O
que mais vem chamando a atenção dos adoradores [gostei dessa!] da novela das 9,
“Avenida Brasil”, é que a vilã é uma troglodita, e a mocinha é pior ainda.
Nenhuma é boazinha. No festival de maldades apoteóticas que virou obsessão
nacional, não existe a princesinha de porcelana, inocente e indefesa. Carminha
(Adriana Esteves), que até aqui respondeu pelo papel de bandida oficial, até
sabe fazer beicinho, como se fosse uma donzela da extinta Jovem Guarda, mas sua
candura, quando aflora, é puro fingimento. No polo oposto, Nina (Débora
Falabella), que seria a mocinha, guarda uma bruxa má e ressentida dentro de sua
formosura adolescente. Tem os braços finos de garota rica e os olhos
flamejantes de dragão, olhos que são uma janela para o inferno. Mas... e o bem?
Onde foi parar o bem? No duelo do mal contra o mal, irrompe essa pergunta
aflita. No universo das novelas, é uma interrogação incomum – e muito corajosa.
Aí
está o sentido profundo do engenhoso suspense criado por João Emanuel Carneiro.
O bem evaporou. Qual será a
referência moral agora? “Avenida Brasil” é um melodrama escarrado, como todas
as novelas anteriores, mas é, ao mesmo tempo, um melodrama diferente. É
melodrama porque os elementos melodramáticos estão todos lá: o casalzinho que
enfrenta descaminhos antes de consumar seu desejo, a criança injustiçada que
cresceu e quer vingança, o moço bonito que não sabe quem é seu pai de verdade,
a pobre que fica rica, a rica que fica pobre, além da inveja, do ódio e do amor,
o amor, o amor.
No
mais, “Avenida Brasil” é diferente. Nela, não
cabem as soluções moralistas. Uns são maus, e os outros também. Uns e
outros são mensageiros da perfídia. Até mesmo Tufão, o raríssimo exemplar de
bom caráter, é meio abobado e tem seu lado sombrio: atropelou e matou um homem, ainda que
acidentalmente e, no início da história, fraquejou e traiu a noiva, ainda que lhe reste a desculpa de que só agiu mal
por ter caído na armadilha de Carminha.
Uns roubam, outros
premeditam as agressões mais vis, e há os que escondem crimes, próprios e
alheios, num ambiente em que toda fidelidade será castigada.
Ao menos por enquanto, “Avenida Brasil”
não trabalha com a ideia de pureza e não alimenta esperança na virtude. E,
se não há virtude, se o mal é convocado a lutar contra o mal, existirá um happy end em que o bem possa finalmente
vencer? [...]
Desde
muito tempo, a novela das 8 (que hoje vai ao ar às 9) tem sido a grande
metáfora do país. Desta vez, a metáfora ficou mais explícita, a começar do
nome: “Avenida Brasil”. Segundo a radiografia chocante que essa metáfora nos
apresenta de nós mesmos, somos um país que perdeu a inocência e teve de
amadurecer no desencanto, pondo em xeque todos os idealismos.
A
pergunta sobre a existência da virtude está, para nós, na ordem do dia.
Pensemos um pouco sobre o desmoronamento de nossas esperanças mais recentes.
Logo após o fim da ditadura militar, nosso eleitorado acolheu as promessas de
um salvador da pátria, um “caçador de marajás”, que fazia poses de príncipe anabolizado
em cima de um cavalo branco (ou de uma motocicleta japonesa). Terminou em impeachment. Depois, os que derrubaram o
salvador desmoralizado, que posavam de heróis, com aura de redentores,
revelaram-se, eles também, um tanto malignos. Agora, estamos aí às voltas com o
julgamento do mensalão, que evolui como novela misturada com reality show.
Não, não há mais lugar
para redentores. O imaginário nacional parece mais
adulto. Em lugar de buscar o paraíso na Terra, parece mais aberto a lidar com
saídas realistas, humanas e dignas. Já não aposta tanto no herói incorruptível
– e vai descobrindo o valor de instituições sólidas, ainda que operadas por
homens e mulheres imperfeitos.
Na
novela é fácil: o amor (sempre ele) acaba dando jeito nas misérias. Quanto ao
Brasil de verdade, é mais difícil. Não perca os próximos capítulos da nossa
história real.
(Eugênio Bucci,
Observatório da Imprensa)
Nota:
Boa análise de Bucci, que mostra a que ponto não apenas o Brasil, mas a
humanidade está chegando, com a falência dos valores morais que, pelo menos
oficialmente, serviam de baliza para a sociedade. Agora, em tempos de
relativismo, nem mais isso temos – as balizas caíram. A novela é um reflexo da
realidade, mas, num efeito de retroalimentação, acaba reforçando o status quo. E quem assiste, sem o
perceber, acaba incorporando os antivalores exibidos em doses diárias de
conteúdo viciante. Mas discordo totalmente de Bucci quando ele diz que “não há
mais lugar para redentores”. Aí é que ele se engana, pois o Redentor não virá
da política ou dos débeis esforços de humanos corrompidos pelo pecado. O
Redentor virá, sim, mas do Alto,
e mostrará o tremendo contraste que há, sim, entre o bem e o mal.[MB]