Leis brasileiras "congeladas" |
Os
cubanos estão chegando. O governo anunciou que 4 mil novos profissionais
cubanos desembarcarão no país, para se juntarem aos 7,4 mil já integrados ao
Mais Médicos. Mirando o acessório, críticos provincianos diagnosticam a
natureza eleitoreira de um programa movido, essencialmente, a razões de
política internacional. Essa linha de crítica embaça o olhar, auxiliando o
governo a ocultar o impacto mais desastroso do compromisso ideológico com
Havana: o Mais Médicos introduz uma “exceção cubana” nas regras de nossa
democracia. Num discurso de 1960 às Milícias Cubanas, Che Guevara anunciou o
surgimento, no pote quente da revolução, de “um novo tipo de homem” e de uma
“medicina revolucionária”. Menos de três anos depois, 58 médicos cubanos
apresentaram-se ao primeiro governo da Argélia independente, inaugurando a
política de “missões internacionalistas”. Os ecos da ideia original reverberam
no lema “um exército de batas brancas”, que acompanha as solenidades de
despedida dos profissionais de saúde enviados ao exterior. Contudo, há muito o
objetivo de exportar a revolução foi substituído por outras metas, ligadas à
sobrevivência do regime castrista. É disso que trata o Mais Médicos.
O
Maleconazo, uma revolta popular na esplanada costeira da capital cubana, em
1994, acendeu um sinal vermelho de alerta, evidenciando que a depressão
econômica do período pós-soviético ameaçava o poder de Fidel Castro. A
“medicina internacionalista” converteu-se, então, em uma das ferramentas de
restauração da estabilidade política. A Escola Latinoamericana de Medicina
(Elam), uma instituição destinada a atrair estudantes estrangeiros oferecendo
bolsas integrais, fundada em Havana, em 1998, tinha a função de romper o
isolamento diplomático do regime. As missões médicas no exterior, por sua vez,
converteram-se em fonte crucial de divisas e, desde a consolidação do chavismo,
em moeda de troca nas importações de petróleo subsidiado da Venezuela. O Mais
Médicos entra em cena na hora do esgotamento da “solução venezuelana”.
Mais
de 15 mil médicos cubanos foram enviados à Venezuela e milhares de outros à
Bolívia, ao Equador e à Nicarágua. Na última década, um em cada três médicos de
Cuba trabalhava no exterior em qualquer momento determinado, o que provocou
carências em hospitais da Ilha já premidos por falta de remédios e deterioração
de equipamentos. O Mais Médicos nasceu de uma articulação secreta entre Lula e
o regime castrista concluída nas semanas dramáticas da agonia de Hugo Chávez em
Havana, como resposta à hipótese de interrupção do programa de intercâmbio de
médicos por petróleo. O novo contingente de “missionários” de Cuba chega ao
Brasil na moldura do aprofundamento da crise econômica venezuelana e das
incertezas sobre o futuro do governo de Nicolás Maduro.
Mas
toda a operação de importação de médicos cubanos exige que se congele a vigência
das leis brasileiras que asseguram direitos políticos e trabalhistas. Os
primeiros precisam ser suspensos para assegurar o controle de Havana sobre
“soldados de batas” inclinados a “desertar”. Os segundos, a fim de propiciar a
transferência da quase totalidade dos recursos para o caixa do Estado cubano.
Evidentemente, o esquema não funcionaria sem a cumplicidade ativa do governo
brasileiro.
Na
Venezuela, as oportunidades de “deserção” são menores, pois, na ausência de um
Judiciário independente, praticamente inexistem obstáculos à deportação de
médicos cubanos pelo regime chavista. No Mais Médicos, a forma encontrada para
reduzir esse risco é submeter os médicos ao controle de agentes policiais de
Havana, que atuam sob o disfarce de funcionários da “Brigada Médica Cubana”. Os
“missionários internacionalistas” não podem receber visitas ou deslocar-se para
outras cidades sem informar tais agentes. O Brasil, de fato, sob o silêncio
desavergonhado do parlamento e do Ministério Público, colocou entre parênteses
o direito de ir e vir.
A
Organização Pan-Americana de Saúde, um órgão internacional capturado pelo
governo cubano, faz a intermediação da contratação pelo Brasil dos médicos
cubanos. Celebrados com uma certa “Comercializadora de Serviços Médicos Cubanos
S.A.”, fachada do próprio regime castrista, os contratos conferem aos
profissionais apenas uma fração do salário, reservando a maior parcela à
misteriosa empresa. O Ministério da Saúde mentiu ao declarar que são contratos
similares aos de médicos cubanos atuando na França, no Chile e na Itália. Nos
casos francês e chileno, os profissionais recebem a integralidade do salário; a
Itália nem sequer contrata médicos cubanos. O Brasil colocou entre parênteses
sua legislação trabalhista – e o Ministério Público do Trabalho só começou a
reclamar quando eclodiu a denúncia da “desertora” Ramona Rodríguez.
A
solidariedade política entre uma democracia e uma ditadura destila,
inevitavelmente, um ácido que corrói os valores da primeira. Tradicionalmente,
a política externa brasileira é avessa ao embargo econômico americano contra
Cuba – uma posição que pode ser defendida com base em princípios. Os governos
Lula da Silva e Dilma Rousseff deram um passo à frente (ou melhor, atrás!),
produzindo declarações asquerosas sobre presos políticos em Cuba – e o
ex-ministro Tarso Genro ultrapassou tanto as fronteiras da legalidade quanto as
da decência ao deportar os pugilistas cubanos. O Mais Médicos, porém, eleva a
solidariedade a um novo grau. Ao importar, junto com os médicos, as normas
jurídicas da ditadura castrista para o Brasil, o programa instala um Estado de
exceção.
A
crise do regime castrista já não se limita a provocar tensões na política
externa brasileira. Agora, ela mutila o arcabouço de direitos políticos e sociais
vigentes no Brasil. Que isso aconteça sem maior escândalo é atestado da
falência das oposições e de um perigoso amortecimento moral da opinião pública.
(Demétrio Magnoli é
sociólogo; Gazeta do Povo)