O novo rosto de Renée Zellweger |
1.
Que dizer do rosto da atriz Renée Zellweger? Explico ao leitor que passou
férias na Lua: em noite de prêmios de Hollywood, Renée Zellweger apareceu no
tapete vermelho. E o rosto não era o de Renée Zellweger. Tinha apenas uma vaga
semelhança com o original, escondido sob golpes de bisturi e outras
originalidades da cirurgia estética. O caso circulou pelo mundo e o mundo,
pasmo e levemente ofendido, perguntou: Como é possível destruir um rosto e
comprar outro para exibição pública? Entendo a pergunta. Sobretudo quando
falamos de uma atriz: destruir o rosto, ou seja, destruir a capacidade de usá-lo
como matéria-prima de tensões e emoções, é um ato de vandalismo que desafia as
leis da lógica. Mas as causas da mudança em Renée não são difíceis de
compreender. Feministas várias, indignadas com a indignação geral, acusaram a
tirania falocêntrica de Hollywood de submeter as mulheres à ditadura da “juventude
eterna”. O bisturi pode desafiar as leis da lógica, sim. Mas ele se explica
pelas leis trabalhistas.
Lamento,
mas não mordo inteiramente. E prefiro olhar para a filmografia da senhora. Em
20 anos de carreira, que podemos dizer do caso Renée Zellweger? Simples: a
atriz não tem um único filme que possamos considerar “decente” (para usar um
eufemismo). E, nos filmes menos embaraçosos (como “Cold Mountain” ou “Cinderella
Man”), o que espanta é a ausência de uma personalidade forte – uma “marca
autoral”, como se costuma dizer; ou como se costumava assistir nos filmes de
Bette Davis, Audrey Hepburn ou Natalie Wood. As personagens de Renée Zellweger
são baças, monocórdicas – em uma palavra, “desinteressantes”.
E
se existe quem acredite que um ator interessante nem sempre nasce de uma pessoa
interessante, eu discordo: terminei de ler a biografia de Laurence Olivier,
escrita por Philip Ziegler, e o fascinante ator só é explicável pela fascinante
pessoa que existia antes de entrar no palco. Só um ser humano completo (e
complexo) vira um ator idem.
Tudo
isso para dizer o quê? Uma conclusão muito simples: quando você precisa mudar o
exterior por capricho é porque não existe grande coisa no interior para
começar.
2.
A revista americana Men’s Health
elegeu o soldado Noah Galloway como “o corpo mais perfeito do mundo”. Pormenor:
Noah Galloway não tem um braço e não tem uma perna. Mas isso não impediu a
revista de fazer capa com o veterano de guerra e coroá-lo com semelhante
epíteto adônico.
Era
George Orwell, creio, quem dizia que o mais difícil no mundo era enxergar a
realidade que temos diante dos olhos. Orwell tinha razão. Porque Noah Galloway
não tem “o corpo mais perfeito do mundo”. Tem um corpo amputado, que só por
covardia politicamente correta é possível classificar como “o mais perfeito do
mundo”. Covardia e, pior que isso, uma desavergonhada falta de respeito pela
deficiência física.
Ponto
prévio: a deficiência física não tem nada de especial. É um fato moralmente
neutro – como ser alto ou baixo, magro ou gordo, bonito ou feio. Mas não é um
fato esteticamente neutro: o Corcunda de Notre Dame não está no mesmo patamar
de Gisele Bündchen. E afirmar que um corpo sem um braço e uma perna é “o mais
perfeito do mundo” soa tão ridículo como coroar Dilma Rousseff como a mulher
mais bela do Brasil.
O
que parece “moderninho” e “despreconceituoso” resvala tristemente para o
anedótico e para o insultuoso. E, ironia maior, demonstra um desconforto com a
própria ideia de deficiência física que se procura “normalizar”
desesperadamente (e pateticamente) com delírios hiperbólicos de sentido
inverso.
Porque
esse é o problema eterno do pensamento politicamente correto: para proteger a “sensibilidade”
das minorias, as brigadas preferem a falsificação constante da realidade. Essa
falsificação é sempre mais ofensiva do que qualquer discriminação real.
O
pessoal da Men’s Health deveria saber
que há deficiências maiores do que não ter braços ou pernas. Não ter cabeça,
por exemplo, é mil vezes pior.
(João Pereira Coutinho,
Folha.com)