Desobediência
civil é a decisão racional deliberada em descumprir a norma estatal eficaz e
confrontar o poder temporal vigente, de modo racional, qualquer que seja a
razão ou o objetivo. Em todos os casos há a presença de uma ou mais normas
emanadas do Estado que lhe conferem poder ou a grupos a ele aliados de
restringir coativamente direitos e liberdades de indivíduos ou grupos, com o
uso da força física, se necessário. Na história humana mais recente dois
exemplos marcantes de desobediência civil citados fartamente na legislação são:
(a) a que se deu nos Estados Unidos da América em razão da discriminação racial
ostensiva contra os negros norte-americanos, cujo nome mais emblemático da luta
é o pastor Martin Luther King; (b) a encabeçada por Mahatma Ghandi, na Índia,
contra o domínio do Império Inglês. Estes e todos os outros movimentos de mesma
índole possuem as seguintes características:
1.
Pacifismo, o que se compreende como a deliberada decisão de não fazer uso de
armas ou de grupos armados para fazer vencer seu objetivo.
2.
Disposição à oposição e retaliação estatal.
3.
Determinação à não autodefesa.
O
motivo da desobediência ao Estado pode ser legítimo ou ilegítimo, universal,
particular, material, moral ou espiritual, sempre levando em conta o sistema de
valores que é reconhecido em uma dada sociedade para categorizar o ato de
desobediência. Vejamos.
Será
ilegítimo, em um sistema democrático, quando não encontra respaldo na opinião
da maioria do povo como, no caso brasileiro, alguém pretenda praticar atos
sexuais em ambiente público ou consumir entorpecentes livremente sem nenhuma
responsabilização. Será legítimo em um sistema de Estado como o inglês, quando
o príncipe herdeiro resolve casar com uma plebeia confrontando toda a tradição
secular da dinastia e do sistema jurídico vigente, uma vez que os costumes do
povo inglês já não são mais os mesmos que exigiriam que o herdeiro do trono
fosse obrigado a casar com uma mulher por dever de Estado, e não “por amor”.
Será
universal a desobediência civil que diga respeito a um valor de todos ou de
quase todos, como no caso daquele que luta pelo direito à liberdade, seja a de
ir e vir, ou a do pensamento e crença. O religioso que resolve fazer greve de
fome por uma razão ecológica encontra respaldo não em toda a população
brasileira que pouco sabe ou pouco se importa com o que se dá naquelas regiões
do país em que a transposição do rio São Francisco trará efeitos concretos.
Mais ainda se pode dizer do político que resolve fazer o mesmo tipo de greve
por algum motivo que ninguém consegue entender direito. Mas o religioso que
pleiteia a liberdade, de vários tipos, de um povo composto por centenas de
milhões, face a outro povo que carrega em si espírito e atitudes de
superioridade que não condizem com a fé que apregoa, como no caso da Índia de Gandhi,
carrega em si o poder de um valor universal que encontra eco em muitas mentes e
corações espalhados pelo mundo inteiro.
A
greve de trabalhadores por razões meramente salariais, ou a manifestação
estudantil caracterizada pelo interesse libertino do uso da maconha ou outras
drogas ilícitas, ambas declaradas ilegais pelos poderes constituídos, pouco ou
quase nenhum impacto social traz, quando muito um impacto político
circunscrito. Mas o movimento estudantil que apregoa de forma apaixonada que já
é tempo de restaurar as liberdades civis não poderá ser criminalizado sem que
produza reações incontidas e, provavelmente, incontíveis, por parte de todos os
setores da sociedade em geral.
Não
é nem de longe razoável imaginar-se que um grupo de estudantes que deseja
consumir livremente o crack nos
corredores da faculdade tenha a coragem moral de enfrentar de forma contínua e
persistente o batalhão de choque da polícia militar sob cacetadas e aos gritos
de “Liberdade! Liberdade! Liberdade!”. Mas é perfeitamente possível que um
estudante que queira um pouco de liberdade para escolher por si mesmo quem
deseja que governe seu país e segurança para não ser tirado de sua cama no meio
da noite por causa de sua fé, dele, de seus pais, seus irmãos e amigos, para
ser jogado em uma cela fria e suja para esperar a morte, enfrente um tanque de
guerra sozinho, admitindo para si, com certa tranquilidade de espírito, a morte
na tentativa.
Ainda
que o conceito de desobediência civil admita a possibilidade de que indivíduos
ou grupos a pratiquem por razões exclusivamente materiais, como se pode
verificar em alguns movimentos grevistas antes que estes viessem a ser
reconhecidos pelo ordenamento jurídico dos Estados democráticos como um
direito, não é por acaso que os motivos mais poderosos que embalam a força
moral dos que praticam a desobediência civil perante seus algozes sejam de
natureza teológica. Tanto Gandhi quanto Martin Luther King estavam orientados e
motivados por uma convicção de natureza não material, filosófica ou científica.
