No dia 16, o filósofo Hélio Schwartsman publicou na Folha de S. Paulo o artigo “Deus e o jardim das delícias”. Ele dispara já de início: “Convenhamos que religião e nosso conhecimento do mundo não andam exatamente de braços dados. De um modo geral, virgens não costumam dar à luz (especialmente não antes do desenvolvimento de técnicas como a fertilização “in vitro”) e pessoas não saem por aí ressuscitando. Em contextos normais, um homem que veste saias e proclama transformar pão em bife sempre que dá uma espécie de passe seria prudentemente internado numa instituição psiquiátrica. E não me venham dizer que a transubstanciação é apenas um simbolismo. ...”
Schwartsman comete o erro banal de confundir cristianismo com catolicismo. Embora o nascimento virginal e a ressurreição de Jesus constem nos Evangelhos (e é claro que não podem ser aceitos por uma mente naturalista que exclui a priori qualquer evento sobrenatural), a transubstanciação é um dogma católico não-bíblico, afinal, homens não têm poder de “criar” Deus a cada missa. O pão, segundo o próprio Jesus, é símbolo de Seu corpo e não literalmente Sua carne.
Agora, se Jesus realmente era quem dizia ser, ou seja, Deus, qualquer evento miraculoso relacionado com Ele não deve ser nada espantoso. Afinal, o que é caminhar sobre as águas, curar cegos de nascença, ressuscitar mortos para quem criou todas as coisas (João 1:3) a partir do nada? Jesus era Deus encarnado. Caso não tenha sido, não passaria de um lunático ou mentiroso – mas não conheço ninguém que pense isso dEle, nem mesmo entre os ateus de bom senso.
Schwartsman acha “oportuno lembrar que a própria pluralidade de tabus ritualísticos depõe contra a noção de Verdade religiosa”, como se o fato de haver muitos credos significasse que não existe um verdadeiro. Na verdade, as diversas manifestações religiosas confirmam o fato de que, como dizia C.S. Lewis, fomos criados para outro mundo. O próprio Richard Dawkins, ateu empedernido incensado pela mídia, disse ter sentido vontade de se ajoelhar diante da exuberância de beleza “supérflua” do Pantanal com vontade de adorar o Criador – não fossem as ideias darwinistas que lhe povoam a mente insistindo como num mantra naturalista: por mais que pareça haver design inteligente na natureza, lembre-se, é só aparência. Deus não pode existir.
“Se existe mesmo um Deus monoteísta, o que ele quer de nós?”, pergunta Schwartsman. “Que guardemos o sábado, como asseguram judeus e adventistas; que amemos ao próximo, como asseveram alguns cristãos; que nos abstenhamos da carne de porco, como garantem os muçulmanos e de novo os judeus; ou que não façamos nada de especial e apenas aguardemos o Juízo Final para saber quem são os predestinados, como propõe outra porção dos cristãos?”
Simples: basta analisar as relações de causa e efeito. Estudos sobre o biorritmo indicam que funcionamos melhor em ciclos de seis dias de atividade e um de repouso. A Bíblia afirma que Deus criou a vida neste planeta em seis dias e reservou o sétimo (o sábado) para celebrar a criação com Seus filhos. Amar ao próximo nos ajuda a viver melhor – com o próximo e com nós mesmos. Abster-nos de carne de porco (e, hoje em dia, de qualquer tipo de carne) promove mais saúde. Portanto, viver à luz das regras de saúde e convivência propostas por Deus na Bíblia nos leva a uma vida mais plena, saudável e feliz. Respondendo ao Schwartsman, é isso que Deus quer que escolhamos, usando o dom do livre-arbítrio.
