O
site do jornal Folha de S. Paulo
acaba de lançar o blog Darwin e Deus, do jornalista Reinaldo José Lopes. Lopes foi editor de Ciência da Folha por alguns anos e admite ser
religioso de orientação católica. Troquei alguns e-mails com ele no passado e
creio que ele seja uma pessoa sincera, além de bom jornalista. Que eu saiba,
foi o primeiro um dos primeiros editores da “grande imprensa” a dar voz a um
criacionista (me entrevistou por duas vezes e foi bastante ético em ambas as
ocasiões – veja aqui e aqui).
Na verdade, o que a Folha está
fazendo é uma grande “sacada”. Eles sabem (porque o próprio Datafolha indicou)
que cerca de 60% dos brasileiros acreditam em Deus e em Darwin, ou seja (ainda
que nem saibam exatamente disso), são evolucionistas teístas. Bem, não é de se
estranhar que assim seja, já que esse é mais ou menos o percentual de católicos
em nosso país e, como se sabe, católicos são evolucionistas. Assim, Reinaldo
tem um público garantido entre essa maioria dos brasileiros que procura
equilibrar na corda-bamba o darwinismo e o cristianismo.
No
texto de apresentação de seu novo blog, Reinaldo escreveu: “Este é um blog que
vai se dedicar a explorar a relação entre ciência e religião de modo geral, as
conexões entre a teoria da evolução e a fé religiosa de modo mais específico
[...] Sou católico, do tipo que só não entrou pro seminário porque queria ser
marido e pai (beleza, ainda dá pra tentar ser diácono quando eu me aposentar).
Minha compreensão dos artigos básicos da minha fé é basicamente ortodoxa. Ao
mesmo tempo, desde que me entendo por gente, a complexidade e a beleza das
coisas vivas e, em especial, da história delas, dos dinossauros aos
australopitecos e neandertais, sempre me cativou. [...]
“A
teoria da evolução é simplesmente... verdadeira. Tão apoiada em fatos e
observações quanto a gravidade, embora não seja uma lei (nem poderia, já que
descreve e explica fenômenos multifacetados demais para serem resumidos numa
equação). [...] É preciso reconhecer, também, a seriedade do desafio
trazido pela biologia evolutiva a algumas concepções religiosas tradicionais.
Não dá para se agarrar a cada vírgula da Bíblia como a verdade literal. [...]
[É bom lembrar que a biologia molecular também trouxe grandes desafios à
evolução, ao revelar nanomáquinas ultracomplexas e sistemas de complexidade
irredutível antes desconhecidos pelos seguidores de Darwin.]
“Entre
religiosos e não religiosos, devotos de Cristo ou sequazes de Darwin, é preciso
achar um “modus vivendi” – ou, ao
menos, um “modus non moriendi”, se
não um jeito de viver juntos, ao menos um jeito de não morrer juntos. [...] É
melhor aprender a ouvir e, no mínimo, tentarmos nos concentrar no que nos une,
e não no que nos separa.”
Note
que o tom é conciliador (“concentrar no que nos une”) e que, a despeito de se
declarar religioso e católico “ortodoxo”, Reinaldo assume sua teologia liberal
ao dizer que não podemos nos “agarrar a cada vírgula da Bíblia como a verdade
literal”. Mas ele se agarra à teoria da evolução como “verdadeira” e
inquestionável, embora deva saber que os exemplos apresentados em defesa desse
modelo se refiram tão-somente à chamada “microevolução”, e que a macro ou
megaevolução continua nos domínios da filosofia naturalista, inobservável,
irreprodutível.
Tenho
a impressão de que esse será um blog de certa forma catequético, com o objetivo
de convencer a maioria dos brasileiros de que seria mesmo possível crer em
Darwin e em Deus (como eles já intuem); que eles podem continuar lendo suas
Bíblias ao mesmo tempo em que acreditam serem parentes dos macacos, tendo sua
origem numa caverna e não num jardim. A Bíblia tem “mitos” bonitos e
inspiradores; a evolução lida com “fatos”. E quem pensa diferente disso é “fundamentalista”
e luta contra o consenso, contra a paz e a harmonia. Vamos ver o que vem por aí
nas páginas de Darwin e Deus.