O primeiro pelos ensinamentos hindus e os ideais de igualdade e justiça. E o
segundo pela Verdade crida e vista no Cristo histórico, cujos ensinamentos
podem ser resumidos no amor a Deus sobre tudo e sobre todos e no amor ao
próximo como a si mesmo.
Os
cristãos do primeiro século eram desobedientes. Não a Deus, mas ao Estado. E
essa desobediência era apenas uma, muito embora houvesse várias formas de manifestação:
eles se recusavam a permitir que qualquer autoridade temporal, por mais
abrangente ou poderosa que fosse – no caso o Império Romano e a religião
judaica – os proibisse de falar de Jesus Cristo. A lógica deles era muito
simples: “Jesus me mandou falar até os confins da Terra sobre Ele e Seus
ensinamentos que são a Verdade. O governo dos homens me ordena que não fale
dEle ou de Seus ensinamentos, ameaçando-me com açoites, prisões e execuções, se
fizer isso. Não posso obedecer a um sem desobedecer a outro; preciso fazer uma
escolha.”
Os
verdadeiros cristãos são tomados por uma convicção inabalável na Verdade. Essa
convicção não é, como já disse, de natureza científica ou filosófica, mas
provêm do próprio Criador e Salvador, Deus, e chama-se Revelação. Há muito que
dizer sobre isso, mas não é a ocasião e o veículo oportunos. O ponto que desejo
ressaltar é o seguinte: não há de se negociar com o poder humano que proíbe a
fé e a prática na Verdade. Contra o abuso e a usurpação da autoridade divina
pelo Estado e pelos homens só resta uma ação: a desobediência civil. Os irmãos
que compreenderam e creram nisso foram jogados aos leões e às fornalhas de
fogo. E foram crucificados como o Senhor. Alguns foram salvos, mas a maioria
não. Mas muito mais do que o jovem do tanque, tinham coragem e paz.
Outro
assunto, diferente, é a desobediência civil quanto a questões que não dizem
diretamente à fé. Pense no mundo de Jesus e pense no mundo dos Seus apóstolos.
As iniquidades sociais eram inúmeras, mas o Senhor e os Seus escolhidos jamais
as confrontaram, praticaram ou ensinaram a desobediência civil em face delas.
Cito apenas duas.
A
escravidão era prática comum dos romanos. Todos os povos conquistados de todas
as terras eram submetidos à escravidão, homens, mulheres, jovens e crianças,
vendidos como se fossem animais e com a vida e a morte nas mãos do seu dono, ou
senhor. Aliás, assim Paulo se refere aos donos de escravos, senhores. E aos
escravos chama servos. E a ordem apostólica não é a desobediência destes em face
daqueles, mas o amor. Aos senhores ordena que tratem aos servos como irmãos. E
aos servos, ordena que sirvam aos seus senhores como se o fizessem ao Senhor.
Perceba o germe da revolução social! Se isso fosse praticado por aquela
sociedade e por qualquer sociedade de todos os tempos, não haveria mais ricos,
pobres, fortes, fracos, poderosos ou despoderados. Haveria aquilo que anseiam todas
as ideologias construídas na mente e na alma dos seres humanos que não
resolveram aceitar passivamente a opressão do homem sobre o homem: igualdade. E
sem constrição, mas por liberdade que vem de dentro e que muda tudo que está
fora. Poderia citar muitas passagens paulinas e petrinas nesse sentido, mas não
é meu propósito agora. Creio que o Espírito Santo está trazendo à sua memória
cada uma delas.
Outro
exemplo diz respeito a Jesus e Sua passagem por este mundo. É evidente que o
Senhor confrontou o judaísmo praticado pelos judeus e ensinado pelos seus
rabis, fariseus, saduceus e líderes de outras seitas menores. Muitas vezes Ele
revelou a falta de Deus na religião que apregoavam, e acusou seus líderes
perante o povo por hipocrisia, ganância, mentira, adultério, cobiças, vaidade,
e tantas outras perversidades do coração humano. Quando aprisionado pelos
soldados, disse a Verdade a Pedro para convencê-lo a guardar a espada: “Não
sabes que posso pedir ao Meu Pai uma legião de anjos?” Diante de Pilatos, o
Senhor não se defendeu, embora soubesse que o governador romano estava
impactado com o sonho que sua esposa havia tido e a força moral que jamais
encontrara em nenhum outro homem, que se recusava a implorar por sua vida e,
ainda, a confrontar o representante de César com a Verdade: “Nenhuma autoridade
tu terias se do céu não te fosse dada.”
A
atitude intrépida do Homem Jesus, associada ao fato de que Ele não era como
aqueles líderes religiosos, militares e políticos, pois falava e vivia com
autoridade diante das pessoas, e agia com autoridade diante dos espíritos
quando curava e ressuscitava mortos, levou-O à morte, como está claramente
revelado nos quatro evangelhos. Aqui está o Senhor nos ensinando, com Sua vida
que, no que diz respeito à fé e à Verdade, não se pode negociar, mesmo que isso
nos custe a vida e nos leve à morte por suplício, como ainda ocorre com muitos
irmãos valorosos no mundo inteiro.
