Todos pela pátria amada |
[Publico aqui a opinião do amigo e cidadão brasileiro adventista Marco Dourado:]
Um pensador católico - não
lembro se Tomás de Aquino ou Padre Vieira - disse certa vez que o bem deve
satisfazer três requisitos: o fundamento, o propósito e o método.
Isso posto, vamos à questão do posicionamento do cristão face às
manifestações de domingo, 15/3/2015.
1) Fundamento. A democracia moderna é uma das maiores
contribuições do pensamento e do ativismo cristão para o mundo. Por óbvio, não
“evoluiu”, como querem alguns devotos da deusa “Historia”. Nasceu de parto complicado
e extremamente demorado, com o concurso de fórceps - metáfora que desembocou em
sangue de verdade (mais espesso que o sonho de um homem, segundo João Cabral de
Melo Neto). Tão importante quanto ela é seu irmão por vezes subestimado: o
Estado de Direito. Por que ambos não devem se separar? Democracia sem Estado de
Direito pode se tornar tirania da maiorias, com direito a fogueiras. Estado de
Direito sem democracia pode resultar em códigos os mais cruéis e irrazoáveis,
também com direito a fogueiras. Assim, a combinação entre eles só consegue
florescer em sociedades que dão o devido valor à liberdade e ao direito do
indivíduo. Ou seja, é preciso muita luta e muita maturidade para implantá-los.
E eterna vigilância para mantê-los.
O que ocorre hoje no Brasil é o açodamento em
nível inédito do assalto ao Erário. E, pior, não apenas para o vil
enriquecimento pessoal de asseclas de uma quadrilha, mas para a perpetuação de
determinado grupo no poder, não à revelia das instituições, mas pela perversão
delas. Mal comparando, não se trata simplesmente de estupros ocasionais, mas de
raptos sistemáticos para fins de prostituição através das chamadas “escravas
brancas”.
Todo cidadão, seja ou não cristão, entende
que o usufruto de um bem público - um objeto material, um serviço ou um sistema
- implica na responsabilidade de conservá-lo e, quando preciso, protegê-lo. E o
estado democrático e de direito é, hoje, o bem mais
escasso, frágil e ameaçado do planeta. Usufruir desse bem sem as devidas
contrapartidas cidadãs é agir como um gigolô abominável e oportunista.
2) Propósito. Cada centavo procedente dos nossos impostos,
quando subtraído por má gestão ou corrupção, contribui para piorar o horror
cotidiano pelo qual passa o brasileiro: doentes agonizando por falta de leitos
e medicamentos, escolas que formam semianalfabetos, estradas esburacadas que
matam como numa guerra, epidemias mortíferas se disseminando progressivamente,
falta de creches, de policiamento, de serviços básicos.
Ante esse quadro, cruzar os braços com a
passividade quase beatífica da Amélia, considerada “mulher de verdade” na
canção do saudoso Mário Lago, faz do cidadão um cúmplice, talvez pior que o
meliante que desvia dinheiro público - este ao menos cede a uma pulsão,
enquanto aquele se prostra na preguiça (Pv
26:13-16: “O preguiçoso diz: ‘Lá está um leão no caminho, um leão feroz rugindo nas ruas!’ Como a porta gira em suas dobradiças,
assim o preguiçoso se revira em sua cama. O preguiçoso coloca a mão no
prato, mas acha difícil demais levá-la de volta à boca. O preguiçoso considera-se mais sábio do que sete
homens que respondem com bom senso.”) e, assim, não somente se
faz merecedor do achaque como também estimula o corrupto a se tornar ainda mais
ávido e ousado.
Na lição da Escola Sabatina do dia 26/2/2015
(http://goo.gl/4cfe6R) há duas citações seríssimas a Ezequiel e a Salomão: “Se Eu disser ao perverso: Ó perverso,
certamente, morrerás; e tu não falares, para avisar o perverso do seu caminho,
morrerá esse perverso na sua iniquidade, mas o seu sangue Eu o demandarei de
ti” (Ez 33:8).
