segunda-feira, julho 06, 2009
As coisas que saem da cabeça de Dawkins
O etólogo queniano Richard Dawkins (1941-) esteve na semana passada no FLIP para divulgar seu mais recente livro. Como não poderia deixar de ser, suas piruetas e cabriolas metafóricas alvoroçaram o evento. Diria uma divertida personagem da teledramaturgia nacional: “Cada mergulho, um flash!” Imenso e incontido foi seu bom humor ante a costumeira sabujice de nossa imprensa. Sim, pois na Inglaterra ele anda a escapulir dos Van Helsings e suas estacas epistêmicas. Além de egoístas, espertinhos os genes do escritor: o sol de Louis Brandeis (1856-1941) pulveriza os vampiros; o sol do Brasil os bronzeia. Adiante.
Quando observei o esvoaçar de suas cãs revoltas pela brisa paratiense me veio à mente um episódio pitoresco ocorrido em Portugal no terceiro quarto do século 19. Os poetas portugueses Antero Tarquínio de Quental (1842-1891) e Antônio Feliciano de Castilho (1800-1875) estranharam-se por divergências literárias. O moço estava então fascinado com as possibilidades da poesia realista. Já o outro era defensor irredutível da estética romântica. Inconformado com as pesadas críticas que recebia de seu conterrâneo, Quental respondeu-lhe com uma das mais fulminantes descomposturas já registradas em qualquer idioma:
“Levanto-me quando os cabelos brancos de V. Exa. passam diante de mim. Mas o travesso cérebro que está debaixo e as garridas e pequeninas coisas que saem dele confesso, não me merecem nem admiração nem respeito, nem ainda estima. A futilidade num velho desgosta-me tanto como a gravidade numa criança. V.Exa. precisa menos cinquenta anos de idade, ou então mais cinquenta de reflexão. É por esses motivos todos que lamento do fundo da alma não me poder confessar, como desejava, de V.Exa. nem admirador nem respeitador.”
Apesar da qualidade poética inegável, o ancião passou para a posteridade pelo sabão que tomou em público. O Romantismo português entrou em declínio. Tanto melhor; no século seguinte, teríamos, entre outros, Pessoa, Almada Negreiros e Sá-Carneiro. Mas voltemos à refrega.
Foi um duelo entre enfermos. Quental sofria de transtorno bipolar (matar-se-ia aos 49 anos com dois tiros na boca). Castilho era cego. A esse respeito, outro gigante da literatura latina, Jorge Luis Borges (1899-1986), também cego, costumava ironizar a própria deficiência. Dizia o escritor portenho que o não enxergar fazia com que alguns admiradores o pusessem no mesmo patamar de Homero e Milton. Julgava-se afortunado por ter perdido a vista em vez da audição, pois, segundo ele, a surdez torna o homem patético, um fantoche desnorteado a protagonizar um pastelão involuntário.
Uma vez que o inseticida criado por Quental serve direitinho para dedetizar ficcionistas como Castilho e Dawkins, não seria de todo injusto traçar um paralelo entre ambos, se não pela idade ao menos quanto aos problemas de visão. Aquele, acometera-lhe cegueira física; este, densas trevas intelectuais e espirituais. Mestre Millor, em deliciosa blague, disse que o pior cego é o que quer ver. Prefiro a versão original. O pior cego é o que se recusa a enxergar. O professor de Oxford ultrapassa o ditado: além de cerrar os olhos, Dawkins tapa juntamente os ouvidos. Aberta, escancarada mesmo, só a sua bocaça traquinas. Cego, surdo e tagarela, desanda a agir como um moleque, um molecão encanecido e enrugado. E dá-lhe falácia! Dá-lhe impostura e mistificação invariavelmente embaladas em espalhafato e felonia. Não é à toa que, junto com a notoriedade, ele vem ganhando a reprovação de muitos de seus pares – ateus, inclusive.
Contudo, incomoda menos os guinchados do Savonarola ateu que o picadeiro reservado para ele em Paraty. É esse o ponto. Em termos de rigor apurativo, nossa imprensa é quase sempre escol ao cuidar com a política. E sempre, sempre e sempre xepa ao tratar da ciência. No dia em que ela rebaixar o primeiro critério ao segundo estaremos ombreados com potências como Sudão ou Somália.
(Marco Antonio Dourado, Curitiba, PR)
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