O
silêncio de Jesus também nos ensina muito. Jesus não confrontou a iniquidade da
dinastia de Herodes, nem ao menos o suplício do profeta primo que o precedeu,
João Batista. Não mobilizou as massas, por ação ou por inação, contra as iniquidades
praticadas pelo Império Romano, o que muitos esperavam e foi motivo de não
crerem nEle. Não ordenou que a multidão de escravos se levantasse contra o
exército e suas centúrias, sob Suas ordens e Seu poder soberano. Mesmo diante
da pobreza e da miséria materiais humanas, Jesus pareceu não Se importar: “Deixe-os. Os pobres sempre tendes
convosco...”
E
o ensino de Jesus também nos ensina muito. Diante do povo e dos líderes judeus,
Ele legitimou a cobrança de tributos pelos Romanos (“Dai a Cesar o que é de
Cesar”); e diante dos discípulos, também, quando o peixe pescado continha a
moeda para quitar o tributo. Ordenou ao povo que O escutava atentamente que
obedecesse a tudo que os religiosos lhe ordenasse, mesmo que não devesse
praticar as mesmas coisas que eles faziam.
E
que dizer de Romanos capítulo treze, que ordena a obediência a toda autoridade
civil, pois foi constituída por Deus, e quem a desobedece, desobedece a Ele?
A
questão, para Jesus e Seus apóstolos, em termos de desobediência civil, era uma
questão de foco. Paulo disse que fazia tudo e nada fazia que pudesse vir a
criar obstáculo ao evangelho. Essa é a regra de ouro nesse assunto. Fazer ou
não fazer o bem é o que está em pauta. Bem a quem? Às pessoas a quem Deus ama.
E qual o melhor e maior bem que se pode fazer a qualquer pessoa? Levá-la a
conhecer a Jesus Cristo, como Filipe fez com seu irmão André.
Tudo
o mais é importante. Mas tudo o mais é menos importante do que a pregação do
Evangelho, o Cristo ressurreto. Se o Cristo entrar no ser humano, começará a
ser gerado Jesus, homem, nele. E se for assim, esse homem que agora é uma parte
de Jesus, seu corpo, começará a dar cheiro e corpo de vida aos outros homens
que esbarram nele. E se isso acontecer, tudo o mais tenderá a mudar, inclusive
as iniquidades sociais.
Pregar
o evangelho não precisa estar dissociado de outras formas de fazer o bem. Enquanto
pregava no barquinho, Jesus também deu comida e curou. Mas também não se trata
de pensar em termos de evangelho mais ação social ou menos ação social. O que
há é simplesmente o evangelho. Fazer ação social é decorrência inevitável de
quem acolheu em si o Deus que é Amor. Fazer o bem por onde quer que formos é o
chamado e a vocação de Cristo.
Se
posso ser um cidadão engajado politicamente para promover mudanças sociais
substanciais nesta sociedade que jaz no maligno, devo ser. Não sê-lo apenas
demonstra como o Evangelho que compreendi ou que pratico é falho e, por isso,
sem graça nem força.
O
que não tenho o direito é de promover sob o pálio da mensagem do Evangelho minhas
próprias causas, sozinho, e sem que o corpo de Cristo do qual sou parte
participe comigo. Se a voz que me guia à desobediência vem do Espírito Santo,
devo ter ao meu redor ecos de aprovação dessa voz por outros lados que não o
lado de dentro do meu próprio coração. Frise-se: não basta o silêncio das
vozes, porque estas muitíssimas vezes são culposas. Mesmo no contexto da igreja
santa, as pessoas preferem se calar para ver no que vai dar a alertar com
sabedoria e amor. E devo ter evidências históricas concretas de que a bandeira
que pretendo levantar em nome do bem da sociedade sem Deus, Jesus levantaria
também se estivesse em meu contexto histórico e social.
Finalmente,
devo ser racional, como deve ser toda forma de desobediência civil e de culto
verdadeiro. Se pretendo tirar meus filhos da escola para educá-los em âmbito
domiciliar, preciso ter certeza de que as condições que oferecerei aos meus
filhos para o aprendizado e a vida neste mundo (que exige muito daqueles que
pretendem vencer na vida e ser pessoas úteis à pregação do Evangelho, sem
esquisitices ou bizarrices ) são pelo menos iguais às que eles encontrarão lá.
E quanto a isso, não tenho certeza se a maioria das famílias brasileiras,
inclusive as cristãs, está qualificada.
(Édison Prado de
Andrade é advogado público, mestre e doutorando pela Faculdade de Educação da
Universidade de São Paulo)
Leia também: "O mundo é uma panela de pressão" e "Momento histórico de uma história que não muda"
Leia também: "O mundo é uma panela de pressão" e "Momento histórico de uma história que não muda"