“Liberte os que
estão sendo levados para a morte; socorra os que caminham trêmulos para a
matança! Mesmo que você diga: ‘Não sabíamos o
que estava acontecendo!’ Não o
perceberia Aquele que pesa os corações? Não o saberia Aquele que preserva a sua
vida? Não retribuirá Ele a cada um segundo o seu procedimento? [...] Aqui vão
outros ditados dos sábios: Agir com parcialidade nos julgamentos não é nada
bom. Quem disser ao ímpio: ‘Você é justo’, será amaldiçoado pelo povo e sofrerá a indignação
das nações. Mas os que condenam o culpado terão vida agradável; receberão
grandes bênçãos. A resposta sincera é como beijo nos lábios. Termine primeiro o
seu trabalho a céu aberto; deixe pronta a sua lavoura. Depois constitua
família. Não testemunhe sem motivo contra o seu próximo nem use os seus lábios
para enganá-lo” (Pv 24:11, 12, 23-28)
Prossegue a lição: a lei de Moisés
adverte claramente que aqueles que deixam de denunciar o que presenciam levam
sobre si a iniquidade (Lv 5:1: “Os
casos em que é preciso oferecer sacrifício são os seguintes: Se alguém for
chamado como testemunha, mas não disser aquilo que viu ou que ouviu falar,
então será culpado e merecerá castigo.” Podemos não ser capazes de agir contra o crime, mas se guardamos
silêncio sobre o que vemos, somos participantes da culpa junto com o criminoso. Pelo
nosso silêncio, nos tornamos cúmplices.
3) Método. Se a questão em tela diz respeito à
preservação do estado democrático e de direito, não
faria sentido algum violá-lo para promovê-lo. Isso é comezinho, chega a ser uma
platitude. Cristão (ou cidadão) algum está autorizado, por sabe-se lá que
motivos ou diretrizes, a cortar a orelha do guarda incumbido de prender Jesus,
a exemplo de Pedro. Mas deve, sim, repreender o Herodes Antipas que infringe
descaradamente uma lei civil - como fez João Batista, a custo da própria
liberdade e, pouco depois, da própria vida (relembrando: Herodíade era
filha de Berenice e de Aristóbulo IV - filho de Herodes, o grande, matador de
criancinhas. Teve ela como primeiro marido Herodes Filipe, filho de Herodes com
Mariana, filha do sumo-sacerdote Simão. Herodíade e Herodes Filipe tiveram uma
filha, Salomé. Contudo, Herodíade se separou deste marido para casar com outro
meio-tio, Herodes Antipas; este, para poder casar com Herodíade, teve que se
divorciar da sua primeira esposa, Fasélia, filha do rei nabateu Aretas IV. A
união foi condenada por João Batista e gerou animosidade entre o povo, que
acusou o casal de incesto).
Conclusão. Sendo o fundamento e o propósito das
manifestações, a meu ver, inatacáveis, resta a avaliação do
método. Adventistas do sétimo dia foram instruídos por Ellen G. White,
ainda no século 19, a participar de eleições [não ordinárias] aos sábados
quando o tema se referisse a políticas que impactassem nos valores cristãos da
nação: aborto, dia de guarda obrigatório, temperança, etc. (Confira este artigo
e a nota lá no fim deste texto.)
Ora, a democracia não acaba em uma cabine de
votação. Continua a partir dali. Aliás, restringir a cidadania ao exercício do
voto é uma das principais causas da degradação institucional a que chegamos.
Jesus converteu o coração de zelotes, mas não
deixou de pagar impostos. Não deixou de respeitar as autoridades, mas, sempre
com lágrimas na voz, conclamou-as ao arrependimento e à reforma de vida
lançando mão de vocativos nada politicamente corretos: hipócritas, raça de
víboras, merecedores do fogo do geena.
Como servidor do Ministério Público Federal
há vinte anos, tenho cotidianamente ao alcance da vista o trabalho de colegas e
de procuradores trabalhando infatigavelmente em operações como a Lava-Jato, sob
estresse físico e emocional limítrofes. Mas, principalmente, sob ameaças
explicitas, agressões (a casa do procurador-geral da república foi arrombada
agora em janeiro) e retaliações orçamentárias desde a década passada, quando do
mensalão. E posso dizer, como servidor público, como cidadão e como cristão:
ajoelhar-se buscando a misericórdia e a intervenção divina não implica
ajoelhar-se ante um colarinho branco.
Um feliz sábado para todos. E um grande 15/3
para o nosso país.
Marco
Antonio Dourado
* A citação a Ellen
White por parte de seu neto Arthur não endossa, de fato, votação política
ORDINÁRIA no sábado. Contudo, percebe-se que ela admitiu que em caso de pleitos
cujas propostas - virtuosas ou perversas - pudessem impactar fortemente na
comunidade demandava-se ação positiva do adventista. Parece-me um daqueles
casos da “ovelha que caiu no buraco”.