A adoração continua |
Dizem
que os deuses (sendo os mais famosos os da Grécia antiga) desapareceram depois
que o pensamento mítico foi substituído pelo pensamento filosófico. Criações da
mente pagã, eles nunca existiram de fato, mas existiram como expressão e imagem
de uma grande parcela da humanidade paganizada. Distorções
da Transcendência, os deuses da mente idólatra retornaram com seus
atributos cruéis, apresentando-se ao homem do presente numa forma
ainda mais assustadora. Seria o caso de eles terem sido metamorfoseados ou
ressignificados? Será que os deuses continuam recebendo o culto da
maioria desta geração, dita pós-cristã, que teima em trazê-los de volta na
forma de pensamentos, ideias, filosofias e religiões? Parece-me que o
panteão olímpico está bem representado na contemporaneidade. Nesse sentido:
Zeus e Hera, sempre
briguentos, são vistos na tragédia em que se tornou o matrimônio e
a família - um círculo de traições, ciúmes e discórdia. Zeus era
considerado o “pai dos deuses”; Hera, a grande matriarca. Os poderes
patriarcal e matriarcal, na relação doméstica, ultimamente estão causando
estragos no mundo.
O
submundo ou as regiões inferiores do Tártaro constituíam o reino de Hades, este nefasto ser ao qual os
gregos antigos prestavam estranho culto. Tal divindade representa bem as forças
infernais e maléficas que estão tomando conta do ser humano entregue ao seu
próprio coração escuro e maldoso. Hades incorpora a figura de Satanás.
Poseidon
era o deus dos mares e o promovedor de terremotos e catástrofes. Poderíamos
colocá-lo como protótipo e símbolo do poder destrutivo do homem sobre a
natureza?
Afrodite
paira nas mais variadas formas de erotismo e amor deformado: nas
ideologias de gênero, na homossexualidade, no adultério, na sensualidade
transgressiva das normas de pudor e pureza e no romantismo piegas de mentes
nefelibatas.
Ares,
acompanhado de Fobos (o medo) e Deimos (o terror), é cultuado nas
guerras e rumores de guerras entre as nações, especialmente nas barbáries
promovidas por grupos violentos que sentem prazer na força bruta e no
derramamento de sangue. Por extensão, este deus é protótipo do medo e da
violência que acometem a sociedade. Ares também é a imagem do macho ao avesso -
aquele que transmudou a nobre virilidade numa aberração do masculino.
A
imagem de Apolo e das Musas está impressa nas artes em
geral (música, pintura, literatura, etc.), que mais expressam sentimentos de
vazio do que de plenitude - o homem ensimesmado num subjetivismo escuro e
profundo.
Vemos
Hefestos, o deus artesão, no
culto à tecnologia como solução ilusória dos nossos problemas.
Ártemis, a
virgem caçadora dos isolados bosques, traduz uma crueldade e selvageria
própria dos nossos tempos de competição e individualismo. Mais: a deusa
simboliza a ruptura com o masculino, o qual procura matá-lo com setas fatais
numa atitude de insubmissa independência. Se Ares representa a masculinidade
brutal, Ártemis constitui a feminilidade competitiva e agressiva: a ideologia
do feminismo que amputa parte da imagem divina na humanidade.
Quase
desconhecida e apagada no Olimpo encontra-se Héstia. Também uma deusa virginal e pudica, ela é o oposto de todas
as demais deusas. Sem mito próprio e escondida pelos cantos, Héstia nos remete
a uma exacerbada passividade quando se requer ação e luta. Sendo uma deusa
“virtuosa”, a virtude de Héstia não causa nenhum impacto ou influência, mas
apenas adorno no Olimpo. Héstia talvez possa ser caracterizada como o moralismo
inútil substitutivo da verdadeira moralidade derivada da fé.
Deméter,
a deusa da abundância e da terra cultivada, traz sua marca na adoração à
natureza e às leis naturais em si mesmas. Igualmente, a deusa é símbolo da
força do homem sobre a Terra. Este procura o domínio de todos os espaços,
assenhoreando-se deles como se deles fosse o legítimo dono. Deméter incorpora
as ideologias do ambientalismo feito religião.
A
comunicação do nosso mundo virou uma verdadeira Babel. Assim, Hermes, o “mensageiro dos deuses”, é o
veículo que espalha a falsa mensagem da religião de forma bastante eloquente.
Ele cai bem como o canal babilônico. Deus do comércio e do
dinheiro, também sobrevive no materialismo dos sistemas econômicos vigentes
e nos interesses escusos das religiões. Hermes simboliza a falsidade em
todas as suas formas, principalmente a religiosa. É um arquétipo da mentira e
da falácia humanas.
Dionísio
talvez seja o deus de maior evidência, pois o prazer e as alienantes festas
do mundo viraram um objetivo final para muita gente adepta do pensamento
dionisíaco, que glorifica os instintos mais baixos. A essência dionisíaca
é o hedonismo.
Por
fim, Atena reaparece na soberba
intelectual contemporânea, na tal “sociedade do conhecimento”, e na
sabedoria mundana tão altamente exaltada, além de representar a “guerra em
busca da paz” tão comum em nosso processo civilizatório.
E
por aí vai... Os “deuses” não são realidades concretas, apesar de terem
povoado a imaginação humana por séculos; contudo, a abstração que
deles se faz ressurge sempre atualizada pelo “deus deste século” - o ser que
espalha seu nevoeiro em torno da verdade, a qual ele procura transformar em
mito.
O
mundo permanece idólatra. Mas o antigo mandamento proferido pelo Deus vivo e
digno de adoração permanece vigente: “Não terás outros deuses diante de Mim” (Êxodo
20:3
(Frank de Souza
Mangabeira, membro da Igreja Adventista do Bairro Siqueira Campos, Aracaju, SE;
servidor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Sergipe)