segunda-feira, setembro 22, 2014

Uma ficção preconceituosa sobre TDI e criacionismo

O preconceito cega
[E continua a propaganda enganosa contra A teoria do Design Inteligente (TDI) e o criacionismo. Desta vez, é a revista Galileu que volta à carga com o texto “Complexidade irredutível e design inteligente: provas do criacionismo ou tentativa de levar religião para aulas de ciência?”, publicado em seu site. Trata-se de um libelo ultradarwinista “cometido” por Carlos Orsi, em sua coluna “Olhar Cético”. Orsi é escritor de ficção científica e horror. As duas coisas se aplicam ao que ele escreveu abaixo. Meus comentários céticos seguem entre colchetes, porque não tive paciência de esperar até o fim do artigo para dizer alguma coisa. – MB]

“Nunca consegui entender”, disse Mr. Pond, “como uma mudança que deveria ter ajudado um animal, se acontecesse depressa, pode ajudá-lo se acontece devagar. E se acontece em seu tataraneto, muito depois de passada a hora de o animal ter morrido sem sequer deixar netos. Poderia ser uma vantagem se eu tivesse três pernas, digamos, para me apoiar em duas enquanto chuto um burocrata com a terceira. Poderia ser melhor se eu tivesse três pernas; mas não seria melhor se eu tivesse apenas uma perna rudimentar [...] até que seja longa o bastante para correr ou escalar, a perna seria apenas um peso extra.”

O Mr. Pond do parágrafo acima é um detetive de ficção, criado pelo escritor britânico G. K. Chesterton (1874-1936). Chesterton tem um dos textos mais charmosos da língua inglesa, e seus contos de mistério são, geralmente, muito bons. O trecho destacado, no entanto, está aí não pelo valor literário, mas filosófico: representa a mais clara e elegante articulação do argumento criacionista da “complexidade irredutível” [o argumento da complexidade irredutível foi proposto por Michael Behe, que não é criacionista].

Popularizada no início dos anos 90 pelo bioquímico americano Michael Behe [pelo jeito, Orsi não leu A Caixa Preta de Darwin], a expressão “complexidade irredutível” refere-se a estruturas onde as partes são tão bem encaixadas e adaptadas umas às outras que, na ausência de uma só delas, o todo se torna tão inútil quanto prejudicial: como a tal “perna rudimentar” que só serviria de peso morto.

Do ponto de vista biológico, diz Behe, a existência de fenômenos “irredutivelmente complexos”, se comprovada, refutaria a evolução por seleção natural. Formas irredutíveis marcariam a assinatura de um “designer inteligente”, que é a expressão-chave de mais uma tentativa hipócrita de contrabandear religião para dentro das aulas de ciências. [Aqui o autor da “pérola” em forma de artigo revela toda a sua ignorância e/ou preconceito. Primeiro, os teóricos da Teoria do Design Inteligente não estão preocupados com religião. Eles não apelam para livros ou argumentos religiosos – basta ler Behe para perceber isso. Há entre os defensores da TDI ateus, agnósticos e, sim, religiosos. Mas nenhum deles defende que se ensine religião em aulas de ciência. Jamais! Aliás, não defendem qualquer tipo de religião. Aliás, nem criacionistas defendem uma ideia dessas, pelo menos não os criacionistas esclarecidos. A própria Sociedade Criacionista Brasileira se opõe ao ensino do criacionismo nas aulas de ciência. Pelo visto, o autor da peça de ficção aí não se deu ao trabalho de conversar com um defensor da TDI nem do criacionismo.]

Há vários problemas com a ideia de “complexidade irredutível” aplicada à biologia. O primeiro e mais fundamental é ignorar a versatilidade da vida: a “perna rudimentar” de Mr. Pond não serve para correr ou escalar, mas pode funcionar como nadadeira [em terra seca? Sei...], ou facilitar os primeiros passos de um animal aquático sobre a terra firme [ainda dentro d’água? Sei...], como mostra o fóssil Tiktaalik, descrito na revista Nature em 2006. Está bem longe, portanto de ser “apenas um peso extra”. [A história do Tiktaalik já foi analisada aqui e aqui.]

A versão do argumento popularizada por Behe se vale de exemplos da bioquímica – ele gosta de citar cadeias de interações entre moléculas que produzem resultados específicos, como a coagulação do sangue, e dizer que cada elo da cadeia é, ao mesmo tempo, essencial para o todo e inútil em si. O jargão bioquímico tende a impressionar mais o público leigo que a “perna rudimentar” de Mr. Pond, mas o raciocínio é, em essência, o mesmo – e sofre das mesmas falhas. [Não, não é o mesmo. Behe desce ao nível da complexidade molecular e bioquímica para mostrar que uma coisa é teorizar sobre “patas de baleia” – como se elas pudessem surgir do nada a partir de informação genética que antes não existia – e outra bem diferente é tentar explicar a bioquímica da visão, da coagulação do sangue ou do sistema de defesa que, de fato, dependem de várias “partes” inter-relacionadas e interdependentes para funcionar; sistemas de cujo perfeito funcionamento a vida dependeu desde o início, caso contrário, não estaríamos aqui agora escrevendo/lendo isto. Chesterton viveu entre os séculos 19 e 20. Em que pese sua genialidade, ele não dispunha dos conhecimentos da biologia molecular e da bioquímica, caso contrário, a tentativa de desconstrução de Orsi seria muiiiiito mais difícil, pois o autor de Ortodoxia teria exemplos melhores para utilizar em seus textos primorosos. Hipocrisia é tentar comparar o argumento da perna com o da complexidade bioquímica da vida.]  

Outro ponto, bem concreto, é que existem explicações plausíveis para a evolução gradual de várias características dos seres vivos, às vezes apontadas como “irredutivelmente complexas”. O livro Creationism Trojan Horse, de Barbara Forest e Paul Gross, por exemplo, indica listas e mais listas de artigos científicos que explicam e evolução das cadeias bioquímicas que Behe e seus colegas insistem em chamar de inexplicáveis. Ou, como escrevem os autores, “mostrando que o que Behe diz que não existe, existe”. [Por que Orsi não cita o livro não traduzido de Behe, The Edge of Evolution, no qual ele rebate essas críticas? Bem, se ele não leu A Caixa Preta de Darwin, duvido que tenha lido este.]

Agora, só como hipótese, vamos supor que haja, escondidos por aí, casos em que nenhuma explicação razoável para a evolução das partes variadas do todo complexo esteja disponível. E então? Poderíamos concluir que houve “design inteligente”? De jeito nenhum: “inexplicado” não implica “inexplicável”. Na verdadeira ciência, a ignorância é ponto de partida, não de chegada. [Mas na ficção científica, em que não importa tanto a verdade dos fatos, a ignorância pode ser o ponto de partida e também o de chegada. Mas horror mesmo é quando os dados são manipulados para se encaixar numa opinião preconceituosa e pré-concebida.]