Curiosamente,
neste mês a Revista Adventista traz
como matéria de capa justamente um artigo sobre evolucionismo teísta, escrito
pelo doutor em genética Wellington dos Santos Silva. Não deixe de ler esse
texto. Nele, Wellington pergunta: “Como pode um cristão adventista do sétimo
dia, que crê na Bíblia como a Palavra de Deus, encontrar sentido num mundo em que
imperam competição, sexo e morte? Desde seus primórdios, a Igreja Adventista do
Sétimo Dia tem defendido a criação do mundo com base no relato bíblico. Como
instituição organizacional e religiosa, seu modelo de doutrinas e crenças leva
em conta o cunho religioso e a verdadeira ciência. Uma das doutrinas
fundamentais da Igreja é a da criação.”
Ele
diz mais: “Para harmonizar criação com evolução, é preciso deixar de reconhecer
que a doutrina da criação se sustenta sobre uma complexa metodologia teológica
na qual desempenha importante papel hermenêutico, e que a criação é um
componente que não pode se desvencilhar da lógica interna do pensamento
bíblico, pois, desse modo, substituiria o óbvio significado histórico do
registro do Gênesis por uma interpretação ‘teológica’.” Parafraseando Dobzhansky,
Wellington diz que “no adventismo nada faz sentido, exceto à luz da criação”.
Quando
se tenta misturar Bíblia e evolucionismo, surgem naturalmente muitos problemas.
Eis alguns apontados na matéria: Por que um Deus onipotente precisaria de um
longo processo? Por que um Deus onisciente precisaria de tantas tentativas e
erros ao longo do caminho? Por que o Deus que ordena que “tudo [...] seja feito
com decência e ordem” (1Co 14:40) faz o oposto no tortuoso processo de evolução
através de longas eras? Por que o Deus que Se opõe à salvação pelas obras (Ef
2:9) usaria a sobrevivência do mais forte como o melhor método? Por que um Deus
de amor usaria a morte para criar os seres humanos à Sua imagem (Gn 1:26, 27)?
Se Ele usou a morte para criar, por que avisou Adão sobre suas consequências (Gn
2:17) e expôs a hediondez desse mal por meio da morte para salvar dela os seres
humanos (Jo 3:16; Rm 6:23)? Se a morte é o último inimigo a ser destruído no
fim da controvérsia entre o bem e o mal (1Co 15:26), como poderia Deus usá-la no
processo da criação antes e depois do início da controvérsia?
Wellington
destaca ainda “o fato de que o Universo expectante exclamou de alegria na
criação (Jó 38:4-7)” e que isso “seria inexplicável, se Cristo, ao criar,
tivesse causado sofrimento aos animais ao longo de bilhões de anos. Cristo
disse que a criação era ‘muito boa’ (Gn 1:31) e isso é digno de ser louvado,
mas quem chamaria o processo tortuoso da evolução de ‘muito bom’? Depois da
ascensão de Cristo, os seres celestes O adoraram como digno e merecedor de
glória pelo fato de ter criado todas as coisas (Ap 4:10-11).”
Resumindo:
“Se os seres humanos são o resultado de progresso dentro do desenvolvimento
evolucionário natural, não há lugar para a queda, morte através do pecado,
necessidade da lei de Deus, da revelação da Escritura, da salvação por meio de
Cristo, do trabalho de nova criação pelo Santo Espírito, da atual intercessão
de Cristo, a segunda vinda, o julgamento final. Se Deus, em Gênesis, não
tivesse falado para que tudo passasse a existir, estaria em xeque Sua futura
palavra criativa para ressuscitar os mortos, bem como a criação sobrenatural
dos novos céus e da nova Terra. Uma vez que a palavra sobrenatural de Deus na
criação é rejeitada, a palavra sobrenatural de Deus na Escritura é rejeitada, tornando-se
a Escritura mero produto de uma coleção de fontes orais e humanas.”
Espero
que Reinaldo José Lopes se valha de seu bom jornalismo para investigar, também,
essas questões. Que se aprofunde na ciência e na religião, sendo criterioso em
ambas as áreas. E quem sabe perceba que seu blog é, na verdade, um híbrido
muito estranho.
Michelson Borges