Souza Mangabeira)