"Talvez devamos eliminar os intermediários e extrair a Verdade diretamente nos livros sagrados”, prossegue o filósofo da Folha. “Bem, o Deuteronômio 13:7-11 nos manda assassinar qualquer parente que adore outro deus que não Iahweh; já 2 Reis 2:23-24 ensina que a punição justa a quem zomba de carecas é a morte. Mesmo o doce Jesus, fundador de uma religião supostamente amorosa, em João 15:6, promete o fogo para quem não ‘permanecer em mim’.”
Schwartsman “resolve” tudo assim, sem se preocupar com contextos literários e históricos, como se os textos que cita tivessem sido escritos no Brasil, há uma semana. Duvido que faça o mesmo quando lê obras clássicas dos tempos da Grécia antiga, por exemplo. O fato é que o Deus da Bíblia Se relaciona e Se comunica com os seres humanos dentro de seu contexto histórico, a fim de ser compreendido e fazer as pessoas entenderem que o caminho que Ele propõe é o único que leva à vida plena aqui e à vida eterna no porvir. Os deuses dos povos pagãos – dos quais Yahweh queria separar os hebreus para depois salvar esses mesmos povos pagãos com a mensagem que deveria ser levada a eles pelos hebreus reeducados – eram divindades antropomórficas até piores do que os próprios homens que as criaram. Moloque “exigia” o sacrifício de crianças indefesas em seus braços de metal incandescente. Outros cultos envolviam orgias degradantes e sacrifícios humanos. Como um Deus de amor poderia tolerar que tais tipos de cultos se alastrassem pela Terra? Em Deuteronômio 17:7, é dito que os primeiros a tomar parte na eliminação do mal entre o povo escolhido deveriam ser aqueles que testemunharam o mal, e isso era feito de maneira pública a fim de se prevenir futuras apostasias. Israel tinha sido avisado claramente com respeito aos privilégios e deveres de ser a nação escolhida para levar a Verdade do Deus Criador a todos os povos e Deus fez todo o possível para mantê-los à altura dessa missão.
O que muitos críticos da fé esquecem é de mencionar atitudes misericordiosas de Yahweh, quando havia arrependimento. É o caso da cidade assíria de Nínive. Com a pregação do profeta Jonas, todo aquele povo se arrependeu de seus pecados e foi poupado da destruição condicionalmente prevista. É o caso também da prostituta Raabe, de Jericó, que decidiu se unir ao povo hebreu, foi poupada da destruição juntamente com sua família, casou-se com um israelita e passou a fazer parte de genealogia de Jesus. Deus sempre foi justo e misericordioso. Sempre quis o bem da raça humana e muitas vezes teve que “falar grosso” com Seus filhos teimosos e ignorantes, acabando por ser mal compreendido por isso.
Quanto a 2 Reis 2:23 e 24, antes de mais nada, é bom que se explique que as palavras traduzidas como “rapazinhos” (no hebraico nearim qetannin) significam “homens jovens”, não se tratando, portanto, de crianças irresponsáveis. As palavras “sobe, calvo”, segundo o Comentário Bíblico de Moody, faziam eco às palavras dos discípulos dos profetas a Eliseu: “O Senhor levará (para cima) o teu mestre” (v. 3, 5). Essas palavras tinham o seguinte significado: “Suba, para que possamos nos ver livres de você (e possamos continuar imperturbados pelos nossos maus caminhos)!” Uma cabeça calva ou rapada era sinal de lepra e indicava desgraça (Is 3:17). Embora Eliseu provavelmente não fosse calvo ainda, o epíteto mostra que os jovens o consideravam um “pária”, como um leproso. Desprezavam o profeta de Deus. A zombaria desonrava a Deus. Por isso a promessa de julgamento divino. Eles violaram a aliança divina ridicularizando seu superintendente. E a violação da aliança produz castigo/punição. Além disso, o tamanho do grupo dá a impressão de que a zombaria foi pré-arranjada.
Outra confusão do Schwartsman: “A Bíblia é relativamente econômica na descrição do Paraíso, mas o nobre Corão traz os detalhes. Lá já não precisamos perder tempo com orações e preces, poderemos beber o vinho que era proibido na terra (Suras 83:25 e 47:15), fartar-nos com a carne de porco (52:22) e deliciar-nos com virgens (44:54 e 55:70) e ‘mancebos eternamente jovens’ (56:17). O Jardim das Delícias parece oferecer distrações para todos os gostos, mas, se banquetes, prostíbulos e saunas gays já existem na Terra, por que esperar tanto... - poderia perguntar-se um hedonista empedernido.”
Deus não tem culpa se alguns só pensam no Céu em termos de prazeres proibidos e que, de fato, não trazem felicidade. A Bíblia não recomenda o consumo de bebidas alcoólicas (embora registre que alguns a consumiram por sua conta e risco) porque, como pesquisas confirmam, mesmo uma única dose de álcool já prejudica a capacidade de pensar corretamente e afeta especialmente o cérebro. A Bíblia também afirma que Deus criou o ser humano para ser monogâmico, uma vez que nessa relação de intimidade com apenas um cônjuge reside a verdadeira felicidade, relação essa tão profunda que servia até mesmo para representar a aliança de Deus com Seu povo. Portanto, paraíso com virgens, bebedeira e comilança é uma distorção do paraíso bíblico que nos aguarda, no qual voltaremos a consumir frutos e sementes (como era no Éden), não haverá mais morte (o leão habitará com o cordeiro), doenças, dor e poderemos conviver face a face com o Criador e com as pessoas que amamos e que aceitaram os termos da aliança, os méritos salvadores de Jesus.
“Volumes e mais volumes podem ser escritos para apontar as incoerências e desatinos dos chamados textos sagrados”, acusa Schwartsman. “Se acreditamos que um Deus pessoal chancelou ou ditou cada uma dessas obras, temos, na melhor das hipóteses, um Ser Supremo com transtorno dissociativo de identidade, também conhecido como personalidade múltipla.”
Aí é que está o problema do pensamento relativista pós-moderno. Relativizam tudo, menos o relativismo. Não existem verdades absolutas, exceto a verdade absoluta de que não existem verdades absolutas. Mas não pode ser assim e Schwartsman, talvez sem perceber, se deu conta disso. Não podem existir duas verdades diferentes e excludentes. Por isso, cristãos crêem que existe apenas uma Verdade absoluta e ela está com Aquele que disse ser Ele o caminho, a verdade e a vida – Jesus. Sei que isso pode soar meio (ou bastante) arrogante, vindo de um cristão. Por isso mesmo, Deus não força, mas convida: “O Senhor Deus diz: ‘Venham cá, vamos discutir este assunto’” (Isaías 1:18, NTLH). O caminho, então, é se lançar na busca, na comparação e análise de mente aberta, a fim de descobrir que Verdade é essa. Deus está disposto a conversar e Se revelar. Mas o ser humano está disposto a investir tempo e energia nessa busca? Para alguns, parece mais fácil se acastelar no preconceito, julgando o mundo à luz de meia-dúzia de verdades acalentadas às quais se agarram como tábua de salvação.
Conforme escreveu Phillip Johnson, no prefácio do ótimo livro Verdade Absoluta, de Nancy Pearcey, “compreender como são formadas as cosmovisões e como guiam ou limitam o pensamento é o passo essencial para entender tudo o mais. ... Em geral, não vemos nossa própria cosmovisão, mas vemos tudo olhando por ela. Em outras palavras, é a janela pela qual percebemos o mundo e determinamos, quase sempre subconscientemente, o que é real e importante, ou irreal e sem importância”.
Segundo a cosmovisão materialista de Schwartsman, religião é assunto irreal e sem importância. Só que, mesmo assim, volta e meia está escrevendo sobre o tema, sem ao menos tentar compreender a cosmovisão do vizinho. É como um náufrago num mar de cosmovisões.
Michelson Borges
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